Quanto menor o escorpião, mais perigosa é a sua picada?
No filme de 2008, Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, o protagonista Indiana Jones (interpretado pelo ator Harrison Ford), contracenando com o seu filho Mutt Williams (Shia LaBeouf), afirmou que "quando se trata de escorpiões, quanto maior melhor", alertando sobre os perigos de escorpiões pequenos. Mas existe suporte científico para essa alegação? Em um estudo publicado recentemente no periódico Toxins (Ref.1), cientistas demonstraram pela primeira vez que, de fato, espécies menores de escorpião, e com pinças menores, possuem uma peçonha, no geral, bem mais potente quando comparados com espécies maiores e com pinças maiores.
ESCORPIONISMO
Os escorpiões estão entre os primeiros animais a se tornarem totalmente terrestres e são considerados alguns dos mais antigos e conservados artrópodes tanto em origem quanto em morfologia corporal. Esses aracnídeos primeiro emergiram como organismos aquáticos durante o período Siluriano (aproximadamente 450 milhões de anos atrás) - e, aparentemente, experienciaram poucas mudanças morfológicas. Os mais antigos fósseis conhecidos de escorpiões datam de ~437 milhões de anos atrás, pertencendo à espécie extinta Parioscorpio venato, a qual possuía características primitivas (próximas da base do clado Arachnida) e habitava o ambiente marinho, mas com provável capacidade de respiração terrestre (Ref.2). Hoje os escorpiões modernos se distribuem por todos os continentes, com exceção da Antártica.
De fato, um estudo publicado recentemente no periódico Systematic Biology (Ref.4) encontrou que escorpiões altamente tóxicos e perigosos a mamíferos emergiram há aproximadamente 70 milhões de anos, na Era Cenozoica, quando animais como musaranhos - e mais tarde morcegos, roedores, mangustos e texugos - começaram a predar escorpiões.
Apenas grandes escorpiões geralmente caçam mamíferos (no caso, pequenos roedores), a maioria pertencendo à família Scorpionidae (ex.: gêneros Pandinus e Heterometrus), alguns dos quais podem alcançar quase 25 cm de comprimento, possuem pedipalpos muito fortes e onde predação ocorre apenas de forma mecânica; muito raramente essas espécies usam o mesoderma (parte caudal, incluindo o ferrão) para ataques.
O envenenamento causado pela picada de escorpiões é chamado de escorpionismo, este o qual é um sério problema de saúde pública a nível global, mas afetando com maior intensidade o norte da África Saariana, sul da África, Sahel Africano, Oriente Médio, sul da Índia, México, Brasil e a área da bacia Amazônica. Aproximadamente 1,2 milhão de picadas de escorpiões são estimadas de ocorrer no mundo a cada ano, resultando em cerca de 3250 mortes - números provavelmente subestimados devido a vários eventos não reportados de envenenamento e sistemas de saúde limitados em várias regiões onde esses acidentes são comuns. Cerca de 95% dos casos de escorpionismo são causados por espécies da família Buthidae, incluindo os gêneros Tityus, Centruroides, Mesobuthus, Parabuthus, Leiurus, Buthus, Hottentota e Androctonus.
O veneno dos escorpiões de interesse médico contém tipicamente neurotoxinas que agem sobre os canais de Na+, K+, Ca2+ e Cl2- e de receptores de potencial transitório, levando a sintomas diversos no corpo, em especial engatilhados por distúrbios no sistema nervoso autônomo. Efeitos diretos no sistema nervoso central são reportados mas questionáveis, sendo incerto se as toxinas do veneno atravessam a barreira sangue-cérebro (Ref.9). O sintoma inicial típico da picada de escorpião é uma rápida e intensa dor local, atribuível à interferência nos receptores de potencial transitório; uma exceção notável e previamente mencionada são as picadas pela espécie H. lepturus, as quais tendem a ser virtualmente indolores. "Picadas secas" - equivalentes às "mordidas secas" nas cobras (onde veneno não é injetado) (1) - parecem ser raras. No geral, ~95% das picadas de escorpiões são limitadas a manifestações locais de baixa preocupação, e não necessitando de hospitalização. As picadas se tornam sérias quando o envenenamento está associado a manifestações sistêmicas, especialmente quando existe comprometimento das funções cardiovasculares e pulmonares.
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> Após a picada do escorpião, a injeção do veneno pode ser tão rápida quanto 0,028 segundos e pode variar enormemente na quantidade injetada - incluindo ausência de veneno ("picada seca"). É sugerido que os escorpiões controlam a quantidade de veneno expelido, considerando o provável alto custo de produção dessas toxinas (Ref.10).
(1) Leitura recomendada: Por que às vezes cobras peçonhentas mordem sem injetar veneno?
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Envenenamento sistêmico, o qual é especialmente perigoso em crianças pequenas, pode se desenvolver dentro de minutos ou em algumas horas (na H. lepturus, pode demorar 24 horas ou mais após a picada). Os efeitos sistêmicos irão variar dependendo da espécie responsável pela picada, e podem incluir hipersalivação, sudorese profusa, vômito frequente, priapismo, dor e distensão abdominal, perda do controle do esfíncter, diarreia, taquicardia, hiperglicemia, hipertensão, hipo(ou hiper)termia, miocardite tóxica, choque, falha cardíaca e edema pulmonar. Outros sintomas podem incluir paralisia, convulsão e coma.
Tratamento para o escorpionismo é feito, atualmente, com suporte hospitalar básico, visando controlar os sintomas do paciente (ex.: ventilação mecânica e administração de dobutamina). Evidência de suporte para imunoterapias similares aos soros antiofídicos usados para casos de envenenamento por cobras é promissora mas ainda muito limitada. Além disso, antivenenos visando toxinas de escorpiões, quando disponíveis, possuem custos elevados e basicamente são oferecidos apenas nos EUA (Ref.11).
No Brasil, existem aproximadamente 160 espécies conhecidas de escorpiões distribuídas entre quatro famílias s (Bothriuridae, Buthidae, Chactidae e Hormuridae), e com a maior diversidade (>50% das espécies) encontrada na região Norte e associada em especial ao bioma Amazônico. Espécies do gênero Tityus, particularmente as espécies T. serrulatus, T. bahiensis, T. stigmurus e T. obscurus, são as mais perigosas e amplamente distribuídas no país. A mais perigosa é a T. serrulatus, a qual pode também se reproduzir via partenogênese (sem necessidade de fertilização por machos), favorecendo rápida dispersão e colonização de novos ambientes (Ref.12) (2). Em 2018, foram reportados quase 157 mil casos de escorpionismo no Brasil (Ref.13).
(2) Leitura recomendada: Partenogênese: É possível nascimento virgem em humanos?
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CURIOSIDADE: Em um estudo publicado em 2020 no periódico Toxicon (Ref.14), pesquisadores do Instituto Butantan demostraram que o sapo-cururu (Rhinella icterica), uma das espécies mais comuns de sapos no sudeste e sul do Brasil, é um voraz predador do escorpião-amarelo (T. serrulatus). O R. icterica mostrou ser extremamente resistente ao veneno desse escorpião, e pode representar um importante meio de controle biológico no sentido de reduzir as populações do T. serrulatus e as altas taxas de acidentes com essa espécie. Em regiões urbanizadas e semi-urbanizadas no Brasil, o T. serrulatus quase não possui predadores naturais, e no estado de São Paulo o escorpionismo associado já representa um sério problema de saúde pública. No vídeo abaixo, um exemplo registrado de predação do escorpião-amarelo pelo sapo-cururu.
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Fatores ecológicos têm sido ligados à severidade do escorpionismo, incluindo variações climáticas, quantidade injetada de veneno e a morfologia geral do escorpião. Nesse último ponto, existe a amplamente disseminada alegação de que maiores escorpiões, no geral, são menos perigosos para humanos do que os escorpiões de menor porte.
TAMANHO E TOXICIDADE
No novo estudo, pesquisadores da NIU Galway (National University of Ireland Galway), na Irlanda, resolveram investigar a influência do tamanho dos escorpiões na potência do veneno produzido por esses aracnídeos. Para isso, eles analisaram o LD50 (dose letal mediana, ou seja, dose da toxina necessária para matar 50% de uma população em teste) de 36 espécies de escorpiões, relativo à toxicidade contra o roedor (mamífero) da espécie Mus musculus (popularmente conhecido como camundongo). A letalidade das espécies de escorpiões analisadas variou de 0,16 mg/kg para o L. quinquestriatus até 1800 mg/kg para o Hadogenes granulatus; o menor escorpião analisado foi o Centruroides noxius (~4 cm) e o maior o H. granulatus (20 cm).
Os resultados das análises confirmaram uma significativa associação negativa entre o tamanho do escorpião e a potência do seu veneno. Quanto menor o escorpião, menor tendia a ser o seu LD50 (ou seja, mais tóxico para mamíferos) e, quanto maior, maior o LD50. Por exemplo, o nosso escorpião-amarelo (T. serrulatus) mostrou possuir um veneno 100 vezes mais potente do que o gigante H. granulatus. E não apenas tamanho corporal em geral mostrou ser um fator de forte correlação com a toxicidade do escorpião. Escorpiões com as maiores e mais robustas garras chegavam a ter um veneno 10 vezes menos potente do que aqueles com as menores e mais finas pinças.
Em outras palavras, os pesquisadores encontraram forte suporte para a crença popular de que os maiores escorpiões são menos perigosos para humanos do que os menores escorpiões, como uma regra geral. E, no geral, grandes escorpiões estão associados com poderosas pinças, estas as quais também se mostraram um fator independente e importante para o nível de toxicidade desses animais.
De uma perspectiva ecológica, esses resultados também suportam padrões esperados de uma troca evolucionária de investimento entre armas de ataque e de defesa nesses animais. Para a captura de presas, escorpiões são observados de usarem primariamente o sistema mecânico de ataque (pinças) como meio de subjugar a presa, enquanto o ferrão é usado para incapacitá-la. Porém, o uso dessas duas armas varia dramaticamente entre as espécies. As maiores raramente usam o ferrão, enquanto as menores frequentemente o usam tanto para caçar quanto para se defenderem de potenciais predadores. Com grande tamanho corporal e, tipicamente, poderosas pinças, veneno vai se tornando menos determinante para o sucesso da caça, reduzindo a pressão seletiva para neurotoxinas mais potentes. Adaptações reduzindo predação (ex.: camuflagem) também podem contribuir para reduzir essa pressão seletiva.
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ATENÇÃO: Padrões gerais de tamanho corporal e dimensões relativas das pinças não devem ser tratados como regra absoluta para se aferir o potencial de toxicidade de escorpiões. Como explicitado nos gráficos do estudo, os pesquisadores demonstraram apenas uma tendência geral. Algumas espécies de médio porte podem ser altamente tóxicas ou mais tóxicas do que espécies de porte muito menor. Procure sempre atendimento médico após qualquer picada por escorpião.
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- Forde et al. (2022). Scorpion Species with Smaller Body Sizes and Narrower Chelae Have the Highest Venom Potency. Toxins 14(3), 219. https://doi.org/10.3390/toxins14030219
- Wendruff et al. (2020). A Silurian ancestral scorpion with fossilised internal anatomy illustrating a pathway to arachnid terrestrialisation. Scientific Reports 10, 14. https://doi.org/10.1038/s41598-019-56010-z
- Howard et al. (2019). Exploring the evolution and terrestrialization of scorpions (Arachnida: Scorpiones) with rocks and clocks. Organisms Diversity & Evolution 19, 71–86. https://doi.org/10.1007/s13127-019-00390-7
- Santibáñez-López et al. (2022). Phylogenomics of Scorpions Reveal Contemporaneous Diversification of Scorpion Mammalian Predators and Mammal-Active Sodium Channel Toxins, Systematic Biology, syac021. https://doi.org/10.1093/sysbio/syac021
- https://zoo.bca.ac.uk/emperor-scorpion/
- https://www.oregonzoo.org/discover/animals/common-emperor-scorpion
- Casper, Gary S. (1985). Prey Capture and Stinging Behavior in the Emperor Scorpion, Pandinus Imperator (Koch) (Scorpiones, Scorpionidae). The Journal of Arachnology, Vol. 13, No. 3, pp. 277-283.
- Amr et al. (2021). Scorpions and scorpion sting envenoming (scorpionism) in the Arab Countries of the Middle East. Toxicon, 191, 83–103. https://doi.org/10.1016/j.toxicon.2020.12.017
- Nencioni et al. (2018). Effects of Brazilian scorpion venoms on the central nervous system. Journal of Venomous Animals and Toxins including Tropical Diseases, 23;24:3. https://doi.org/10.1186/s40409-018-0139-x
- Meijden et al. (2017). A ‘striking’ relationship: scorpion defensive behaviour and its relation to morphology and performance. Functional Ecology, Volume31, Issue7, Pages 1390-1404. https://doi.org/10.1111/1365-2435.12855
- Abroug et al. (2020). Scorpion envenomation: state of the art. Intensive Care Medicine, 46(3), 401–410. https://doi.org/10.1007/s00134-020-05924-8
- Lira et al. (2021). Scorpions (Arachnida, Scorpiones) from the state of Acre, southwestern Brazilian Amazon. Acta Amazonica, 51(1). https://doi.org/10.1590/1809-4392202001551
- Martins et al. (2021). Scorpion species of medical importance in the Brazilian Amazon: a review to identify knowledge gaps. Journal of Venomous Animals and Toxins including Tropical Diseases, 27. https://doi.org/10.1590/1678-9199-JVATITD-2021-0012
- Jared et al. (2020). Toads prey upon scorpions and are resistant to their venom: A biological and ecological approach to scorpionism. Toxicon. https://doi.org/10.1016/j.toxicon.2020.02.013