Por que chuvas extremas e inundações estão ligadas ao aquecimento global?
Ao longo da última década, o mundo aqueceu mais 0,25°C na média, acumulando um aumento de +1,2°C em relação ao período pré-industrial e continuando a tendência de rápido aquecimento global desde a década de 1970. Eventos temporais extremos estão ficando cada vez mais comuns. Recordes de ondas de calor extremo testemunhados seriam virtualmente impossíveis sem o aquecimento global antropogênico. Em média, 1 em 4 recordes de chuva já podem ser atribuídos às mudanças climáticas. Países tropicais - e, tipicamente, mais vulneráveis (em termos socioeconômicos e estruturais) -, como o Brasil, estão sendo os mais afetados por esses extremos, especialmente com as enchentes e inundações rápidas (flash flooding).
Precipitação extrema é esperada de intensificar cada vez mais com o avanço do aquecimento global à medida que a concentração de vapor de água na atmosfera - o qual supre a água das chuvas - aumenta como resposta ao aumento de temperatura (maior limite de saturação). A taxa de aumento do vapor atmosférico é estimada ser aproximadamente 7% para cada 1°C de aumento da temperatura global média, de acordo com a relação termodinâmica Clausis-Clapeyron. Mudanças nos padrões de circulação atmosférica devido às mudanças climáticas também podem contribuir para eventos extremos de chuvas e enchentes.
E essa intensificação do ciclo hidrológico através do aumento do transporte de de água para a atmosfera reflete também o mais importante mecanismo de feedback do aquecimento global: vapor de água é o mais poderoso gás estufa com significativa presença no sistema climático global (!) . Quanto maior a concentração de água suportada pela atmosfera, maior é a amplificação do efeito estufa.
(!) Para mais informações, sugestão de leitura: Quais os mecanismos do efeito estufa atmosférico?
Aliás, o trágico evento de extrema precipitação que atingiu a região sudeste no Brasil em janeiro de 2020 teve como principal causa as mudanças climáticas. Usando modelos climáticos para a região, o estudo mostrou que os efeitos do aquecimento global antropogênico aumentaram a probabilidade de volumes muito maiores de chuva do que o esperado em 70% comparado com cenários marcados por uma temperatura média global 1-1,1°C menor. Para mais informações: Mudanças climáticas causaram as devastadoras chuvas que atingiram o Sudeste do Brasil em 2020, conclui estudo
No nordeste dos EUA, cientistas estimam que eventos de precipitação extrema aumentarão em 52% até o final deste século devido ao clima mais quente tornando a atmosfera mais úmida (Ref.3). E nessa região, já houve um aumento de 50% em precipitações extremas de 1996 até 2014 que está ligado ao aquecimento global. O Sudeste da Eurásia, África e a América do Sul são as regiões mais vulneráveis e sob maior pressão de defesa contra inundações no atual cenário de aquecimento global (Ref.5).
O efeito da atual tendência de aumento da temperatura atmosférica em precipitações e inundações já é particularmente notável em eventos extremos de curto prazo, que duram algumas horas (Ref.7). Para eventos em uma escala maior de tempo (vários dias) a relação é mais complicada.
-----------
> A maior concentração de vapor de água na atmosfera e águas superficiais oceânicas mais aquecidas tendem a tornar também ciclones tropicais muito mais intensos e carregando chuvas muito mais pesadas. De fato, nas últimas décadas a frequência de ciclones tropicais muito intensos aumentou substancialmente. Sugestão de leitura: Furacão Florence foi amplificado pelo aquecimento global antropogênico, confirma estudo
> Nesse último cenário, na tragédia que afetou a Líbia em 2023, onde estima-se que ~20 mil pessoas morreram devido ao colapso de duas represas (liberando ~30 bilhões de metros cúbicos de água na cidade de Derna e com impacto em outras regiões ao redor), a causa imediata foi um evento de chuva extrema: o equivalente a um ano de chuvas caiu em 24 horas, com várias áreas na Líbia recebendo 150-240 mm de precipitação, e um recorde de 414,mm/24 horas no município de Al-Bayda. Em um típico ano, Derna geralmente acumula 274 mm de chuva. Especialistas apontam que a combinação entre mudanças climáticas, conflitos armados e crises sociais e econômicas na Líbia exacerbaram o desastre, em especial com o aquecimento global provavelmente intensificando a Tempestade Daniel (um sistema de baixa pressão que se formou sobre o Mar Mediterrâneo) (Ref.4). Com temperaturas na superfície oceânica mais altas, mais energia e vapor de água acabaram sendo injetados na tempestade, alimentando chuvas extremas ao avançar sobre a Líbia.
> A exacerbação do ciclo da água causada pelo aquecimento global e a consequente intensificação de eventos como chuvas extremas, seca meteorológicas e calor extremo intensificam extremos hidrológicos diversos, incluindo inundações e secas hidrológicas. A ocorrência desses eventos extremos dependerão da área biogeográfica analisada. Por exemplo, o Brasil e a região de monção no Leste Asiático são duas regiões suscetíveis a secas e inundações. Ref.6
-----------
Inundação do Rio Yangtze
Um dos desastres naturais mais letais da história é a inundação do Rio Yangtze, em 1931, no leste da China. O evento cataclísmico submergiu 180 mil quilômetros quadrados, afetou ~25 milhões de pessoas e causou mais de 2 milhões de mortes. A inundação resultou dos efeitos combinados do El Niño sobre a temperatura da superfície oceânica tropical e das atividades de ondas extratropicais sobre o continente eurasiano. O evento foi potencialmente agravado pela forte precipitação primaveril prévia. Essa tragédia histórica é também um alerta sobre potenciais desastres que podem se tornar mais comuns no futuro no contexto do atual processo de aquecimento global. Ref.9
Leitura recomendada:
REFERÊNCIAS
- Robinson et al. (2021). Increasing heat and rainfall extremes now far outside the historical climate. npj Clim Atmos Sci 4, 45. https://doi.org/10.1038/s41612-021-00202-w
- Tabari, H. (2020). Climate change impact on flood and extreme precipitation increases with water availability. Scientific Reports 10, 13768. https://doi.org/10.1038/s41598-020-70816-2
- Picard et al. (2023). Twenty-first century increases in total and extreme precipitation across the Northeastern USA. Climatic Change 176, 72. https://doi.org/10.1007/s10584-023-03545-w
- https://www.nature.com/articles/d41586-023-02899-6
- Chen et al. (2023). Impacts of climate warming on global floods and their implication to current flood defense standards. Journal of Hydrology, Volume 618, 129236. https://doi.org/10.1016/j.jhydrol.2023.129236
- Jin et al. (2024). 1.5°C and 2.0°C of global warming intensifies the hydrological extremes in China. Journal of Hydrology, Volume 635, 131229. https://doi.org/10.1016/j.jhydrol.2024.131229
- Haslinger et al. (2025). Increasing hourly heavy rainfall in Austria reflected in flood changes. Nature 639, 667–672. https://doi.org/10.1038/s41586-025-08647-2
- Da Silva & Haerter (2025). Super-Clausius–Clapeyron scaling of extreme precipitation explained by shift from stratiform to convective rain type. Nature Geoscience 18, 382–388. https://doi.org/10.1038/s41561-025-01686-4
- Zhou et al. (2023). Understanding the Forcing Mechanisms of the 1931 Summer Flood along the Yangtze River, the World’s Deadliest Flood on Record. Journal of Climate, Volume 36, Issue 18. https://doi.org/10.1175/JCLI-D-22-0771.1