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O que sabemos sobre os misteriosos casos de hepatite em crianças?

 - Atualizado no dia 28 de maio de 2022 -


A Organização Mundial de Saúde (OMS) recebeu o reporte de 650 casos prováveis de hepatite aguda de etiologia desconhecida em crianças entre 5 de abril e 26 de maio deste ano (Ref.1). Desse total, pelo menos 38 crianças (6%) precisaram de transplante de fígado, e 9 (%) morreram. Três quartos dos casos (75,4%) afetaram crianças com menos de 5 anos de idade. Outros 99 casos extras estão aguardando classificação, incluindo notificações sob investigação no Brasil. Até 24 de maior, 76 notificações de possíveis casos de hepatite aguda em crianças com etiologia desconhecida foram recebidas pelo Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (CIEVS), em 15 estados, dos quais 12 casos já foram descartados (Ref.12). Nos EUA, são 216 casos suspeitos sob investigação (Ref.13).

Os primeiros 10 casos foram anunciados em 5 de abril de 2022, na Escócia, envolvendo crianças novas (idades variando de 11 meses até 5 anos de idade) e previamente saudáveis.

Evidências epidemiológicas, laboratoriais e informações clínicas são ainda limitadas. Adenovírus são importantes suspeitos e têm sido detectados no sangue ou plasma para vários dos casos, mas em baixas cargas virais. Porém, partículas virais de adenovírus não foram ainda identificadas nas amostras de tecido hepático das amostras analisadas e, portanto, a co-ocorrência desse tipo de infecção viral pode ser mais uma coincidência do que um fator causal. Nenhum estudo clínico ainda foi conduzido e devidamente publicado sobre a questão.


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Por outro lado, é importante esclarecer que esses casos de hepatite, mesmo com etiologia ainda desconhecida, NÃO estão associados com as vacinas contra a COVID-19.


1. O que é hepatite?

Hepatite é a definição de uma inflamação do fígado. A hepatite é caracterizada pela inflamação das células do fígado e pode ter várias causas. Temos hepatites virais, provocadas por vírus hepatotróficos, ou seja, que tem predileção por agredir o fígado. Os vírus responsáveis pelas hepatites virais são: A, B, C, D -  conhecido como delta -, e o E. A infecção pelas hepatites A e E acontecem por via fecal-oral, ou seja, através de água ou alimento contaminados. Ambos vírus provocam inflamação aguda, mas temporária, no fígado. O próprio organismo resolve a inflamação em 99% sem necessidade de suporte e aproximadamente 1% dos casos evoluem para insuficiência hepática ou falência do fígado. Os vírus B, C e D apresentam casos agudos e podem evoluir para a cronicidade, ou seja, a pessoa ter que conviver com esse vírus em seu organismo e isso gerar problemas como a cirrose hepática, por exemplo. 

Vale destacar que muitos acreditam que a cirrose hepática está relacionada apenas com o consumo do álcool e isso é uma meia verdade. A cirrose hepática nada mais é do que uma condição de muita agressão no fígado por um consumo de álcool de muitos anos ou por causa de uma hepatite B, C ou D crônica. A cirrose é uma condição que demora de 15 a 20 anos para se instalar.

Na infância temos uma prevalência de 90% da hepatite A por contato com água e/ou alimento contaminado. A hepatite B tem uma prevalência de aproximadamente 1% da população, que é intermediária se pensarmos em termos mundiais. A hepatite C tem uma prevalência de 0,5 a 0,7%, que é considerada até baixa, mas no Brasil temos uma população muito grande. Nesse sentido, é estimado que em torno de 600 mil brasileiros vivem com hepatite C, no momento.


2- O que é a hepatite aguda?

A hepatite aguda é uma forte e abrupta inflamação das células hepáticas e pode ser provocada pelos vírus A, B, C, D e E, mas também pode ser provocada pela ingestão abusiva de álcool, por uma reação autoimune do organismo ou pelo uso intensivo de algum medicamento. As causas mais comuns de hepatite aguda são os vírus A e B e a ingestão de drogas e medicamentos que podem levar à intoxicação do fígado. Neste último caso o paracetamol, antibióticos, antinflamatórios e anticonvulsivantes são as substâncias mais comumente relacionadas com a hepatite aguda no Brasil.

Na hepatite aguda pediátrica manifestada nos casos com etiologia desconhecida, enzimas hepáticas são observadas com níveis acentuadamente elevados. Os vírus comuns que causam hepatite viral aguda não foram detectados em nenhum desses casos. Viagens internacionais ou conexões em outros países não foram identificados como fatores da doença. Sua real causa ainda está sob investigação pela OMS.


3- Quais são os sintomas e o tratamento?

Geralmente a hepatite aguda se manifesta com sintomas inespecíficos como náusea, vomito e cansaço, o que pode ser semelhante ao quadro de uma gripe. Muitos casos de hepatite aguda apresentaram sintomas gastrointestinais, incluindo dor abdominal, diarreia e vômitos e aumento dos níveis de enzimas hepáticas (aspartato transaminase (AST) ou alanina aminotransaminase (ALT) acima de 500 UI/L), além de ausência de febre. A pessoa pode evoluir para a icterícia, que é aquela cor amarela nos olhos e na pele. Esse sintoma reforça a possibilidade de um quadro de hepatite e é um sinal importante para que o caso seja imediatamente investigado.

A icterícia é causada por altos níveis sanguíneos de bilirrubina que se deposita na pele e na esclera (branco dos olhos). Eventualmente, a cor da pele e da esclera se torna amarela. No caso de disfunção hepática, o fígado não consegue mais processar de forma adequada a bilirrubina circulante, levando ao seu acúmulo na circulação sanguínea. Pais precisam ficar atentos com sinais de amarelamento na pele e nos olhos dos filhos, mas lembrando que, nos recém-nascido, esse sintoma é comum e possui frequentemente uma causa fisiológica.

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> Quantidades aumentadas de hemoglobina em um feto pré-natal são fisiológicas. Nesse sentido, hemoglobina é rapidamente metabolizada em bilirrubina após o nascimento. A capacidade metabólica do fígado em um neonatal é imatura e é menos capaz de processar grandes quantidades de bilirrubina, levando frequentemente a um quadro de hiperbilirrubinemia (Ref.10). Como bilirrubina é neurotóxica para o cérebro neonatal, é extremamente importante o monitoramento e controle dos níveis de bilirrubina nos recém-nascidos. Fototerapia pode ser usada em casos mais mais severos, visando ajudar o fígado a processar a bilirrubina em excesso (luz na faixa do azul na pele promove a quebra da bilirrubina na pele) (Ref.14).
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O tratamento atual para a hepatite aguda busca aliviar os sintomas, manejar e estabilizar o paciente se o caso for grave. As recomendações de tratamento podem ser aprimoradas assim que a origem da infecção for determinada.


4- Por que o surto de hepatite em crianças é considerado incomum? É devido ao adenovírus?

Em muitos casos, a infecção por adenovírus foi detectada nas crianças afetadas, e a ligação entre os dois está sendo investigada como uma das hipóteses para a causa da doença.

O adenovírus é um vírus comum que pode causar sintomas respiratórios, vômitos e diarreia, e, no geral, a infecção por tais vírus é de duração limitada e não evolui para quadros mais graves. Houve casos raros de infecções graves por adenovírus que causaram hepatite em pacientes imunocomprometidos ou transplantados, por exemplo. No entanto, as crianças infectadas eram anteriormente saudáveis.

É importante também realçar que a inflamação do fígado é uma condição que não é comum de ser observada em crianças. O que é mais comum é o contato durante a infância com o vírus da hepatite A por contato com alimento ou água contaminada. Nesse sentido, o que primeiro chamou a atenção das autoridades internacionais foram os vários casos de hepatites agudas se repetindo em crianças. Além disso, as investigações ainda não conseguiram determinar qual é o agente etiológico porque as causas principais foram todas negativas. As crianças que desenvolveram a inflamação no fígado e foram reportadas internacionalmente tiveram toda a investigação de causas prováveis para hepatite aguda negativas. 


5- O surto pode estar relacionado às vacinas contra COVID-19 ou com a própria COVID-19?

Com base nas informações acumuladas, a maioria das crianças relatadas com a hepatite aguda não recebeu a vacina contra COVID-19 porque tinham menos de 5 anos de idade, descartando uma ligação entre os casos e a vacinação neste momento. Entre 188 casos reportados à OMS, testados com PCR, 12% testaram positivo para o SARS-CoV-2, e esta é uma das linhas de investigação junto com outras, em especial infecção com adenovírus (~60% dos casos testados). Notavelmente, entre os casos reportados no Reino Unido, 72% testaram positivo para adenovírus, em particular o adenovírus 41F.

"Com base nas informações atuais, a maioria das crianças relatadas com a hepatite aguda não recebeu a vacina contra Covid-19, descartando uma ligação entre os casos e a vacinação neste momento. Em alguns relatos, foi detectada a presença do vírus SARS-CoV-2, e esta é uma das linhas de investigação junto com outras, como o adenovírus", descreveu a OMS em comunicado sobre o assunto. 

De fato, entre 63 casos reportados à OMS com dados sobre vacinação, 53 (84,1%) não foram vacinados contra a COVID-19. 

"Não há evidências de qualquer ligação com a vacina contra o coronavírus. A maioria dos casos são de crianças que têm menos de 5 anos e são jovens demais para receber a vacina", informou a Agência Nacional de Saúde do Reino Unido (UKHSA) (Ref.3), responsável por notificar os primeiros casos da misteriosa hepatite. Enquanto o SARS-CoV-2 foi detectado em 18% do total de casos relatados no Reino Unido, nos EUA é estimado que 75% das crianças com menos de 12 anos de idade foram infectadas, 31% delas entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022 (Ref.9).

Um artigo-comentário recentemente publicado no periódico The Lancet (Ref.4) propôs uma hipótese relacionado o SARS-CoV-2, o adenovírus 41F e uma resposta imune superantígeno-exacerbada. Segundo a hipótese, crianças infectadas com o SARS-CoV-2 podem criar um reservatório do vírus no trato gastrointestinal, e essa persistência viral pode levar à liberação repetitiva de proteínas virais ao longo do epitélio intestinal, implicando em ativação imune. Essas repetitivas ativações imunes podem ser mediadas por um superantígeno associado à proteína spike do SARS-CoV-2 e semelhante à enterotoxina B estafilocócica, engatilhando ampla e não-específica ativação de células-T. Em crianças infectadas com um adenovírus (41F), respostas imunes induzidas por esse vírus podem ser exacerbadas por superantígenos produzidos por um reservatório de SARS-CoV-2, levando a uma excessiva produção da citocina IFN-γ e apoptose IFN-γ-mediada de hepatócitos (e subsequente hepatite). Esse fenômeno é, de fato, observado em experimentos com ratos envolvendo a enterotoxina B.

Envolvimento hepático é comum em pacientes infectados com o SARS-CoV-2, com perfil bioquímico anômalo no fígado reportado em 6-27% dos pacientes pediátricos (ex.: elevados níveis de aminotransferase), e existem raros casos de severas lesões hepáticas causadas pela COVID-19 - inclusive mediadas por hepatite autoimune (Ref.11).


6- O que os pais podem fazer para proteger as crianças? 

O mais importante é ficar atento aos sintomas, como diarreia ou vômito, e aos sinais de icterícia – quando a pele e a parte branca dos olhos ficam amareladas. Nestes casos, deve-se procurar atendimento médico imediatamente.

A OPAS recomenda ainda o uso de medidas básicas de higiene, como lavar as mãos e cobrir a boca ao tossir ou espirrar para prevenir infecções, que também podem proteger contra a transmissão do adenovírus.


7- Que medidas são recomendadas para prevenir a propagação da doença?

Neste momento, a recomendação aos países é manterem-se informados, monitorarem e notificarem os casos. Segundo os critérios de definição da OMS (Ref.6), casos prováveis englobam pessoas manifestando hepatite aguda não-associada aos tipos A-E com concentração de transaminase no sangue acima de 500 IU/L (AST ou ALT) em indivíduos com 16 anos ou menos de idade, desde 1 de outubro de 2021; casos ligados à epidemia são indivíduos manifestando hepatite aguda não-associada aos tipos A-E de qualquer idade que são um contato próximo de um provável caso, desde 1 de outubro de 2021. Com base nas atuais informações (dados clínicos acumulados), a OMS não recomenda quaisquer restrições de viagem e/ou comércio onde casos prováveis foram identificados.


REFERÊNCIAS

  1. https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/DON-389
  2. https://butantan.gov.br/noticias/hepatite-aguda-em-criancas-nao-tem-relacao-com-vacinas-contra-covid-19-diz-oms 
  3. https://butantan.gov.br/covid/butantan-tira-duvida/tira-duvida-noticias/entenda-o-que-e-a-hepatite-misteriosa-em-criancas-seus-sintomas-e-por-que-ela-e-perigosa
  4. Brodin & Arditi (2022). Severe acute hepatitis in children: investigate SARS-CoV-2 superantigens. The Lancet Gastroenterolgy & Hepatology. https://doi.org/10.1016/S2468-1253(22)00166-2
  5. https://www.who.int/emergencies/disease-outbreak-news/item/2022-DON376
  6. https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/05/5009356-ministerio-da-saude-investiga-58-casos-de-hepatite-infantil-misteriosa.html
  7. https://www.ecdc.europa.eu/en/news-events/epidemiological-update-issued-19-may-2022-hepatitis-unknown-aetiology-children
  8. https://www.cdc.gov/media/releases/2022/s0518-acute-hepatitis.html
  9. https://www.science.org/content/article/what-s-sending-kids-hospitals-hepatitis-coronavirus-adenovirus-or-both
  10. Inamori et al. (2021). Neonatal wearable device for colorimetry-based real-time detection of jaundice with simultaneous sensing of vitals. Science Advances, Vol. 7, Issue 10. https://doi.org/10.1126/sciadv.abe3793
  11. Osborn et al. (2022). Pediatric Acute Liver Failure Due to Type 2 Autoimmune Hepatitis Associated With SARS-CoV-2 Infection: A Case Report. JPGN reports, 3(2), e204. https://doi.org/10.1097/PG9.0000000000000204
  12. https://portal.fiocruz.br/noticia/em-entrevista-pesquisador-fala-sobre-hepatite-aguda-grave-em-criancas 
  13. https://www.cdc.gov/ncird/investigation/hepatitis-unknown-cause/updates.html
  14. https://medlineplus.gov/ency/article/001559.htm