Verme no olho: O que é a loíase?
Uma mulher de 36 anos de idade apresentou-se ao ambulatório de um hospital com uma estrutura na forma de verme se movendo na sua pálpebra esquerda (Figura A, Vídeo 1). Ela trabalhava como uma antropóloga e tinha viajado para a República da África Central como parte do seu trabalho. Estudos laboratoriais foram notáveis para uma contagem absoluta de eosinófilos (um tipo de glóbulo branco) de 1,75 por milímetro cúbico (faixa de referência: 0,01 a 0,59). Exame microscópico de amostra sanguínea revelou vermes de rápido movimento presentes em uma contagem máxima de 3400 por milímetro. Filmes sanguíneos Giemsa-marcados confirmaram a presença de microfilárias (Figura B, Vídeo 2) com bainhas sem cor (Figura C, flechas), um achado consistente com o verme Loa loa. Um diagnóstico de loíase foi feito.
O verme L. loa é encontrado na África Central e é transmitido por moscas do gênero Chrysops, popularmente conhecidas como "mutucas". Os vermes migram através dos tecidos subcutâneos e podem produzir áreas de inchaço inflamatório (referidas como 'inchaços de Calabar').
Um curso de 20 dias de tratamento com dietilcarbamazina oral foi iniciado, começando a uma dose de 50 mg diariamente e aumentando para uma dose de 300 mg diariamente. Prednisolona foi co-administrada começando com uma dose diária de 20 mg e foi sendo reduzida lentamente ao longo de 20 dias. A paciente não teve complicações do tratamento. Após 6 meses de acompanhamento, a contagem de eosinófilos da paciente tinha retornado à faixa normal e não havia evidência de relapso.
O caso foi descrito e reportado no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1).
LOÍASE (VERME AFRICANO DO OLHO)
Loíase é a doença caracterizada pela infestação de Loa loa, um verme pertencente à ordem Spirurida, superfamília Filaroidea. Este grupo inclui todos os vermes vulgarmente conhecido como "filárias", agentes causadores de um grupo de doenças helmínticas chamado filarioses (doença parasitária, considerada como doença tropical infecciosa). Entre estes, três espécies são conhecidas por afetar o olho: Loa loa, Onchocerca volvulus e Mansonella perstans.
A espécie L. loa é originalmente encontrada nas florestas tropicais da África Ocidental e Central, e é popularmente conhecida como "verme Africano do olho", devido a uma manifestação ocular peculiar da doença. Os vermes adultos vivem livremente no espaço subcutâneo de humanos e ocasionalmente podem migrar para o espaço subconjuntival onde acabam levando a exuberantes sintomas como dor ocular, prurido, e sensação de um corpo estranho. O verme adulto já foi descrito na câmara anterior do olho e na região subcutânea das pálpebras. Outras manifestações comuns são os chamados inchaços de Calabar: angioedemas localizados encontrados predominantemente nos membros, próximo das articulações.
O verme é transmitido pela picada de insetos do gênero Chrysops - durante a alimentação de sangue humano - que são semelhantes às moscas e conhecidos popularmente como "mutucas", sendo descrita em outros lugares fora da África, em imigrantes Africanos ou viajantes. As mutucas introduzem a larva nos tecidos subcutâneos de hospedeiros humanos, e, ao longo de seis a doze meses, a larva se desenvolve em vermes adultos, os quais podem medir 30-70 milímetros de comprimento e 0,3-0,5 milímetros de diâmetro. Uma vez maduros, os vermes adultos continuam viajando através do tecido subcutâneo a taxas de até 1 cm/minuto, e, através da circulação linfática, podem alcançar vários órgãos do corpo. Vermes adultos já foram reportados sobreviver em tecido humano por até 21 anos. Larvas imaturas ou microfilárias são liberadas pelas fêmeas adultas dos vermes e migram através da circulação sanguínea do hospedeiro e pulmões em um padrão diurno.
Milhões de pessoas na região equatoriana da África são afetadas pela doença, e em torno de 14 milhões de pessoas atualmente residem em áreas de alto risco (ex.: Camarão, Gabão e República Democrática do Congo). Em outros continentes existe rara ocorrência da doença, geralmente em imigrantes Africanos ou viajantes (a infecção pode permanecer assintomática por vários anos) (Ref.4-6).
Apesar de ser percebida como uma condição relativamente benigna, a loíase está também associada com sintomas atípicos, como artralgia e edemas dolorosos, e que podem envolver órgãos vitais como coração, fígado, e sistemas respiratório e renal, além de manifestações oculares anômalas que podem levar a perda parcial ou total da visão (Ref.7). Essas manifestações atípicas - causadas provavelmente por respostas inflamatórias deflagradas pelas microfilárias (antígeno) - podem aumentar substancialmente as taxas de mortalidade a nível populacional e atingir uma boa parte dos infectados, sendo reportado uma prevalência de 47% dos casos apresentando sintomas além daqueles classicamente associados aos inchaços de Calabar e ao 'verme no olho' (Ref.8). No Camarão, cerca de 14,5% da mortalidade a nível populacional está associada com a presença de infecção com o verme L. loa (Ref.9).
O tratamento pode envolver anti-helmínticos diversos, incluindo a ivermectina, mas balanço de riscos e benefícios deve ser feito dependendo do paciente e da densidade microfilárica. Os regimes medicamentosos mais usados são (Ref.10): dietilcarbamazina (45%), ivermectina (25%), albendazol + ivermectina (12%), ivermectina + dietilcarbamazina (10%). Dietilcarbamazina, sozinha ou combinada, está associada com taxas de cura de 38-73%; ivermectina + albendazol está associado com uma maior taxa de cura. Albendazol e dietilcarbamazina estão associados com potenciais sérios efeitos colaterais - incluindo encefalopatia (Ref.11) - e devem ser usados sob orientação e supervisão de profissionais de saúde.
Prevenção da loíase pode ser feita através de medidas que evitem a picada por mutucas em regiões da África Central e Ocidental, como uso de calças e camisas longas. É possível também fazer uso profilático de vermífugos caso o indivíduo planeje permanecer por um longo período nessas regiões, mas sempre sob recomendação médica.
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMicm2101227
- Passos et al. (2012). Verme subconjuntival da espécie Loa loa: primeiro caso no Brasil. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, 75 (1). https://doi.org/10.1590/S0004-27492012000100015
- Filipowicz A. (2021). Loiasis. In: Foster C.S., Anesi S.D., Chang P.Y. (eds) Uveitis. Springer, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-030-52974-1_54
- https://academic.oup.com/cid/article-abstract/72/11/2049/6290364
- https://www.karger.com/Article/Abstract/513939
- https://www.hindawi.com/journals/criopm/2021/6630875/
- Buell et al. (2019). Atypical Clinical Manifestations of Loiasis and Their Relevance for Endemic Populations, Open Forum Infectious Diseases, Volume 6, Issue 11, November 2019, ofz417. https://doi.org/10.1093/ofid/ofz417
- Ramharter et al. (2020). Burden of disease in Gabon caused by loiasis: a cross-sectional survey. The Lancet Infectious Diseases, Volume 20, Issue 11, 2020, Pages 1339-1346, ISSN 1473-3099. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30256-5
- Chesnais et al. (2017). Excess mortality associated with loiasis: a retrospective population-based cohort study. The Lancet Infectious Diseases, Volume 17, Issue 1, 2017, Pages 108-116, ISSN 1473-3099. https://doi.org/10.1016/S1473-3099(16)30405-4
- Gobbi et al. (2018). Comparison of different drug regimens for the treatment of loiasis—A TropNet retrospective study. PLoS Negl Trop Dis 12(11): e0006917. https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0006917
- Alice Métais, Sophie Michalak, Audrey Rousseau. Albendazole-related Loa Loa encephalopathy, IDCases, Volume 23, 2021, e01033, ISSN 2214-2509. https://doi.org/10.1016/j.idcr.2020.e01033
- https://www.cdc.gov/parasites/loiasis/gen_info/faqs.html