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Por que e como os vombates produzem fezes em cubo?

- Atualizado no dia 22 de outubro de 2024 -

          Vombates são animais herbívoros nativos da Austrália que lembram grandes bichos de pelúcia. Mas a mais notável característica desses animais é o formato cúbico das suas fezes, algo único no Reino Animal. Como essas fezes são produzidas? Qual a função biológica do atípico formato?

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   VOMBATE-COMUM

          A família Vombatidae engloba dois gêneros de mamíferos marsupiais hoje ainda existentes representados por três espécies: Vombatus ursinus, Lasiorhinus latifrons e Lasiorhinus krefftii. Habitando a Austrália, todas as espécies enfrentam potenciais ameaças por causa da interferência humana, especialmente em termos de destruição de habitat e da introdução de um ácaro parasita da espécie Sarcoptes scabiei, a qual causa uma devastadora doença chamada de sarna sarcóptica nesses animais.

          O vombate-comum (Vombatus ursinus) atualmente não está ameaçado em termos de conservação da espécie, e é encontrado ao longo do leste de Queensland e New South Whales, e também em Victoria,  Ilha Flinders, Tasmânia e algumas partes ao Sul da Austrália. Essa espécie habita áreas temperadas com condições bem adequadas para se cavar, incluindo florestas abertas e áreas costeiras montanhosas com arbustos, e elevações variando do nível do mar até altitudes de 1800 metros. Existem três subespécies reconhecidas habitando diferentes regiões na Austrália: V. ursinus hirsutus, V. ursinus ursinusV. ursinus tasmaniensis.

          Com cerca de 1 metro de comprimento (0,7-1,1 m) e uma massa corporal variando de 20 a 39 kg quando adulto, o vombate-comum possui cauda curta e grosa, pequenos olhos pretos e pequenas orelhas arredondas. Seus membros são curtos, musculosos e trazem robustas garras especializadas em cavar. A pelagem é espessa e pode variar de cinza-amarronzado até enegrecida com manchas cinzas, e, ao contrário das duas espécies do gênero Lasiorhinus, não possuem pelos no rinário (região geralmente nua ao redor do nariz de mamíferos). A subespécie V. ursinus hirsutus é a maior (84-115 cm, 22-39 kg) entre os vombates-comuns, e com coloração da pelagem predominantemente marrom.

Vombate da espécie Lasiorhinus latifrons. Com comprimento de até 94 cm e massa corporal de até 32 kg, pode viver até 35 anos. Quase ameaçada de extinção, declínios populacionais dessa espécie têm sido associados com atividades humanas e introdução de plantas invasivas que são tóxicas para esse marsupial. Ref.9-10

Vombate da espécie Lasiorhinus krefftii, a qual está atualmente em crítico perigo de extinção. A espécie pode alcançar 1 metro de comprimento e até 40 kg de massa corporal. Ref.11

          O vombate-comum tipicamente vive de 12 a 15 anos, mas sua longevidade pode alcançar os 30 anos em cativeiro. Após o nascimento, o filhote passa a viver na bolsa da sua mãe por cerca de 6 meses e alimentando-se do leite materno até os 15 meses de idade. O filhote fica com sua mãe até os 18-20 meses de idade, até ganhar sua independência, e alcança maturidade sexual aos 2 anos. 

Filhote de vombate-comum no marsúpio da mãe, na Tasmânia. Filhote de vombate-comum no marsúpio da mãe, na Tasmânia. Uma vez grávida, a fêmea atravessa um período de ~22 dias de gestação. O recém-nascido (15 mm de comprimento e 0,5 g de massa) migra da cloaca da mãe para a bolsa (marsúpio) onde se anexa à teta. A bolsa cresce progressivamente em todas as direções, acompanhando o crescimento do filhote. Após 6 meses, o bebê está bem desenvolvido e com 1-1,4 kg de massa, e é quando a cabeça começa a emergir para fora da bolsa; nesse ponto, o filhote é comumente observado ingerindo gramíneas no solo junto com a mãe e eventualmente começa a sair temporariamente da bolsa. Quando alcança próximo de 5 kg (9-10 meses de idade), o filhote abandona a bolsa de forma permanente. Ref.7


            

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Hipótese: "Vombates possuem uma bolsa com abertura virada para trás para evitar que terra entre dentro dela durante atividade fossorial da mãe." 

Como mostrado no vídeo acima, a abertura da bolsa dos vombates é no sentido posterior, oposta à cabeça da mãe. Como está no sentido contrário à típica movimentação de terra durante atividade fossorial, é especulado que esse traço anatômico é uma adaptação para proteger os filhotes em desenvolvimento, limitando a entrada de terra e contaminantes dentro da bolsa.

Porém, o desenvolvimento da bolsa não é inteiramente consistente com essa hipótese (Ref.7). Esse desenvolvimento começa oposto à abertura (anterior → posterior) e progride lateralmente ao longo do processo reprodutivo.

É também incerto se fêmeas com uma bolsa distendida (carregando um filhote de considerável porte) engajam com escavação de terra de forma frequente. 

> Além dos vombates, marsupiais peramelemorfos (ordem Peramelemorphia) também possuem uma bolsa com abertura virada para trás. E, assim como os vombates, possuem hábitos fossoriais e os membros anteriores são fortes e adaptados para cavar na busca por alimento (invertebrados e fungos subterrâneos). Ref.14-17

 
Peramelemorfo da espécie Isoodon auratus. Existem atualmente em torno de 20 espécies vivas dessa ordem, várias ameaçadas ou em perigo de extinção

> A bolsa dos vombates é localizada dorsoventralmente no corpo, está sempre aparente independentemente do estágio reprodutivo e possui duas tetas, uma em cada lado lateral da abertura.
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          Passando grande parte do dia abrigados em buracos escavados de 8-20 metros - para economizar energia podem ficar até 16 horas dormindo nesses buracos -, os vombates-comuns são especialmente ativos ao anoitecer, aproveitando as temperaturas mais amenas da noite. Porém, em estações mais frias, esses animais podem ser vistos se banhando no sol durante o dia. É reportado que podem alcançar próximo de 20 km/h durante corridas (Ref.7).

           A combinação de uma baixa atividade metabólica e um longo trato digestivo (intestino de 9 metros) permite que o vombate-comum se alimente de vegetação de baixa qualidade nutricional. Folífero (alimentação rica em folhas), a dieta dessa espécie consiste basicamente de gramíneas nativas, musgo e, às vezes, arbustos, raízes, tubérculos e cascas. Microrganismos simbiontes no intestino do vombate-comum ajudam este a digerir as paredes celulares das folhas e outras partes das plantas.

          Nesse último ponto, temos um processo fisiológico mais do que curioso. Os vombates são os únicos animais conhecidos que defecam fezes na forma de cubo.

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Curiosidade: Vombates gigantes são animais extintos da família Vombatidae com uma massa corporal maior ou igual a 70 kg. Das espécies conhecidas que evoluíram gigantismo, a mais notável é a Phascolonus gigas, a qual possuía ~600 kg de massa corporal! Sugestão de leitura: Vombate gigante descrito em detalhes, a partir de fósseis datados em 80 mil anos atrás

> Culturalmente importantes para povos Aborígenes, o vombate-comum é um verdadeiro engenheiro de ecossistemas ao avidamente e continuamente cavar e pastar. Possui um metabolismo anormalmente baixo: 40-60% daquele esperado para um mamífero herbívoro com mais de 10 kg. Pode viver por mais de 30 anos em cativeiro.

> Vombates não são mamíferos sociais, mas toleram outros indivíduos da mesma espécie em áreas de forrageio. Exibem hábitos predominantemente, mas não exclusivamente, noturnos. Tipicamente forrageiam por 2-6 horas por dia antes de retornar aos buracos cavados (abrigos). Fora dos buracos, gastam 80-90% do tempo pastando. 

Ilustração mostrando um típico buraco cavado e abrigado por um vombate (no caso, o animal está na "câmara de dormir"). Esses túneis ou buracos fornecem proteção contra potenciais predadores (ex.: dingos) e são bloqueados com o traseiro endurecido desses animais. Ref.7

Vombates são os maiores herbívoros fossoriais (adaptados a cavar e a viver debaixo do solo) do mundo.

> A subordem Vombatiformes contém 8 famílias, incluindo a Vombatidae. A Phascolarctidae é a única outra família contendo uma espécie ainda viva, o famoso coala (Phascolarctos cinereus).

> Com 7 cromossomos distintos (2n = 14), o vombate-comum possui um genoma com ~3,5 Gb de comprimento e trazendo aproximadamente 22 mil genes codificantes de proteínas. Ref.7

> Declínios populacionais das espécies do gênero Lasiorhinus parecem ter tido início entre 1870 e 1920, associados à competição com coelhos introduzidos por europeus colonizadores e ações de controle desses animais por donos de terras. Atualmente, mudanças climáticas são outra séria ameaça aos vombates. Ref.12

> Divergência evolucionária entre os gêneros Lasiorhinus e Vombatus parece ter ocorrido há ~8 milhões de anos. Ref.13

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   COCÔ EM CUBO

           Uma espécie bem territorial, o vombate-comum - assim como outras espécies de vombate - é facilmente identificável em uma área por causa do rastro deixado de fezes em formato de cubo. E aqui fica a pergunta que não quer se calar: como um formato quadrado de um material maleável é formado ao longo do tubo intestinal e sai de um ânus redondo*? E qual é o propósito dessas distintas fezes?

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*Aliás, é um mito ainda disseminado de que os vombates possuem um ânus quadrado, algo historicamente e erroneamente sugerido devido ao formato de cubo das fezes desses animais.

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         Em 2018, em um estudo apresentado no Bulletin of the American Physical Society (Ref.5), pesquisadores da Universidade da Califórnia, San Diego, investigaram as estruturas e mecânicas do intestino dos vombates permitindo a expulsão de fezes em cubos. Dissecando indivíduos mortos por acidente de estrada na Tasmânia, eles revelaram que na porção final do intestino (8% do comprimento total) as fezes mudavam de um estado semi-líquido para um estado sólido composto de cubos com comprimento de 2 centímetros. Essa variação de forma foi associada com uma variação azimutal nas propriedades elásticas da parede intestinal, com dois canais no final do intestino caracterizados por uma grade capacidade elástica que facilita a saída dos cubos sem deformação.

           Já em um estudo publicado em 2021 no periódico Soft Matter (Ref.6), pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Geórgia, EUA, dissecaram outros dois vombates-comuns e testaram as camadas de músculo e tecido do intestino, encontrando regiões de variadas espessuras e durezas. Eles então criaram um modelo matemático 2D para simular como essas regiões expandiam e contraíam com os ritmos da digestão. Segundo sugerido pela simulação, as seções intestinais contraem ao longo de vários dias, espremendo as fezes à medida que as paredes intestinais absorvem os nutrientes e água ali presentes, com as partes mais duras contraindo mais rápido do que as partes mais macias. As regiões intestinais mais macias espremem as fezes mais devagar e moldam os cantos finais do cubo.


Modelo 3D gerado a partir das simulações 2D, se aproximando do formato cúbico

           Em outros mamíferos, os movimentos peristálticos ondulados dos músculos intestinais são consistentes em todas as direções. Nos vombates, as contrações irregulares ao longo de vários ciclos acabam resultando em cubos firmes e com lados planos, os quais são permitidos saírem na porção final do intestino sem serem deformados devido à substancial maior elasticidade dessa região.


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          Porém, o propósito das fezes cúbicas é ainda incerto. Os pesquisadores do estudo de 2021 especularam que as fezes em cubo evoluíram no sentido de otimizar a marcação de território desses animais (!). Os vombates costumam subir frequentemente em rochas e troncos, e as fezes na forma de cubo não rolam com facilidade, permitindo marcar com maior segurança e estabilidade o território em uma área elevada ou inclinada. 

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CURIOSIDADE: Às vezes, vombates em cativeiro costumam produzir fezes que não são tão cúbicas quanto aquelas de espécimes selvagens. Quanto mais quadradas as fezes, mas saudável é o vombate.

(!) Vombates produzem 80-100 cubos de fezes por noite, os quais são frequentemente depositados ao redor da entrada dos seus túneis ou próximo/sobre pontos proeminentes (ex.: pedras, troncos, elevações topográficas). Esses cubos de fezes parecem ter função comunicativa tanto visual quanto olfativa, incluindo provavelmente informações como identidade, sexo, idade, uso de buracos, localização (ex.: marcar território) e período de cio. Ref.7

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://animaldiversity.org/accounts/Vombatus_ursinus/
  2. https://www.qld.gov.au/__data/assets/pdf_file/0020/67430/common-wombat.pdf
  3. https://link.springer.com/article/10.1186/s13071-020-04565-6
  4. https://ielc.libguides.com/sdzg/factsheets/wombats/population
  5. http://meetings.aps.org/Meeting/DFD18/Session/E19.1
  6. Yang et al. (2021). Intestines of non-uniform stiffness mold the corners of wombat feces. Soft Matter, Issue 3. https://doi.org/10.1039/D0SM01230K
  7. Carver et al. (2024). The Distinctive Biology and Characteristics of the Bare-Nosed Wombat (Vombatus ursinus). Annual Review of Animal Biosciences, Volume 12, 135-160. https://doi.org/10.1146/annurev-animal-021022-042133
  8. Knoblauch et al. (2023). Abundance and population growth estimates for bare-nosed wombats. Ecology and Evolution, Volume 13, Issue 9, e10465. https://doi.org/10.1002/ece3.10465
  9. https://lonepinekoalasanctuary.com/southern-hairy-nosed-wombat/
  10. Camp et al. (2020) Dual-locus DNA metabarcoding reveals southern hairy-nosed wombats (Lasiorhinus latifrons Owen) have a summer diet dominated by toxic invasive plants. PLoS ONE 15(3): e0229390. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0229390
  11. https://essaussie.org/australia-endangered-species/queensland-northern-hairy-nosed-wombat-lasiorhinus-krefftii/
  12. Swinbourne et al. (2017). Historical changes in the distribution of hairy-nosed wombats (Lasiorhinus spp.): a review. Australian Mammalogy, 39(1), 1. https://doi.org/10.1071/AM15046
  13. https://peerj.com/articles/12982/
  14. https://nhpbs.org/wild/peramelemorphia.asp
  15. Warburton & Travouillon (2016). The biology and palaeontology of the Peramelemorphia: a review of current knowledge and future research directions. Australian Journal of Zoology, 64(3), 151. http://dx.doi.org/10.1071/ZO16003
  16. https://link.springer.com/article/10.1186/1741-7007-11-52
  17. https://sites.flinders.edu.au/vamp/fossils/vertebrate-fossils/marsupials/peramelemorphia/