Por que as mãos e os pés ficam tão gelados no frio?
Todos já devem ter reparado que, durante tempos ou ambientes mais frios, nossos pés e mãos costumam ficar 'gelados'. De fato, não é para menos: nossos pés e mãos cumprem função muito importante para a manutenção da temperatura [média] ideal do corpo. O sangue é um líquido que armazena muito calor, e, através da constrição ou dilatação de vasos sanguíneos próximos da superfície da pele, energia térmica é trocada com o ambiente em maior ou menor extensão, promovendo perda de calor quando a temperatura ambiente está alta ou reduzindo perda de calor quando a temperatura ambiente está baixa. A perda de calor através desse mecanismo vascular é especialmente acentuada nas extremidades do corpo. Porém, existem também problemas ou condições de saúde, inclusive hereditários, que podem interferir com esse controle térmico, e tornar os pés ou mãos anormalmente frios mesmo com uma temperatura ambiente confortável.
CONTROLE TÉRMICO
A termorregulação corporal é alcançada via modulação das funções eferentes fisiológicas (fluxo sanguíneo na pele, suor, tremor) e implementando estratégias comportamentais, seguindo a integração central de feedback (retroalimentação) térmico dos tecidos profundos e superficiais no corpo. Em todos os ambientes, termorreceptores cutâneos fornecem os primeiros sinais de feedback térmico, resultando em sensações térmicas, ajustes fisiológicos e eventualmente em decisões relacionadas com agradabilidade ou conforto que o ambiente e respostas associadas evocam (1).
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(1) Em um indivíduo humano sem roupas, a zona de neutralidade térmica ("agradável") é geralmente encontrada entre ~35°C e ~26°C (menor em indivíduos com uma camada mais grossa de gordura subcutânea). Acima do valor superior dessa faixa, as taxas metabólicas aumentam devido à produção de suor. Abaixo do valor inferior, as taxas metabólicas aumentam proporcionalmente à diferença entre a temperatura ambiente e a temperatura central do corpo, devido ao aumento na produção de calor a partir de tremor ou trabalho muscular voluntário.
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O fluxo sanguíneo na pele atua de forma crucial na homeostase tanto termorregulatória quanto hemodinâmica. Durante exposição a ambientes frios, vasoconstrição na pele é a resposta autonômica primária e a primeira linha de defesa contra excessiva redução na temperatura corporal. Vasoconstrição cutânea reduz o fluxo sanguíneo e diminui a temperatura da pele, portanto reduzindo o gradiente de temperatura pele-ar e o potencial para a transferência de calor para o ambiente.
PÉS E MÃOS: RADIADORES DO CORPO
Os principais nervos carregando feedback termorreceptor das mãos são os nervos radial e mediano, com o último tendo um papel sensorial mais importante. Esse feedback viaja até a medula espinhal através dos 6°, 7° e 8° nervos cervicais espinhais, e eventualmente ao hipotálamo. Para o pé, os nervos correspondentes são os nervos tibial, sural e superficial fibular, os quais entram na medula espinhal pelos nervos espinhais sacral (1°) e lombar (5°): esses nervos também transmitem sinais eferentes que controlam fluxo sanguíneo, suor e função muscular. Os nervos que ditam função termo-causadora da mão deixam a medula espinhal a partir dos segmentos torácicos (T2-T8), enquanto aqueles para o pé partem a partir dos segmentos torácicos e lombar (T11-L2).
O fluxo de sangue para as mãos é fornecido através das artérias radial e ulnar, e via arco palmar profundo, a ramificação palmar superficial, as artérias metacarpais e as artérias digitais. Nos pés, sangue entra por trás de cada uma das artérias maleolares e ao longo da superfície superior do pé (artéria dorsal). Os capilares cutâneos estão localizados logo abaixo da epiderme, com as veias das mãos caindo dentro de vasos superficiais ou profundos, o maior dos quais corre ao longo da superfície dorsal dos pés e das mãos. Os pés e as mãos também possuem anastomoses arteriovenosas (ligações diretas entre veias e artérias periféricas de pequeno calibre), e quando esses canais são abertos, elevações dramáticas no fluxo sanguíneo na pele podem ocorrer.
O sistema vascular nos pés e nas mãos, e a grande área superficial desses últimos, permitem que essas extremidades do corpo funcionem como trocadores de calor ("radiadores") muito eficientes. Relativo ao resto do corpo, a área superficial em razão da massa para as mãos é 4-5 vezes maior, enquanto aquela dos pés é 2,5-3 vezes maior (maior valor para o sexo masculino). De fato, a homeostase térmica do corpo às vezes pode ser alcançada inteiramente através de mudanças sutis no fluxo sanguíneo pelas anastomoses das mãos, rosto e pés (Ref.1).
Sob condições térmicas neutras (temperatura ambiente agradável), o fluxo sanguíneo nas mãos (10 mL.100 mL-1.min-1) é tipicamente 3-4 vezes maior do que aqueles nos pés (3 mL.100 mL-1.min-1). Quando consideramos a área superficial da pele, o fluxo sanguíneo nas mãos é 4-5 vezes maior do que aquele no resto do corpo e cerca de duas vezes aqueles nos pés. Durante prolongadas exposições ao frio, fluxos sanguíneos extremamente baixas são observados (mãos: 0.15 mL.100 mL-1.min-1; pés: 0.2 mL.100 mL-1.min-1), e tais fluxos podem estar abaixo dos requerimentos metabólicos dos tecidos. Em ambientes quentes, o fluxo máximo nas mãos se aproxima de 30 mL.100 mL-1.min-1, e, nos pés, cerca de 18 mL.100 mL-1.min-1. Nos dedos, o fluxo sanguíneo mínimo possui um valor ainda menor (0,2 mL.100 mL-1.min-1) e um valor máximo muito maior (120 mL.100 mL-1.min-1). Além disso, fluxo sanguíneo na falange mediana é de apenas ~30% aquele na falange distal.
O mais importante determinante único do fluxo de sangue nas mãos e nos pés é o status térmico da região central do corpo, com uma mudança média de 1°C na temperatura da pele (efeito imediato da temperatura ambiente) produzindo uma mudança de 1,3 vezes no fluxo dos dedos, e com a mudança correspondente na temperatura central resultando em uma mudança de 2,8 vezes. E enquanto reaquecimento externo ou proteção (ex.: luvas) das mãos estimula o fluxo sanguíneo para essa região e através das veias superficiais, nos pés o fluxo sanguíneo só retorna para aquecê-lo caso todo o corpo se torne suficientemente aquecido (Ref.3) - talvez um mecanismo evolutivo na linhagem humana (bípede) para reduzir a grande perda de calor gerada com o contato direto dos pés com o solo. Ou seja, é mais difícil manter pés aquecidos em um ambiente frio.
Considerando a grande área superficial das extremidades do corpo, os fluxos sanguíneos máximos das mãos e dos pés (30 e 18 mL.100 mL-1.min-1, respectivamente) podem resultar em um pico teórico de transferência de calor a partir da região central do corpo para ambas as mãos de 12 W ou 286 W.m-2 considerando um gradiente centro-pele de 1°C. Os valores correspondentes para ambos os pés são 16 W ou 404 W.M-2. Em um ambiente com temperatura de 15°C, a transferência de calor (radiativa e convectiva) de cada mão e de cada pé para o ar ao redor alcança 16,6 W e 25,5 W, respectivamente.
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> Além do sistema vascular, existe também grande capacidade de perda de calor nas mãos e nos pés através de evaporação do suor. Cada mão possui aproximadamente 160 mil glândulas écrinas de suor, com a maior parte na região palmar (115 mil) do que na superfície dorsal (46 mil); similarmente, um pé possui aproximadamente 155 mil glândulas, com a maior parte na região plantar (100 mil). Aqui é interessante também apontar que o suor na região plantar interage com as impressões digitais para proporcionar melhor função de pegada às mãos. Para mais informações, fica a sugestão de leitura: Por que temos impressões digitais?
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O suprimento de sangue representa a fonte primária de calor nos pés e nas mãos, e quando o fluxo sanguíneo é severamente reduzido devido a mudanças externas e/ou internas de temperatura, essas extremidades do corpo ficam muito frias em relação à temperatura corporal normal. E, devido à redução muito grande de fluxo sanguíneo em prolongadas exposições a temperaturas ambientes muito baixas (mecanismo do corpo para conservar o máximo possível a temperatura interna e central do corpo), sérios danos podem afetar os pés e as mãos devido à perfusão insuficiente dos tecidos e da drástica redução no fornecimento de calor (ex.: queimadura por frio).
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> A uma temperatura de ~21°C na pele das extremidades do corpo, o fluxo sanguíneo permanece constantemente baixo. Temperaturas menores causam sensação de dor nos dedos das mãos e dos dedos, um reação fisiológica normal provocada provavelmente pela isquemia (insuficiente aporte de oxigênio nos tecidos).
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PATOLOGIAS VASCULARES
Enquanto que grandes variações no fluxo sanguíneo e na temperatura nas mãos e pés são normais em resposta a mudanças na temperatura ambiente ou interna do corpo, condições patológicas interferindo no sistema vascular de controle térmico podem impactar de forma anômala e deletéria as respostas fisiológicas nas extremidades do corpo. Talvez o exemplo mais conhecido seja o Fenômeno de Raynaud, mas também podemos citar a acrocianose e a frieira.
O fenômeno de Raynaud é caracterizado por vasoespasmo recorrente e transiente dos dedos das mãos e dos pés em resposta ao frio e a estímulos estressantes (fatores emotivos), os quais frequentemente causam desconforto e dor. Os ataques ocorrem acompanhados de marcantes mudanças de cor nos dedos (aparência pálida ou cianótica), e tipicamente possuem uma duração de 15-20 minutos com uma distribuição geralmente simétrica; a temperatura da pele nas extremidades do corpo caem para ~21°C e o fluxo sanguíneo é reduzido próximo de zero (provavelmente devido ao fechamento tanto dos anastomoses arteriovenosas e das arteriólas nos dedos). Mesmo em temperatura ambiente agradável e temperatura interna do corpo normal, mãos e pés podem ficar frequentemente muito frias em indivíduos com essa condição. Existem sinais de isquemia (ex.: cianose), a qual pode estar por trás da dor severa que pode ser experienciada nos ataques (Ref.4). É sugerido que reduzida biodisponibilidade de óxido de nitrogênio (NO) e atividade aumentada dos receptores α2-adrenérgicos pós-sinápticos podem estar implicadas na etiologia do fenômeno de Raynaud (Ref.5-6).
A acrocianose é caracterizada em temperatura ambiente normal por descoloração eritrocianótica das mãos, pés e rosto, a qual não flutua, é simétrica e não manifesta dor. A condição é causada por disfunção vascular e frequentemente é acompanhada por hiperidrose (suor excessivo) palmo-plantar. Piorando no inverno, pode ser secundária a doenças orgânicas e anorexia nervosa. Em temperatura ambiente, pacientes afetados pela acrocianose exibem um fluxo sanguíneo nos dedos - e consequentemente temperatura superficial na pele - significativamente menor (temperatura: ~22°C) do que indivíduos saudáveis (temperatura: ~29°C).
A frieira se manifesta em localizações características do corpo, como as falanges proximais dos dedos e dos pés, as superfícies plantares do pés, no calcanhar, no nariz e nas orelhas, e é caracterizada por inflamação local e lesões vermelhas a roxas acompanhadas por coceira, dor e tendência a ulcerar. As frieiras ocorrem após exposição desprotegida ao frio - mas tolerável a indivíduos saudáveis - e geralmente as lesões são resolvidas dentro de três semanas. A condição pode ser crônica ou recorrente e os mecanismos vasculares não são ainda totalmente esclarecidos. É sugerida prolongada e persistente vasoconstrição frio-induzida sem intercalação com vasodilatações frio-induzidas, levando à hipoxemia e subsequentes reações inflamatórias secundárias.
Por fim, é válido também mencionar a lesão por frio não-congelante (LFNC) - ou popularmente conhecida como "Pé de Trincheira" -, a qual é causada por prolongada exposição ao frio e frequentes condições úmidas. Historicamente, a LFNC tem afetado principalmente militares (2), e durante a Segunda Guerra Mundial quatro estágios da condição foram identificados (Ref.7). Durante a exposição ao frio (estágio 1) o tecido fica isquêmico e dormente, o qual então passa a exibir uma coloração azul e uma dor durante o reaquecimento (estágio 2). O estágio 3 pode durar por até 4 semanas e envolve hiperemia, onde os tecidos se tornam inchados, vermelhos e quentes, com dor que pode ser persistente e severa. No estágio 4, o estado crônico, é caracterizado por sensibilidade ao frio (reduzido fluxo sanguíneo na pele em ambiente de neutralidade térmica e baixa capacidade de reaquecimento após exposição ao frio), dormência, hiperidrose e dor persistente. Esses sintomas pode durar por vários anos - impactando severamente a qualidade de vida do paciente - e também aumentar os riscos de mais lesões por frio. A patofisiologia dessa condição é ainda pouco entendida, mas parece incluir disfunções vasculares e neurais.
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(2) A LFNC foi primeiro descrita na campanha de inverno na Rússia em 1812 (!). O termo "pé de trincheira" foi primeiro introduzido na Primeira Guerra Mundial. Já o termo "pé de imersão" foi primeiro usado na Segunda Guerra Mundial para descrever lesões por imersão dos pés em água fria em marinheiros sobreviventes de navios destruídos e à deriva em barcos salva-vidas. As forças armadas Norte-Americanas registraram ~11 mil casos de LFNC em novembro de 1944 durante a Segunda Guerra no teatro Europeu. Em 1982, durante o conflito de Falkland (Ilhas Malvinas), uma brigada Britânica teve uma incidência de 76% de LFNC. A maioria dos casos de LFNC têm sido descritas em vítimas com exposição das extremidades do corpo ao frio e à água por pelo menos 1 a 3 dias, mas a condição também pode se desenvolver após 14 a 22 horas de exposição à água do mar a uma temperatura de 0 a 8°C. Tipicamente a LFNC ocorre em condições frias e úmidas nas quais as vítimas não podem remover suas botas ou sapatos enquanto permanecem relativamente imóveis; as vítimas geralmente estão fatigadas e sob restrição calórica.
(!) Leitura recomendada: Napoleão, Batalha de Waterloo e o vulcão Monte Tambora
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HIPERSENSIBILIDADE AO FRIO: É importante mencionar que muitas pessoas podem sentir muito frio nas extremidades do corpo sem necessariamente existir problemas vasculares reduzindo o fluxo sanguíneo nessas regiões. Chamada de Hipersensibilidade ao Frio nas Mãos e nos Pés (HFMP), essa condição é caracterizada por uma sensação de frio nas mãos e nos pés em um ambiente com temperatura agradável para outras pessoas não-afetadas, ou por uma sensação anormalmente mais intensa de frio em um ambiente com baixa temperatura. É um problema muito comum na Ásia (ocorre em ~20-52% da população no Leste Asiático), especialmente nas mulheres. De caráter hereditário, os exatos mecanismos da HFMP não são totalmente esclarecidos, mas está associada a uma resposta vasoconstritora hipersensitiva (Ref.9).
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- Taylor et al. (2009). The roles of hands and feet in temperature regulation in hot and cold environments. Thirteenth International Conference on Environmental Ergonomics; Boston, USA: University of Wollongong, 405-409.
- Keramidas et al. (2022). Acral skin vasoreactivity and thermosensitivity to hand cooling following 5 days of intermittent whole body cold exposure. American Journal of Physiology Regulatory, Integrative and Comparative Physiology, 323(1):R1-R15. https://doi.org/10.1152%2Fajpregu.00021.2022
- Kaufman, W. C. (1983). The Hand and Foot in the Cold. The Physician and Sportsmedicine, 11(2), 156–168. https://doi.org/10.1080/00913847.1983.11708463
- Bergersen & Walløe (2018). Acral coldness – severely reduced blood flow to fingers and toes. Handbook of Clinical Neurology, 677–685. https://doi.org/10.1016/B978-0-444-64074-1.00040-9
- Shepherd et al. (2019). "Beet" the cold: beetroot juice supplementation improves peripheral blood flow, endothelial function, and anti-inflammatory status in individuals with Raynaud’s phenomenon. https://doi.org/10.1152/japplphysiol.00292.2019
- Alba et al. (2019). Cold-induced cutaneous vasoconstriction in humans: Function, dysfunction and the distinctly counterproductive. Experimental Physiology, Volume 104, Issue 8, Pages 1202-1214. https://doi.org/10.1113/EP087718
- Eglin et al. (2020). Previous recreational cold exposure does not alter endothelial function or sensory thermal thresholds in the hands or feet. Experimental Physiology, Volume106, Issue1, Pages 328-337. https://doi.org/10.1113/EP088555
- Zafren, Ken (2021). Nonfreezing Cold Injury (Trench Foot). International Journal of Environmental Research and Public Health, 18(19), 10482. https://doi.org/10.3390/ijerph181910482
- Yu et al. (2018). Herbal Medicines for Cold Hypersensitivity in the Hands and Feet: A Systematic Review and Meta-Analysis. The Journal of Alternative and Complementary MedicineVol. 24, No. 12. https://doi.org/10.1089/acm.2018.0009