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Vestido em púrpura: Por que a cor roxa era tão valorizada na Antiguidade?


            Materiais orgânicos como tecidos e seus colorantes (pigmentos) são sensíveis aos efeitos da degradação que emergem com o tempo. Consequentemente, o mais antigo uso identificável de pigmentos por humanos data de algo em torno de 6 mil anos atrás. E entre os pigmentos usados para colorir desde tecidos até paredes na antiguidade, aqueles associados à cor roxa se destacaram, em particular o tão famoso púrpura Tírio (púrpura real ou 'roxo verdadeiro'), os quais eram usados pelos reis e alta sociedade, e frequentemente valiam mais do que o ouro. Mas qual qual a razão por trás do fascínio dos Antigos pelo roxo?

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   PÚRPURA E PODER

          Antigas sociedades no Mediterrâneo representam um notável exemplo do uso de tecidos coloridos como símbolos de status, com o uso de caríssimos pigmentos extraídos de moluscos marinhos gastrópodes uma crescente estratégia comum para marcar diferenciação social durante a Idade do Bronze e a Idade do Ferro em várias culturas ao redor da bacia Mediterrânea. Enquanto que hoje existem várias rotas sintéticas para a produção de pigmentos roxos, na Antiguidade as fontes de pigmentos verdadeiramente roxos eram extremamente escassas, e tanto Gregos quanto Romanos Antigos dependiam de certos moluscos marinhos para obtê-los com uma cor intensa e durável.

            O termo púrpura (ou roxo) - em Grego, πορφύρα - engloba um espectro de cores entre o vermelho e o azul. No espectro de radiação eletromagnética, o roxo é chamado de violeta, englobando comprimentos de onda que vão de 380 nanômetros (nm) até 450 nm. O roxo extraído de moluscos marinhos (chamados coletivamente de murex) é conhecido como 'púrpura Tírio', por causa dos significativos depósitos de conchas encontrados na área de Tiro, no atual Líbano, e do importante papel da pigmentação púrpura na história Fenícia. Aliás, de acordo com alguns acadêmicos, os Fenícios receberam esse nome devido justamente à forte ligação com a indústria de corantes (assumindo que o significado original do termo Grego ϕoῖνιξ - usado hoje para 'Fênix' - era "vermelho-púrpura"). O púrpura Tírio é também conhecido como púrpura imperial e púrpura real devido aos caríssimos tecidos tingidos com esse tipo de pigmento na Antiguidade.

          A primeira inscrição referente ao púrpura Tírio é revelada nas cartas de Amarna, datadas do século XIV a.C., no qual objetos de lã roxo-azulados eram descritos. Outra importante fonte escrita vem de tabelas de barro Micênicas de Cnossos, datada do século XIII a.C. De acordo com os Atos dos Apóstolos (Capítulo XVI) , Lídia de Tiatira, a qual foi batizada pelo Santo Paulo e a primeira documentada conversão para o Cristianismo na Europa, estava envolvida no comércio de pigmentos roxos. O roxo produzido a partir de moluscos murex é mencionado várias vezes na Bíblia, assim como por Homero, Aristóteles, Heródoto, Ésquilo e vários outros. Na Bíblia Hebraica, o púrpura Tírio é mencionado para fazer referência à vestimenta de pessoas de alto status social, através dos termos argaman e tekhelet (traduzidos para 'roxo' e 'azul-violeta', respectivamente). A história desses pigmentos é também cheia de lendas, com a mais famosa sendo aquela descrevendo a descoberta dos moluscos marinhos murex pelo cão de Hércules.


          Um marcante registro escrito do uso de pigmentos roxos no período Bizantino é a inscrição do mosaico do Imperador Bizantino, João II Comnenos (Ίωάννης Βʹ Κομνηνός), em Santa Sofia, a qual era a catedral e o centro espiritual do Império Bizantino, assim como o Partenon para Atenas, o qual era dedicado para a Deusa da Sabedoria, Atena. O mosaico em Santa Sofia é datado do século XII d.C., e a inscrição traz escrito: "João fiel em Jesus Cristo, imperador dos Romanos, dos Comnenos, e rei nascido em púrpura."

          O primeiro uso confirmado do púrpura Tírio em pinturas de parede vem da análise de amostras encontradas nas ilhas de Santorini e Rodes no Mar Egeu (Ref.1). Essas amostras são datadas do século 18-17 a.C., ou seja, há mais de 3700 anos. Os mais antigos fragmentos têxteis tingidos com esse corante são encontrados em locais arqueológicos na Síria e particularmente em Chagar Bazar (século XVIII-XVI b.C.) e em um complexo de tumbas em Tell Mishrife (Qatna). As mais antigas evidências científicas suportando o desenvolvimento de uma indústria de pigmentos roxos a partir de moluscos marinhos estão associadas a vasos de cerâmica de estruturas Minoicas (século XIX-XVIII a.C.) em Alastsomouri-Pefka, na ilha de Creta, no Mar Egeu. Fica sugerido, portanto, que o púrpura Tírio era produzido como tinta desde o final do 3° milênio a.C.

 

          A cidade Grega de Ermioni ficou famosa pelos finos tingimentos com púrpura Tírio, associados a uma indústria que floresceu por mais de 1000 anos, do século VI a.C. até o século VI d.C. Foram os colorantes roxos da cidade de Ermioni que causaram a admiração de Alexandre o Grande quando este tomou Susã no ano de 331 a.C. e encontrou roupas e tecidos diversos tingidos com um intenso roxo no palácio de Dário III.

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   FONTE BIOLÓGIA E COMPOSIÇÃO QUÍMICA

          O púrpura Tírio - 'roxo verdadeiro' - tinha origem de moluscos marinhos da família Muricidae, como as espécies Hexaplex trunculus L. (Murex trunculus), Bolinus brandaris L. (Murex brandaris) e Stramonita haemastoma (Thais haemastoma), todas as três habitantes da região do Mediterrâneo. No entanto, os pigmentos roxos não existem nos moluscos vivos.



          O processo de produção do púrpura Tírio é baseado em compostos percursores extraídos da glândula hipobranquial desses moluscos (localizado sob o manto do animal), e a cor do pigmento derivado irá depender de diferentes parâmetros, como percursores químicos de cada espécie, o processo de produção do pigmento, e os níveis de oxigênio e de luz aos quais os compostos intermediários são expostos. A produção da tinta roxa a partir de moluscos marinhos era sofisticado e requeria múltiplos estágios.

          Primeiro, os moluscos marinhos eram coletados e a extração da glândula requeria conhecimento de biologia e muito mais esforços do que a coleta de plantas para o mesmo fim. Segundo, as instalações de processamento dos extratos precisavam estar localizadas próximas do local onde os moluscos estavam sendo coletados, porque bons resultados só eram alcançados com o material fresco. Por fim, o processo de tingimento era longo e envolvia reações fotoquímicas, enzimáticas e bioquímicas, requerendo também processos de redução e de oxidação que provavelmente levavam vários dias para serem finalizados. No geral, a tonalidade do roxo depende da presença ou da ausência de bromo (Br) na estrutura orgânica do corante, variando de dois átomos de bromo no 6,6'-dibromoindigotina - associado a uma cor violeta-avermelhada - até a ausência de bromo na indigotina azul. O primeiro caso é primariamente associado com o roxo verdadeiro. 

          Devido ao fato da tecnologia de tingimento com púrpura Tírio não ser mais praticada, nosso conhecimento é baseado em fontes textuais como a descrição do naturalista Romano Plínio o Velho (23-79 d.C.), e inferências de tingimento com índigo, o qual, apesar de mais simples, envolve processos similares e é ainda praticado hoje em diferentes partes do mundo. Os pigmentos derivado dos moluscos murex não eram solúveis em água, e requeriam, portanto, um ambiente alcalino. Isso era alcançado pela adição de vários materiais, como natrão natural, ou cinzas de plantas alcalinas. Reconstruir esse estágio de redução, o qual em processos mais modernos é feito com hidrossulfito de sódio em condições não-aeróbicas, é bem mais complicado. 

          A única reconstrução laboratorial efetiva de um possível processo usado na Antiguidade é baseado em bactérias associadas aos próprios moluscos marinhos. Nessa proposta, a solução com o pré-pigmento de interesse é aquecida em temperatura moderada (~50°C) por alguns dias, até se tornar amarelo, indicando uma forma solúvel, e quando a redução é completada. No último estágio, após cerca de três dias, o tecido alvo é mergulhado na solução reduzida para o tingimento e, então, deixado oxidar em ar livre. Uma vez que a oxidação é iniciada, o pigmento percursor se transforma em roxo.

          Apesar de ser possível tingir diretamente de roxo tecidos com o muco excretado pelas glândulas hipobranquiais dos moluscos marinhos - pigmentos roxos são rapidamente formados após exposição ao ar e à luz solar -, o resultado final fica muito inferior quando comparado com a formação inicial de uma solução de tingimento.



          O púrpura Tírio quando apropriadamente produzido e aplicado, não degrada facilmente (como descrito pelo autor do Período Romano Plutarco), e permanece com uma intensa cor por séculos após manufaturado. Junto com o complexo processo de tingimento, e as pequenas quantidades de percursores químicos em cada molusco marinho (~0,9 g no H. trunculus, por exemplo), é fácil, portanto, entender porque os tecidos púrpuras e o roxo verdadeiro em si se transformaram em objetos de desejo e símbolos de nobreza na Antiguidade e períodos Medievais na Europa e outras regiões associadas ao Mediterrâneo. Aliás, é possível extrair somente 1,4 g de pigmento seco de 12 mil moluscos da espécie M. brandaris, e é estimado que 10 mil espécimes de M. trunculus são necessários para tingir 1,5 kg de lã (Ref.1).

          Devido ao alto custo de produção do púrpura Tírio, métodos alternativos também emergiram com a crescente valorização dos pigmentos roxos. Por exemplo, os Egípcios usavam misturas de pigmentos azuis e vermelhos para pintar gessos e paredes com uma cor roxa resultante. Já em algumas regiões certas espécies de líquens (associações de algas e bactérias), quando apropriadamente processadas, eram capazes de fornecer pigmentos de diversas cores, incluindo o roxo, como a espécie Roccella tinctoria.

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   DAVI, SALOMÃO E PÚRPURA

          Enquanto que o púrpura Tírio é amplamente associado com as elites da região do Mediterrâneo, a crescente globalização do mundo no final do 1° milênio a.C. fomentou também um intenso comércio do produto para outras regiões afastadas do Mediterrâneo, alimentando também a indústria local. No antigo Oriente Médio, o roxo se tornou também um símbolo de grande prestígio, com sacerdotes e a realeza, incluindo os Reis David e Salomão e o próprio Jesus de Nazaré, sendo frequentemente descritos na Bíblia vestindo roupas tingidas com essa cor. 


          Em um estudo publicado esta semana no periódico PLOS ONE (Ref.3), pesquisadores descreveram os mais antigos fragmentos de tecido de lã tingidos com o púrpura Tírio no sul do Levante, datado de 1100-900 a.C., no início da Idade do Ferro e remetidos à era do Rei Davi. Em especifico, os fragmentos foram encontrados em uma antiga mina de cobre no Vale Timna, no sul de Israel. Análises revelaram que os pigmentos associados (6-monobromoindigotina e 6,6'-dibromoindigotina) tiveram origem de um local no Mediterrâneo, a mais de 300 km da mina, e extraídos de duas espécies de moluscos marinhos: B. brandaris ou S. haemastoma, e H. trunculus. Até o momento, evidências do uso de púrpura Tírio na região durante o período pré-Romano existia na forma de vestígios de conchas ou de cerâmicas coloridas. O achado reforça o quão influente se tornou o púrpura Tírio no mundo Antigo, mesmo antes da intensificação do comércio global, e confirma as descrições Bíblicas da realeza. 



REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.mdpi.com/2071-1050/11/13/3595/htm 
  2. https://www.repository.cam.ac.uk/handle/1810/290732
  3. https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0245897