Por que cães inclinam a cabeça?
- Atualizado no dia 28 de maio de 2024 -
É muito comum observar cães domésticos (Canis familiaris ou Canis lupus f.) inclinarem rapidamente a cabeça quando algo chamativo é apresentado no ambiente, como uma ordem verbal do dono. Apesar de muito comum, esse comportamento ainda é um mistério para os cientistas. Nesse sentido, um estudo publicado em 2021 no periódico Animal Cognition (Ref.1) foi o primeiro a explorar com mais detalhes essa questão, encontrando que cães "superdotados" - aqueles capazes de memorizar rapidamente múltiplos nomes de brinquedos - frequentemente inclinam a cabeça antes de corretamente retornarem um brinquedo específico, e preferencialmente para um lado específico (direito ou esquerdo). Os achados fortemente sugerem que o comportamento pode ser um sinal canino honesto de concentração, indicando um esforço para o processamento de estímulos relevantes e significativos.
Vários vertebrados (peixes, répteis, aves e mamíferos) processam informações sensoriais assimetricamente. No caso dos cães, estudos observacionais prévios têm mostrado diferentes manifestações de lateralização, como assimetria no balanço do rabo, uso das narinas e no ato de "dar a pata".
Os cães focam a atenção visual e/ou acústica refletindo lateralização do funcionamento cerebral, e já foi mostrado que esses animais consistentemente viram a cabeça levemente para a esquerda durante a apresentação de um comando falado por um familiar, enquanto uma virada preferencialmente para a direita é observada em resposta a estímulos manipulados e sem significância. Através de neuroimagem, estudos mais recentes têm confirmado a existência de uma especialização no cérebro de cães para o processamento da fala com uma preferência no hemisfério direito para palavras de elogio.
Outro movimento assimétrico nos cães é a inclinação da cabeça. Essa inclinação é caracterizada por um movimento lateral e horizontal da cabeça para fora do plano vertical, como mostrado na figura abaixo. É ainda incerto o porquê desse comportamento.
No estudo pioneiro, os pesquisadores recrutaram 16 cães da linhagem Border Collies (média de idade de 28 semanas) com um talento especial. Enquanto a maioria dos cães dificilmente conseguem memorizar os nomes de dois brinquedos, os cães recrutados conseguiam lembrar e retornar pelo menos 10 brinquedos, caso tenham sido ensinados a realizar esse tipo de tarefa. Um deles em específico, chamado de Whisky, conseguia corretamente retornar 54 de 59 brinquedos que ele aprendeu a identificar. Os Border Collies foram comparados com 33 "típicos" cães (média de idade de 43 semanas), 18 deles pertencentes também à linhagem Border Collies.
Ao longo de vários meses, os pesquisadores testaram as habilidades dos cães superdotados em lembrar de brinquedos, comparando suas habilidades com os cães 'normais' (controle). Os donos dos cães colocavam os brinquedos em outra sala e pediam para seus companheiros caninos retorná-los. Como esperado, apenas os cães superdotados foram capazes de rapidamente aprender e lembrar do nome dos brinquedos. E, mais notável, todos eles compartilhavam algo em comum: a inclinação típica de cabeça após o comando verbal. Esse comportamento mostrou-se muito consistente. No vídeo abaixo, é possível ver uma dessas inclinações quando a dona pede para o cão retornar o brinquedo chamado 'Sebastien'.
Nesse sentido, os pesquisadores resolveram realizar uma pesquisa online entre fóruns e sites populares e na literatura acadêmica. Eles encontraram sugestões diversas para explicar o comportamento de inclinação da cabeça, incluindo posicionamento dos ouvidos para melhor ouvir as palavras ou sons no ambiente, um traço carismático para estimular afetividade humana (1), ou mesmo para "remover" o focinho do campo de visão para melhor visualizar o elemento de atenção. Na literatura acadêmica, escassa informação foi encontrada sobre o comportamento.
(1) Leitura recomendada: "Olhos de tadinho" evoluíram nos cães por nossa causa
Com essa ausência de background científico, os pesquisadores decidiram realizar um estudo piloto para investigar o comportamento. Reanalisando os dados do experimento inicial com os cães superdotados, eles encontraram que - quando pedidos para retornarem um brinquedo - esses cães inclinavam a cabeça 43% das vezes ao longo de dezenas de tentativas, comparado com apenas 2% das vezes nos cães de controle. Durante o movimento da cabeça, foi observada preferência por um dos lados, assim como humanos são destros ou canhotos (2). Esses padrões se mostraram consistentes ao longo de vários meses de testes, independentemente de onde o dono estava localizado em relação ao cão (ex.: mesmo se o dono estivesse à direita do cão, este continuava inclinando a cabeça para a esquerda caso esse fosse o seu lado de preferência).
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(!) Importante notar que, sem inclinação ou não, os cães superdotados eram sempre capazes de retornar corretamente o brinquedo requisitado.
(2) Leitura recomendada: Por que existem tantos destros e tão poucos canhotos?
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Todos os cães estavam familiarizados com as palavras usadas para nomear os brinquedos (após 3 meses de treinamento), indicando que familiaridade não era um fator que explicava as inclinações de cabeça, ou todos os mais de 40 cães usados no estudo exibiriam taxas altas desse comportamento. Isso sugere um processamento cerebral mais complexo, no sentido de relacionar estímulos sonoros significativos com informações armazenadas na memória. Em outras palavras, um movimento involuntário sinalizando maior atenção. Essa hipótese foi reforçada pela preferência ao lado direito ou esquerdo no movimento de virar a cabeça, indicando lateralização no processamento da vocalização humana.
O estudo foi limitado pelo pequeno número de participantes caninos e pela investigação específica de um único tipo de estímulo elicitando a inclinação da cabeça. Estudos futuros de maior porte e mais abrangentes são necessários para corroborar ou refutar a nova hipótese levantada.
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Atualização: Um estudo mais recente e de maior porte - ainda sob processo de revisão (preprint) (Ref.3) - encontrou que uma maior quantidade de pistas comunicativas fornecidas pelos donos (humanos) elicitava um maior número de inclinadas de cabeça - apontando sinalização honesta de um maior processamento cognitivo - e evidência de lateralização cerebral do comportamento. Foram investigados 103 cães representando 7 diferentes linhagens caninas e linhagens misturadas. Os pesquisadores encontraram que os cães eram mais prováveis de inclinar a cabeça para a direita, e cães machos castrados eram mais prováveis de inclinar a cabeça do que fêmeas castradas.
> A relação observada entre maior frequência de inclinação da cabeça e maior complexidade comunicativa foi consistente com a hipótese de que esse comportamento está relacionado com o processamento de estímulos comunicativos significativos e maior concentração nessa tarefa, especificamente palavras e frases familiares.
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REFERÊCIAS
- Sommese et al. (2021). An exploratory analysis of head-tilting in dogs. Animal Cognition. https://doi.org/10.1007/s10071-021-01571-8
- https://www.science.org/content/article/why-do-dogs-tilt-their-heads-new-study-offers-clues
- Buckley et al. (2024). What does that head-tilt mean? Brain Lateralization and Sex Differences in the Processing of Familiar Human Speech by Domestic Dogs. [Preprint]. https://doi.org/10.21203/rs.3.rs-3879424/v1