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Por que o chocolate é tão tóxico para cães?

 

           Um cão macho de três meses de idade, da linhagem Dachshund (popularmente conhecida como "cão-salsicha"), com massa corporal de 2,2 kg, apresentou-se em uma clínica veterinária por causa de possível intoxicação com chocolate. Cinco horas antes da apresentação, o cão tinha ingerido um pedaço de bolo de chocolate caseiro de aproximadamente 200 gramas. Durante o transporte até a clínica, o cão vomitou e  vestígios de alimento e bolo digeridos foram identificados pelo dono. Além disso, foi reportado um aumento de salivação e episódios de dispneia aproximadamente 4 horas após ingestão.

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           No exame físico, o cão parecia alerta, levemente dispneico, taquicárdico (170 bpm), taquipneico (80 rpm), e suas membranas mucosas estavam rosadas e úmidas. A auscultação torácica estava normal e o abdômen estava levemente dilatado e dolorido. Após análises sanguíneas e radiográficas, e com base no histórico do cão e sinais clínicos, uma intoxicação por chocolate associada com um edema pulmonar não-cardiogênico foi diagnosticada. Níveis sanguíneos de teobromina e de cafeína estavam em 1,3 μg/ml e em 0,5 μg/ml, respectivamente.

           O cão foi colocado em uma câmara de descanso e recebeu infusão intravenosa (salina 0,9%, 80 mL/kg/dia com dextrose), e antieméticos (tietilperazina 0,25 mg/kg). No segundo dia, o cão teve uma melhora geral. Ele estava alerta, eupneico, e a taxa cardíaca diminuiu para 150 bpm. Um ultrassom abdominal não mostrou nada anormal. No terceiro dia, o status clínico piorou; o cão parecia levemente letárgico, levemente dispneico, taquipneico (66 rpm) e taquicardíaco (186 bpm). Exame sanguíneo apontou atividade hepática elevada. Eletrocardiograma revelou taquicardia sinusal. Descanso, terapia de oxigênio, broncodilatadores (aminofilina 5 mg/kg) e diuréticos (furosemida 2 mg/kg) foram administrados para tratar o edema pulmonar.

           No quarto dia de hospitalização, o status clínico melhorou um pouco. O cão parecia eupneico mas a taquicardia estava ainda presente (192 bpm). Os níveis de metilxantinas tinham diminuído substancialmente: teobromina (0,3 μg/ml) e cafeína (0 μg/ml).

           No quinto dia, o cão estavam clinicamente normal e os sinais vitais tinham retornado aos valores normais (120 bpm; 30 rpm). O cão foi liberado da clínica veterinária no sexto dia. 

          O caso foi descrito e reportado no periódico Veterinarni Medicina (Ref.1).


   CHOCOLATE E CÃES

          Intoxicação por chocolate é uma das emergências toxicológicas mais comuns em cães domésticos (Canis familiaris), e são mais frequentes durante períodos festivos, especialmente no Natal e na Páscoa. A razão para essa intoxicação é devido ao fato dos cães frequentemente terem acesso a uma ampla variedade de alimentos contendo chocolate, este o qual está associado com tóxicos ingredientes, particularmente as metilxantinas teobronina e cafeína. A intoxicação nesse cenário não é dependente necessariamente da quantidade mas especialmente do tipo de chocolate ingerido. Diferentes concentrações de treobonina estão presentes em diferentes produtos e variam de baixos níveis como no chocolate branco até os mais altos níveis nos grãos ou pó de cacau.


          Chocolate é um produto derivado dos grãos de cacau (Theobroma cacao) (1). A concentração de teobromina no cacau é 3-10 vezes aquela da cafeína, mas ambos contribuem para os sintomas clínicos observados na intoxicação canina por chocolate. Quanto maior a concentração de cacau no chocolate, maior a concentração de metilxantinas e maior o potencial de toxicidade. No chocolate ao leite (mínimo de 20-25% de cacau), o conteúdo típico de teobromina por grama é de 0,5-2,1 mg; no chocolate preto (35-55% de cacau), é de 4,4-8,8 mg/g; no chocolate amargo (>70% de cacau), é de 5,5-12,7 mg/g.  

(1) Leitura recomendada: Chocolate pode fazer bem à saúde?

           Cafeína alcança níveis máximos no sangue dentro de 30 a 60 minutos após a ingestão oral. Teobromina, por outro lado, é absorvida mais lentamente quanto comparado com a cafeína (concentração sanguínea máxima após cerca de 2 horas). Além disso, cafeína é metabolizada a teobromina (nível máximo desse subproduto após 6-8 horas). Ambas as metilxantinas são metabolizadas no fígado, excretadas através dos dutos biliares e entram na circulação entero-hepática. A meia vida da teobromina na circulação sanguínea de cães é significativamente mais longa quando comparado a humanos (17,5 horas vs. 6-10 horas); nesse sentido, cães excretam teobromina a uma taxa consideravelmente mais lenta, predispondo-os à intoxicação (2).

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(2)  A teobromina pode ficar no organismo do cão por até 6 dias. O tempo de meia-vida é prolongado porque a excreção dessa substância se dá pelo fígado e não pelo sistema urinário, dificultando sua eliminação do corpo.

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          Ambas metilxantinas possuem vários mecanismos de ação. Tanto a teobromina quanto a cafeína inibem receptores celulares de adenosina, algo que leva à estimulação do sistema nervoso central, taquicardia e diurese. Além disso, metilxantinas aumentam a concentração intracelular de cálcio (Ca2+) ao aumentar o influxo desse íon e reduzir o sequestro intracelular de cálcio para dentro do retículo sarcoplasmático de músculos estriados. Isso resulta em elevada contratilidade dos músculos esqueléticos. Outro efeito das metilxantinas é uma inibição da fosfodiesterase e um aumento na concentração de cAMP (efeito simpatomimético). Por fim, metilxantinas também aumentam a concentração de epinefrina e norepinefrina no sangue.

           A razão teobromina:cafeína no chocolate também é considerada crucial em relação ao potencial de toxicidade. Uma razão de 5:1 possui um alto potencial tóxico para cães (Ref.2).

           Efeitos tóxicos de teobromina nos cães podem ocorrer a doses de 20 mg/kg em cães (agitação, vômito), e sintomas severos são reportados a 40-50 mg/kg (efeitos cardiotóxicos, como distúrbios no ritmo cardíaco). Convulsões podem ocorrer a doses em torno de 60 mg/kg, enquanto que doses maiores podem ser letais, especialmente com a ingestão de chocolates com alto teor de cacau (Ref.5). Cães menores, não apenas pela pequena massa, parecem ser mais suscetíveis à intoxicação do que cães de grande porte.

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           No geral, sinais clínicos de intoxicação por chocolate incluem efeitos gastrointestinais (vômito e diarreia), taquicardia, tremores/convulsão, hipertensão, hipertermia e, menos comumente, cianose (cor azulada na pele), taquipnneia (respiração acelerada e muitas vezes curta), hipocalemia (nível baixo de potássio) e arritmias cardíacas. Diurese e hematuria (sangue na urina) também têm sido sintomas reportados. Esses sinais geralmente ocorrem 2-4 horas após a ingestão mas podem ser tão rápidos quanto 45-60 minutos pós-ingestão (tremores, agitação, vômito) ou mesmo ocorrer após 6-12 horas. No caso de chocolate branco, este não é considerado tóxico para cães por conter muito pouco cacau, porém caso contenha altos níveis de gordura e de açúcar, vômito, diarreia e distensão abdominal podem ser sintomas manifestados, incluindo pancreatite em casos mais severos.

          Morte em cães por intoxicação de chocolate é principalmente devido a arritmias, hipertermias, falha respiratória, congestão e edema. Em ingestões de 100 a 200 mg/kg de teobromina, a taxa de mortalidade reportada é em torno de 50% (Ref.2). Porém, fatalidades são raras. O prognóstico de uma intoxicação por chocolate geralmente é favorável em caso de pronto atendimento veterinário.

           Como não existe antídoto contra metilxantinas, o tratamento visa aliviar os sintomas em adição a estratégias de descontaminação, e irá variar dependendo da quantidade de chocolate ingerido, do tempo da ingestão e dos sintomas de apresentação. Vômito pode ser induzido com apomorfina (0,1 mg/kg) - após avaliação de riscos e benefícios - para remover chocolate ainda presente no estômago. Devido ao fato das metilxantinas entrarem na circulação entero-hepática, carvão ativado ao longo de um período de 72 horas é recomendado. Para o tratamento de sintomas, pode-se usar terapia de hidratação (com correção de eletrólitos), sedativos (midazolam, diazepam), antiepilépticos (fenobarbital) e antieméticos (maropitant, metoclopramida). Taquicardia sinusal em cães euvolêmicos é tratada com bloqueadores-beta (esmolol, atenolol), e, em casos de arritmias ventriculares, lidocaína é indicada.

            Metilxantinas podem ser reabsorvidas através do epitélio da bexiga, portanto caminhadas frequentes com o cão ou introdução de um cateter urinário para permitir o esvaziamento da bexiga é também recomendado durante o tratamento veterinário (Ref.4).

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IMPORTANTE: Não apenas chocolate é um alimento "humano" tóxico para cães. Vários alimentos inofensivos para a nossa espécie (Homo sapiens) são muito perigosos para cães, incluindo abacate, cebola e uvas. Para mais informações, acesse: Alimentos tóxicos para os cães
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. C.F. Agudelo, Z. Filipejova, P. Schanilec. Chocolate ingestion-induced non-cardiogenic pulmonary oedema in a puppy: a case report. Veterinarni Medicina, 58, 2013 (2): 109–112.
  2. Weingart et al. (2021). Chocolate ingestion in 156 dogs. Journal of Small Animal Practice, Volume 62, Issue 11, Pages 979-983. https://doi.org/10.1111/jsap.13329
  3.  Panagopoulou et al. (2020). “Food-associated toxicoses in dogs and cats”, Hellenic Journal of Companion Animal Medicine, 9(1), pp. 17–31. https://www.hjcam.hcavs.gr/index.php/hjcam/article/view/26
  4. George, L. (2020). Tis the season: festive toxicological hazards for cats and dogs. Veterinary Nursing Journal, 35(9-12), 286–290. https://doi.org/10.1080/17415349.2020.1838375
  5. https://www.revistamvez-crmvsp.com.br/index.php/recmvz/article/view/24167