YouTube

Artigos Recentes

Café e chá devem ser tomados antes ou depois das refeições?

 

          Existe uma recomendação comum de se evitar o consumo de chás e café junto às refeições por causa de preocupações com a assimilação de nutrientes. De fato, essas bebidas diminuem significativamente a absorção de ferro (Fe2+) pelo sistema digestivo. Porém, até onde essa preocupação deve ser levada a sério? Existem fatores compensatórios que podem ser incluídos na dieta? No caso específico do café, e seu alto conteúdo de cafeína, existe também preocupações relativas ao metabolismo de glicose e, nesse sentido, recomenda-se o consumo dessa bebida antes da refeição da manhã. 

- Continua após o anúncio -


   CAFÉ, CHÁ E FERRO 

           Minerais são indispensáveis à dieta dos animais. Minerais são elementos inorgânicos que são encontrados em todos os tecidos do corpo e fluídos, e, mesmo sem fornecerem energia, esses elementos (na forma de íons) são essenciais para várias atividades do nosso corpo. Ferro é um desses minerais essenciais e é parte crítica da proteína hemoglobina nas células vermelhas (hemácias) do sangue, se ligando às moléculas gasosas de oxigênio (O2) e transportando esse gás dos pulmões para todas as partes do corpo. A maior parte do ferro presente no nosso corpo está no sangue na forma de hemoglobina. Já na forma de mioglobina, uma proteína globular presente no tecido muscular, o ferro transporta, armazena e facilita o uso de oxigênio nos músculos. Além disso, todas as nossas células precisam de ferro para produzir energia, usando esse elemento em várias reações bioquímicas. 

 

          Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a anemia causada pela deficiência em ferro é uma das mais comuns deficiências nutricionais. A anemia atinge quase 25% da população mundial, e sua causa primária é a deficiência de ferro, esta a qual está ligada a danos na capacidade de trabalho físico, humor e função cognitiva reduzidos, e problemas na gravidez. A anemia é o mais grave estágio da deficiência de ferro, e também pode ser resultado, entre outros fatores (ex.: perda excessiva de sangue), de deficiências em folato, vitamina B12 ou cobre. 

          Um bebê recém-nascido possui um total em torno de 250 miligramas (mg) de ferro no corpo. Em um adulto do sexo masculino, essa quantidade total é de 3000-4000 mg; no sexo feminino, 2000-3000 mg. Cerca de 70% do ferro está na forma funcional, como hemoglobina (60%), mioglobina (5%) e várias enzimas heme e não-heme (5%). O restante do ferro é encontrado armazenado na forma de ferritina (20%) e hemisoderina (10%). 

           Uma vez que o alimento é consumido e digerido após a refeição, o ferro ali presente é absorvido principalmente no duodeno e no jejuno proximal. Após a digestão, o ferro de todas as fontes da dieta entra na reserva intracelular comum a partir da qual, dependendo do status de ferro do indivíduo, esse micronutriente é ou armazenado como ferritina nas hemácias ou exportado da hemácia através do transportador ferroportina no lado basal das células. A ferroportina transporta o íon ferroso (Fe2+) o qual é imediatamente oxidado para íon férrico (Fe3+), este por sua vez sendo levado pela transferrina para ser transportado para células expressando receptores transferrina. 

           Os primeiros estágios de deficiência em ferro são caracterizados por perda de ferro armazenado (indicado pela ferritina) e é chamado de depleção de ferro, ou deficiência pré-latente de ferro. Quando as reservas de ferro no corpo são exauridas (ferritina no soro <12μg/L), os níveis de ferro e de ferritina no sangue começam a cair. Nesse estágio, se a concentração de hemoglobina no sangue ainda está normal, chamamos de deficiência em ferro sem anemia ou deficiência latente de ferro. 

- Continua após o anúncio -


   SINTOMAS (DEFICIÊNCIA EM FERRO)

           Sintomas frequentemente associados com a deficiência em ferro incluem palidez, fraqueza, fatiga, dispneia, palpitações, maior sensibilidade ao frio (dificuldade no controle da temperatura corporal), anormalidades na cavidade oral e trato gastrointestinal, menor efetividade do sistema imune e reduzida capacidade para o trabalho, memória, aprendizado e outras habilidades cognitivas. Mesmo a deficiência pré-latente de ferro pode ter significativas consequências à saúde, atribuídas à ameaça de declínio de ferro circulante e limitações na capacidade oxidativa dos tecidos. 

           Por outro lado, o excesso de ferro no organismo – resultante do aumento de ferro não-ligado a proteínas (mais ferro do que a capacidade de armazenamento) – também é prejudicial, incluindo aumento no risco de infecção bacteriana e cardiomiopatia. 


   FATORES AFETANDO A ABSORÇÃO DE FERRO 

           A absorção de ferro é regulada por fatores sistêmicos e da própria dieta. O ferro presente na dieta é em grande parte não-heme, com cerca de 5-10% de ferro heme encontrado em refeições contendo carne. Apesar de ser quantitativamente minoritário na dieta, o ferro heme possui alta biodisponibilidade, com cerca de 20-30% dele sendo absorvido pelo sistema digestivo (!). Já o ferro não-heme – não estabilizado pela proteína heme – é muito mais variável e significativamente afetado por outros componentes na dieta. Apenas 1-10% do ferro não-heme é absorvido. 

-------------

(!) CURIOSIDADE: Essa alta preferência pelo ferro heme está associada com a natureza humana mais carnívora. Para mais informações, acesse: Humanos foram hipercarnívoros durante a maior parte da nossa linhagem evolutiva

------------ 

           Além disso, ferro no ambiente e na dieta é primariamente íon férrico (Fe3+), o qual é insolúvel e, portanto, não é biodisponível. Por isso, antes de ser absorvido, o ferro não-heme precisa ser reduzido de Fe3+ para Fe2+ por agentes de redução (doadores de elétrons) na dieta, como ácido ascórbico (vitamina C) ou por ferro-redutases endógenas, como o citrocromo B (dcytB) duodenal.

         Nesse sentido, a vitamina C é um dos mais efetivos exacerbadores da absorção de ferro não-heme. A adição de um copo de suco de laranja em uma refeição pode aumentar a absorção de ferro em até 2,5 vezes. Outros fatores na dieta como ácido cítrico e outros ácidos orgânicos (ex.: lático, málico, tartárico), etanol e carotenos também otimizam a absorção de ferro heme. Além disso, proteínas de origem animal, como peixe, carne de aves e carnes em geral, aumentam a absorção de ferro, mas ainda é incerto o agente bioativo causal. As carnes também promovem a absorção de ferro não-heme ao ativar a produção de ácido gástrico e melhorar a função do dcytB. Por fim, as carnes são ricas em ferro heme, na forma de hemoglobina e mioglobina. 

            Por outro lado, a absorção de ferro não-heme é inibida por ácido fítico (fitatos) e tanina presente em grãos e cereais, e por polifenóis em alguns vegetais, café, chá e vinho. Esses inibidores se ligam ao ferro não-heme, tornando este não mais disponível para absorção. Dietas ricas em cálcio (íon Ca2+) e proteína de soja também reduzem a absorção de ferro. Cozimento por longo tempo e alta temperatura também pode favorecer a perda de ferro heme. 

- Cálcio: Tanto em ratos quanto em humanos a ingestão de cálcio têm mostrado diminuir a absorção de ferro. É reportado que 165 mg de cálcio na forma de leite, queijo ou cloreto de cálcio reduz a absorção de ferro em 50-60%, com um máximo de inibição em aproximadamente 300 mg de cálcio por refeição. A duração do efeito inibitório é inferior a 2 horas. Porém, já foi mostrado que mesmo a ingestão de 1000 mg (1 g) de cálcio diariamente junto às refeições por um período de 12 meses não é prejudicial ao status de ferro do corpo. 

Fitato: Essa molécula é um forte quelante, se ligando a íons de micronutrientes essenciais, como cálcio (Ca2+), magnésio (Mg2+), ferro (Fe2+) e zinco (Zn2+), e dificultando a absorção desses micronutrientes. Dietas ricas em cascas de grãos e cereais podem diminuir a absorção de ferro. 

Compostos fenólicos: Esses compostos podem formar complexos com o ferro no lúmen intestinal, tornando-o indisponível para a absorção (Ref.1-3). Chá preto pode inibir a absorção de ferro em 79-94% por causa do seu alto conteúdo fenólico. Tomar um copo de chá durante a refeição pode diminuir a absorção de ferro, na média, em cerca de 60%. Uma porção de chá feito com folhas altamente ricas em compostos fenólicos da planta Leucaena glauca, comumente consumido na Tailândia, reduz a absorção de ferro em quase 90% mesmo em uma refeição contendo alimentos diversos (arroz, peixe e vegetais). O efeito inibitório dos compostos fenólicos parece englobar os ácidos fenólicos, como o ácido clorogênico do café, flavonoides monoméricos como os encontrados nos chás de ervas, e os produtos de complexa polimerização encontrados no chá preto e no cacau. 

Café: Assim como é bem estabelecido que os chás diminuem substancialmente a absorção de ferro devido aos compostos fenólicos, o mesmo ocorre com o café, mas em menor intensidade. Por exemplo, em uma refeição contendo hambúrguer, o consumo concomitante de um copo de café ou de um copo de chá diminui em 39% e em 64% a absorção de ferro, respectivamente (Ref.4).     

- Continua após o anúncio -


   QUANTIDADES RECOMENDADAS DE FERRO            

            A quantidade diária de ferro recomendada para ser ingerida varia com a idade, o sexo e a proporção de vegetais na sua dieta. No geral (Ref.5): 

- Crianças: 10 mg/dia 

- Adolescentes: 11 mg/dia (meninos); 15 mg/dia (meninas) 

- Adultos (19-50 anos): 8 mg/dia (homens); 18 mg (mulheres) 

- Adultos (>51 anos): 8 mg/dia - Grávidas: 27 mg/dia 

- Lactantes: 9-10 mg/dia 

          Vegetarianos que não comem carne, frango ou frutos do mar precisam de quase 2 vezes as quantidades de ferro listadas acima, devido ao consumo quase exclusivo de ferro não-heme. Ingestão de alimentos ricos em vitamina C pode ajudar a compensar a dieta planta-baseada (ex.: frutas cítricas, morango, tomate, brócolis). No caso de chá e de cafés, é recomendado tomar essas bebidas com um intervalo de pelo menos 1 hora antes ou depois das refeições se o objetivo é reduzir de forma significativa (~50%) o efeito inibitório da absorção de ferro (Ref.6-7).

 

   HEMOCROMATOSE HEREDITÁRIA 

            A hemocromatose hereditária (HH) é uma doença genética que altera a capacidade do corpo de regular a absorção de ferro, levando o indivíduo a absorver muito desse nutriente. É facilmente tratável, mas se não tratada, pode levar a severos danos em vários órgãos. Descendentes caucasianos do Norte Europeu estão em maior risco de desenvolver HH, e é estimado que 1 milhão de pessoas possuem HH nos EUA. 

           Ao longo de vários anos, o excesso de ferro absorvido vai sendo depositado nas células do fígado, coração, pâncreas, articulações e glândula pituitária em pessoas com HH, levando a doenças como cirrose do fígado, câncer de fígado, diabetes, problemas cardíacos e danos nas articulações. 

          Mutações que causam a hemocromatose hereditária afetam o gene chamado de regulador homeostático de ferro (HFE), este o qual modifica o metabolismo de ferro e está localizado no cromossomo 6. A maioria dos casos de HH resultam de uma mutação comum nesse gene, conhecida como C282Y, mas outras mutações têm sido identificadas, como a H63D. Uma criança que herda duas cópias de um gene mutante (um de cada pai) é altamente provável de desenvolver a doença. No entanto, nem todas as pessoas com duas cópias mutantes desenvolvem sinais e sintomas de HH. Pessoas com apenas uma cópia mutante geralmente não possuem sintomas, ou apenas manifestam sintomas leves. 

           Nesse ponto, é interessante mencionar que um estudo recente, publicado no periódico Medicine & Science in Sports & Exercise (Ref.9), encontrou que atletas com variantes no gene HFE e sob risco de HH, mas com estoques de ferro abaixo de níveis potencialmente tóxicos, possuem uma vantagem competitiva via aumento da capacidade aeróbica. Com a melhora na captação e uso de oxigênio devido aos altos níveis de ferro, atletas com essas variantes parecem ser menos prováveis de sentirem fatiga e mais prováveis de se recuperarem mais rapidamente após exercícios de alta intensidade. 

           Porém, apesar dessa vantagem, pessoas com variantes de risco no gene HFE precisam tomar cuidado com o consumo diário de ferro, evitando, por exemplo, suplementos desse micronutriente. Esse é outro alerta para o uso sem orientação de suplementos nutricionais. Testes genéticos são úteis nesse sentido. 

- Continua após o anúncio -


   CAFÉ, CAFEÍNA E INSULINA 

            É muito comum o consumo de café como o primeiro alimento (bebida, no caso) após o despertar matinal, para só depois se consumir a refeição da manhã (geralmente rica em carboidratos, como pães). Porém, o alto conteúdo de cafeína presente nessa bebida diminui a tolerância de glicose (reduz a sensibilidade à insulina), especialmente se consumida antes da refeição, prejudicando o metabolismo de glicose tanto em indivíduos com peso normal quanto em indivíduos com sobrepeso. 

           Esse efeito da cafeína na glicemia pós-refeição parece ser modulado pelo gene CYP1A2, o qual expressa uma enzima responsável pelo metabolismo da cafeína no fígado. Na verdade, mais de 95% da cafeína é metabolizada via atividade dessa enzima. A ingestão aguda de cafeína reduz a sensibilidade de insulina (dose-dependente) e leva a um estado homeostático de curto prazo no sentido de hiperglicemia (Ref.10-14).  

            Em um estudo publicado em 2020 no periódico British Journal of Nutrition (Ref.15), pesquisadores encontraram que o consumo de café preto (aproximadamente 300 mg de cafeína) 1 hora após acordar e 30 minutos antes da ingestão de glicose aumentava significativamente o pico de glicose e insulina no plasma sanguíneo (diminuição de 50% na tolerância de glicose) quando comparado com um controle.  

            Portanto, para indivíduos tentando controlar bem as taxas de glicose e de insulina no sangue, ou que irão realizar exercícios físicos na parte da manhã (ex.: musculação ou corrida), talvez não seja uma boa ideia tomar café ou outras bebidas/suplementos cafeinados antes da refeição. Indivíduos com diabetes ou pré-diabetes devem ficar atentos com o consumo de alimentos cafeinados em qualquer cenário ou período do dia. 

           Por fim, é bom reforçar que o consumo de café está associado com benefícios à saúde, e efeitos benéficos também são obtidos com o consumo de café descafeinado. Para mais informações, acesse: Café e saúde: O que as evidências científicas dizem?

- Continua após o anúncio -


   CONCLUSÃO 

          Chás e café – especialmente o primeiro – podem diminuir substancialmente a absorção de ferro na dieta. Nesse sentido, para maximizar a digestão desse micronutriente, prefira consumir essas bebidas 1 hora antes ou depois das refeições. Porém, para indivíduos com uma dieta rica e balanceada, contendo carnes, frutas, verduras, entre outros alimentos, essa não é uma real preocupação, exceto talvez se o consumo dessas bebidas é excessivo. Para indivíduos com uma dieta vegetariana ou vegana, onde inexiste ferro heme, a preocupação é real, e é válido também acrescentar junto às refeições alimentos com alto nível de vitamina C, como um suco de laranja, para aumentar a biodisponibilidade do ferro não-heme (presente nas plantas e derivados), além de se evitar tomar chás e cafés junto às refeições. 

          No caso do café, em específico a cafeína, não é uma boa recomendação tomá-lo logo após acordar, antes da primeira refeição da manhã. Isso porque a cafeína diminui substancialmente a sensibilidade da insulina, prejudicando a assimilação de glicose. Esse efeito deletério pode ser um significativo problema para pessoas que realizam atividades físicas intensas na parte da manhã, ou para aqueles que querem estar bem ativos já no começo do dia. Nesse mesmo sentido, indivíduos diabéticos, obesos e pré-diabéticos devem ficar de olho no consumo de cafeína ao longo do dia, independentemente da fonte. 

          IMPORTANTE: Antes de modificar sua dieta visando o tratamento de doenças ou outros problemas de saúde, consulte sempre um profissional nutricionista. Este artigo é apenas um esclarecimento geral sobre o tema.

> Leitura recomendadaDevo me preocupar com a cafeína?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.peertechzpublications.com/articles/IJASFT-4-133.php
  2. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10408690091189194
  3. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1046/j.1365-277X.2003.00497.x
  4. https://academic.oup.com/ajcn/article-abstract/37/3/416/4690726
  5. https://ods.od.nih.gov/factsheets/Iron-HealthProfessional/
  6. https://academic.oup.com/ajcn/article/106/6/1413/4823172
  7. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1046/j.1365-277X.2003.00497.x 
  8. https://www.genome.gov/Genetic-Disorders/Hereditary-Hemochromatosis
  9. https://journals.lww.com/acsm-msse/Abstract/9000/HFE_Genotype_and_Endurance_Performance_in.96128.aspx 
  10. https://care.diabetesjournals.org/content/25/2/364.short
  11. https://link.springer.com/article/10.1186/s12937-016-0220-7
  12. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1871402117300966
  13. https://cdnsciencepub.com/doi/abs/10.1139/apnm-2012-0201
  14. https://cdnsciencepub.com/doi/abs/10.1139/apnm-2012-0201
  15. https://www.cambridge.org/core/journals/british-journal-of-nutrition/article/glucose-control-upon-waking-is-unaffected-by-hourly-sleep-fragmentation-during-the-night-but-is-impaired-by-morning-caffeinated-coffee/398A3EDA8C30EC89ADBB4C74C8E244B0