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O que é a Síndrome do Homem XX?

           Um paciente de 34 anos foi atendido no Ambulatório de Andrologia do Serviço de Reprodução Humana da Faculdade Medicina do ABC (FMABC), com queixa de infertilidade primária há 6 anos. O paciente apresentava antecedente cirúrgico de correção de criptorquidia (1) à direita aos 3 anos de idade e, ao exame físico, foram observados pênis sem alterações, testículo direito atrófico, testículo esquerdo diminuído, e crescimento e desenvolvimento normais (2). No geral, o paciente possuía um fenótipo masculino normal, incluindo um tamanho peniano dentro da média.

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(1) Criptorquidia, ou testículos não descidos, é a ausência de um ou dos dois testículos no saco escrotal, uma alteração genital muito comum, especialmente em bebês prematuros.

(2) Para uma foto da região pubiana do paciente, acesse: Genitália de um paciente de 34 anos com Síndrome do Homem XX

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           O pacientes media 1,61 m e pesava 80 kg. Exames de imagem, resultados bioquímicos e hematológicos, e provas sorológicas também não revelaram nenhuma anormalidade. Os níveis de testosterona (404 ng/dL) e de prolactina (9,2 ng/ mL) estavam dentro dos limites normais; no entanto, os níveis de FSH (15,45 mUI/mL) e LH (10,9 mUI/ mL) caracterizavam um quadro de hipogonadismo hipergonadotrófico. 

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          Os resultados de duas análises seminais do paciente mostraram azoospermia não obstrutiva, ou seja, o paciente não estava produzindo espermatozoides ou a produção era insuficiente. Além disso, para determinar as causas da infertilidade, foram solicitadas análise citogenética e pesquisa de microdeleção do cromossomo Y. O estudo citogenético revelou constituição cromossômica 46,XX em todas as 40 células analisadas (Fig. 1). A investigação de microdeleção do cromossomo Y revelou a presença apenas do gene SRY, ou seja, com exceção desse gene, o cromossomo Y estava ausente (Fig. 2). Esse paciente tinha um irmão casado e com filhos. O casal infértil foi encaminhado para aconselhamento genético. 


           Com base nos achados clínicos e análise genética, o paciente foi diagnosticado com a síndrome do homem XX. O caso foi descrito e reportado em 2011 no periódico Einstein (Ref.1)


   SÍNDROME DO HOMEM XX

           O distúrbio da diferenciação sexual testicular 46,XX, ou síndrome do homem XX, foi descrito na literatura acadêmica pela primeira vez em 1964. Trata-se de uma condição rara, na qual o desenvolvimento testicular e peniano ocorre na ausência do cromossomo Y detectado citogeneticamente. Incide em 1:20000 recém-nascidos do sexo masculino e é responsável por cerca de 2% dos casos de infertilidade masculina. Para esse tipo de cariótipo, podem ser observadas três categorias clínicas: 

I. Homem XX com genitália normal; 

II. Homem XX com genitália ambígua;  

III. Hermafroditas verdadeiros XX com tecidos ovariano e testicular. 

          Apesar do diagnóstico poder ser feito na época da puberdade, já que em torno de 30-40% dos pacientes desenvolvem ginecomastia, ele é, frequentemente, estabelecido no momento da investigação da causa da infertilidade pela detecção de um cariótipo 46,XX em um indivíduo com fenótipo masculino, visto que todos os homens XX são estéreis (3). Esses pacientes podem apresentar diminuição da pilosidade facial e tendência à distribuição feminina de pelos pubianos; porém, é reportada distribuição masculina de pelos corporais e púbicos na maioria dos casos (Ref.4). Os testículos têm pequeno volume, e o aspecto histológico assemelha-se ao da síndrome de Klinefelter. Os dutos de Wolff desenvolvem-se em estruturas masculinas (epidídimo, deferente, vesícula seminal e ductos ejaculatórios) e os ductos de Müller sofrem apoptose, resultado da atuação do hormônio antimülleriano produzido pelas células de Sertoli. A secreção de testosterona pelas células de Leydig costuma ser normal durante a puberdade, mas pode decair na fase adulta, levando tipicamente a um quadro de hipogonadismo hipergonadotrófico (4). 

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(3) Relevante mencionar que homens inférteis apresentam 8 a 10 vezes mais anomalias cromossômicas do que os homens férteis e, muitas vezes, não apresentam outras características fenotípicas. No caso dos pacientes com a síndrome do homem XX, a ausência das regiões genômicas AZFa, AZFb e AZFc (presentes no braço longo do cromossomo Y) é responsável pela infertilidade (Ref.5).

(4) O termo hipogonadismo se traduz pela deficiência de esteróides gonadais (testosterona ou estradiol). O hipogonadismo é classificado como hipergonadotrófico: deficiência primária (gonadal) com elevação de gonadotrofinas (LH / FSH) ou hipogonadotrófico: deficiência secundária / terciária (hipófise / hipotálamo) com redução de gonadotrofinas.

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          Com relação à estatura dos indivíduos afetados, esta tende a ser intermediária, entre a masculina e a feminina. Em cerca de 10% dos casos, ocorre ambiguidade genital, caracterizada por hipospádia e micropênis e podendo haver associação com outras anomalias congênitas, particularmente anomalias cardíacas. Porém, é mais comum não existir anormalidade no desenvolvimento do pênis, na psicologia sexual, e na capacidade de ereção e de ejaculação. É observada na maioria dos casos funções cognitivas e status intelectual normais. 

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          Para o tratamento da infertilidade no casal, a única solução clínica hoje ainda disponível para os pacientes com a síndrome é a doação de espermatozoides; ou o casal pode preferir adoção. Extração testicular de espermatozoides não é recomendada.

 

   MECANIMOS GENÉTICOS

          Em aproximadamente 80 a 90% dos casos da síndrome do homem XX, há sequências do cromossomo Y no genoma, particularmente do gene SRY. O gene SRY está normalmente presente no cromossomo Y, e é responsável primário pelo desenvolvimento de órgãos sexuais masculinos nos mamíferos (!), particularmente permitindo que a gônada bipotencial (primitiva) se diferencie em testículo.

 

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(!) Importante apontar que, recentemente, foi demonstrado que o gene SRY não é o único responsável no cromossomo Y pela determinação do sexo masculino em ratos, sendo complementado por um éxon antes não descrito. Para mais informações: Revisão na Biologia: Determinação do sexo em ratos possui componente genético extra

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           Nos 10 a 20% dos pacientes que não apresentam o SRY, geralmente são observadas hipospádia, criptorquidismo ou vários graus de ambiguidade genital; tipicamente os indivíduos são caracterizados com uma desordem de diferenciação sexual ovotesticular, onde ovários e testículos estão presentes no mesmo indivíduo. Esse cenário indica que genes autossômicos e/ou ligados ao cromossomo X devem fazer parte de um mecanismo muito amplo de determinação gonadal, e, de fato, nos últimos anos, vários genes têm sido associados com a cascata do desenvolvimento sexual, incluindo os genes SOX9, SOX3, DAX1, WT1, FGF9, e SF1. Aliás, o mais importante papel do gene SRY é regular a expressão do gene SOX9 nas células de Sertoli percursoras. Nesse sentido, quatro mecanismos diferentes têm sido propostos para explicar a etiologia dos homens XX: 

I. Translocação de sequências do cromossomo Y, incluindo o gene SRY, para o cromossomo X ou para cromossomos autossômicos, durante a meiose paterna responsável pela produção de espermatozoides (Fig.3); 

II. Expressão atípica ou excessiva do gene SOX9 - localizado no cromossomo 17 (17q24.3–q25.1) - causada por anormalidades cromossômicas ou mediada por outro fator de ativação (ex.: prostaglandina D2, ou PGD2);

III. Mutação em um gene ligado ao X ou autossomo, gene este ainda desconhecido, que ativaria a cascata de diferenciação testicular em homens XX e SRY negativo; 

IV. Mosaicismo oculto do cromossomo Y limitado ao tecido gonadal ou eliminado durante o desenvolvimento.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Bianco et al. (2011). Distúrbio da diferenciação sexual testicular XX: relato de caso. Einstein (São Paulo), 9(3):394-6. http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011rc1862
  2. Ryan & Akbar (2013). A case report of an incidental finding of a 46,XX, SRY-negative male with masculine phenotype during standard fertility workup with review of the literature and proposed immediate and long-term management guidance. Fertility and Sterility, Volume 99, Issue 5, Pages 1273-1276. 
  3. Li et al. (2014). 46,XX testicular disorder of sexual development with SRY-negative caused by some unidentified mechanisms: a case report and review of the literature. BMC Urology 14, 104. 
  4. Manfredi et al. (2019). 46,XX Testicular Disorder of Sex Development (DSD): A Case Report and Systematic Review. Medicina 2019, 55(7), 371. https://doi.org/10.3390/medicina55070371
  5. Yiğman et al. (2021). Erectile function in SRY positive 46,XX males with normal phenotype. Central European journal of urology, 74(1), 95–98. https://doi.org/10.5173/ceju.2021.0284.R1