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Quais as evidências para o uso de nitazoxanida no tratamento da COVID-19?

 

- Atualizado no dia 6 de janeiro de 2021 -

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           No início desta semana, o Ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, disse, em um anúncio durante cerimônia no Palácio do Planalto, que o vermífugo nitazoxanida (Anitta) apresentou resultados positivos no tratamento precoce de pacientes com COVID-19 dentro de uma pesquisa coordenada pela pasta. Porém, ainda não existe estudo publicado em periódico sobre esses resultados. De qualquer forma, além do anúncio do governo federal, quais as evidências científicas suportando o uso desse fármaco contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2)?

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   NITAZOXANIDA (NTZ)

          Nos EUA, o fármaco nitazoxanida foi primeiro aprovado em 2002 como uma terapia antiparasítica para diarreia e enterites engatilhadas pelos parasitas Cryptosporidium spp. e Giardia lamblia. Sua ação baseia-se na disrupção da respiração mitocondrial dos organismos parasitários alvos. Em relação à sua segurança, é reportado nos EUA que mais de 75 milhões de pacientes (incluindo crianças) já usaram o medicamento para o tratamento de parasitas intestinas sem experienciar sérios efeitos colaterais (Ref.2). Somando-se ao fato de ser segura e eficaz contra parasitas, a nitazoxanida - vendida no Brasil sob os nomes comerciais Azox e Annita - possui baixo preço.

          Além da sua ação antiparasitária já bem estabelecida na literatura acadêmica, a nitazoxanida já revelou, in vitro, ação inibitória contra um amplo espectro de bactérias Gram-negativas e Gram-positivas, junto com cepas replicantes e não-replicantes da bactéria Mycobacterium tuberculosis. Em estudos clínicos in vivo envolvendo animais não-humanos, o fármaco também mostrou-se um tratamento promissor para a infecção com a bactéria resistente a antibióticos Clostridium difficile

           Somando-se à atividade antibacteriana, a ação desse medicamento também engloba propriedades antivirais, estas as quais foram primeiro evidenciadas durante o tratamento de pacientes com diarreia que também estavam infectados com o vírus HIV, vírus da hepatite B (HBV), ou com o vírus da hepatite C (HCV). Apesar de limitados, estudos nos últimos anos tem reportado que a nitazoxanida possui alguma eficácia ou potencial eficácia no tratamento de infecções virais causadas pelo Influenza (gripe) e por coronavírus diversos. Existe também evidência clínica de ação antiviral contra rotavírus, norovírus, adenovírus, entre outros.

             A atividade antiviral da nitazoxanida parece estar relacionada à depleção intracelular de íons Ca2+ armazenados ATP-sensitivos levando à fosforilação da proteína cinase R (PKR) e o fator de iniciação 2-alfa eucariótico de translação (eIF2α), desregulando o maquinário de translação celular, e prejudicando a reprodução e disseminação viral (Ref.3).

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   CORONAVÍRUS E NITAZOXANIDA

          Estudos in vitro têm revelado que o componente ativo da nitazoxanida (tizoxanida) consegue inibir in vitro a replicação do coronavírus canino S-378 em células A72 infectadas. Já a nitazoxanida mostrou-se efetiva para inibir o coronavírus bovino (L9), coronavírus murino, vírus da hepatite de ratos (A59), e coronavírus entérico humano (4408) em culturas de linhagens celulares DBT e 17Cl-1 (no caso, o efeito antiviral envolveu inibição da expressão da proteína viral N). Ambos (nitazoxanida e tizoxanida) também já mostraram inibir o crescimento do coronavírus MERS-CoV em linhagens celulares LLC-MK2 [concentração inibitória IC50 de 0,92 μg/ml (nitazoxanida) e 0,83 μg/ml (tizoxanida)].

           Em termos de estudos clínicos publicados reportando efetiva ação da nitazoxanida in vitro, temos um breve reporte de fevereiro na Nature (Ref.4) em culturas com células Vero E6, com resultados indicando inibição do SARS-CoV-2 em baixas concentrações micromolares (EC50 = 2,12 μM) e sugerindo grande potencial como tratamento. Já mais recentemente, em um estudo preprint de setembro na plataforma bioRxiv (Ref.5) usando células Vero E6, pesquisadores também encontraram que a nitazoxanida era efetiva em inibir a replicação do SARS-CoV-2 (EC50 = 4,90 μM).

          Em um estudo clínico prospectivo não-randomizado, sem grupo de controle e de pequeno porte, explorando três cenários clínicos de uso da nitazoxanida para o tratamento de COVID-19 na Cidade do México e na Cidade de Toluca, os pesquisadores reportaram segurança e potencial benefício desse medicamento no tratamento da doença, incluindo casos severos. Foram analisados três grupos de pacientes: 20 mulheres (17 grávidas e 3 no pós-parto); 5 pacientes hospitalizados, incluindo 2 sob ventilação mecânica; e 16 pacientes na área ambulatória. O estudo foi publicado no final de setembro no periódico The Journal of Infection in Developing Countries (Ref.6).

          Atualmente, existem 14 testes clínicos usando nitazoxanida isolada ou em combinação com outros medicamentos (ivermectina ou hidroxicloroquina), incluindo países como Egito, EUA, Brasil e México. O estudo Brasileiro foi o único até o momento a reportar resultados preliminares, e aparentemente positivos. Porém, nenhum desses estudos (preprint ou revisado por pares) foi ainda publicado.

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   ESTUDO BRASILEIRO - ANÚNCIO DO GOVERNO

          O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) "apresentou" recentemente resultados positivos de um estudo clínico apoiado pela Finep (Financiadora de Inovação e Pesquisa do MCTI) visando o tratamento precoce de pacientes com COVID-19 (até 3 dias após o início dos sintomas). Segundo o anúncio do governo, além da  de ter apresentado significativa redução da carga viral, o que significa menor probabilidade de transmissão, os pacientes que receberam a medicação não evoluíram para a forma mais grave nem tampouco tiveram necessidade de internação (Ref.7). "Nós estamos anunciando algo que irá começar a mudar a história da pandemia", disse o Ministro da Ciência Marcos Ponte.

          Segundo a coordenadora do Estudo, professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Patrícia Rocco, a terceira e última fase da pesquisa, contou com a participação de 1575 voluntários que apresentaram sintomas, como febre, tosse seca e fadiga - um dos voluntários inclusive foi o Ministro Marcos Pontes. Os voluntários foram testados por sete diferentes centros de saúde do País. Dos que testaram positivo, parte recebeu a Nitazoxanida (500 mg três vezes ao dia) e a outra metade, placebo. Os pacientes receberam acompanhamento por 7 dias.

          Ainda segundo a pesquisadora, além de ter se mostrado eficaz no combate ao SARS-CoV-2, a nitazoxanida conta com inúmeras vantagens aqui no Brasil, como baixo custo e ampla distribuição no território nacional, podendo ser utilizada por via oral. Os resultados finais do estudo foram encaminhados para publicação em uma revista internacional. É incerto ainda se o estudo foi randomizado e duplo-cego, e o quão eficaz foi a redução da carga viral nos pacientes analisados.

          De acordo com a Finep, os estudos com a nitazoxanida começaram em fevereiro com a análise de 2 mil fármacos, que foram testados e filtrados com o auxílio de simulações computacionais. Em testes clínicos in vitro, realizados no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), do CNPEM, a nitazoxanida apresentou redução de 94% da carga viral em culturas de células infectadas pelo vírus. Com base nesse resultado, foi aprovada a realização do estudo clínico.


   ESTUDO BRASILEIRO - REALIDADE

           O estudo anunciado pelo governo e conduzido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro foi publicado hoje como preprint (ainda não revisado por pares) na plataforma medRxiv (Ref.8). No entanto, os resultados do estudo não corroboram as conclusões anunciadas pelo governo, afirmando que o medicamento nitazoxanida (Anitta) é "totalmente eficaz" no combate à COVID-19, na redução de probabilidade de transmissão, e na prevenção de evolução para a forma mais grave da doença e de necessidade de internação. Houve inúmeras críticas  de cientistas aqui no país em relação ao apresentado no preprint e ao anunciado pelo governo (Ref.7).

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ATUALIZAÇÃO (06/12/21): O estudo foi publicado agora no periódico European Respiratory Journal após revisão por pares. 

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           O estudo é de boa-alta qualidade (randomizado, duplo-cego, placebo-controlado e de moderado porte), porém ainda assim é muito limitado no seu próprio objetivo.

           De 8 de junho até 20 de agosto, 1575 pacientes foram avaliados para seleção, e, destes 392 (198 no placebo e 194 na nitazoxanida) foram efetivamente analisados no estudo clínico. Os pacientes no grupo do medicamento receberam uma solução oral de nitazoxanida (25 mL, 20 mg/mL) três vezes ao dia durante 5 dias, com início até 3 dias após o aparecimento dos sintomas.

            Até o quinto dia de avaliação, não houve diferença observada entre a resolução dos sintomas entre os dois grupos analisados (placebo e medicamento), mas após mais 1 semana 78% no grupo da nitazoxanida e 57% no grupo de placebo tiveram os sintomas resolvidos (reporte dos pacientes). Em termos de carga viral, 29,9% dos pacientes na nitazoxanida e 18,2% dos pacientes no controle testaram negativo para o SARS-CoV-2 após o curso de tratamento, com claro sinal de redução da carga viral com o uso de nitazoxanida em comparação com o placebo - corroborando ação antiviral demonstrada in vitro. O medicamento também se mostrou seguro para uso em infectados com o SARS-CoV-2.

           Porém, temos muitos poréns. A maioria dos pacientes selecionados para o estudo eram jovens (18 a 39 anos), todos apresentando COVID-19 leve (um dos critérios para não-exclusão), poucos tinham comorbidades prévias (12-18%) e o uso concomitante de medicamentos para outros fins era infrequente (<20%). Ou seja, a maioria dos participantes já possuíam um baixo risco de desenvolverem COVID-19 grave ou de serem hospitalizados. Essa limitação é amplificada pelo número relativamente moderado de participantes (<400).

            Além disso, os autores do estudo deixaram claro que o medicamento não mostrou prevenir hospitalização, e o tempo de acompanhamento clínico dos pacientes foi pequeno (5 dias). Obviamente, nenhuma morte foi reportada em nenhum dos grupos analisados (placebo e medicamento). E mais: apenas três sintomas foram analisados - tosse seca, febre e fatiga -, apesar de sabermos que a COVID-19 é multissistêmica e lesões de pneumonia são inclusive observadas em pacientes assintomáticos. O ideal seria um tempo de acompanhamento dos pacientes por 28 dias para a avaliação das taxas de mortalidade.

          Esse estudo, apesar de ter demonstrado uma moderada redução na carga viral de pacientes com COVID-19 leve, deixa incerto o real significado da nitazoxanida no tratamento precoce de pacientes com a doença. Será que a redução observada na carga viral faria diferença na recuperação dos pacientes analisados? Existe algum impacto futuro nas taxas de hospitalização? Existe algum impacto nas taxas de transmissão da COVID-19 a nível comunitário? De fato, durante o acompanhamento clínico, terapia com nitazoxanida não acelerou a resolução dos sintomas.

          É bom lembrarmos do Remdesivir, que mesmo mostrando uma aceleração na recuperação de casos leves-moderados hospitalizados, não mostrou possuir efeito nas taxas de mortalidade.

           Os resultados do estudo indicam algum potencial do medicamento, mas estudos de maior porte, de mais longa duração e incluindo pacientes de maior interesse e diversos precisam ser feitos para quaisquer conclusões sobre o a nitazoxanida no tratamento da COVID-19.

           Portanto, o anúncio "escandaloso" feito pelo governo foi irresponsável, podendo levar as pessoas a acharem que o medicamento é comprovadamente efetivo no tratamento da COVID-19. Isso pode dar a falsa sensação de segurança para as pessoas de que basta tomar Anitta como tratamento precoce para resolver o curso da doença. NENHUMA das sérias limitações do estudo foram mencionadas, e isso explica o porquê daquela vexatória apresentação do gráfico genérico no Palácio do Planalto sem apresentar os reais resultados do estudo e o real significado desses resultados.

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   CONCLUSÃO

           Apesar dos promissores resultados em testes in vitro, a eficácia da nitazoxanida em pacientes com COVID-19 ainda é incerta. A hidroxicloroquina e o Remdesivir se mostraram muito mais promissores in vitro do que a nitazoxanida, porém enquanto a hidroxicloroquina é comprovadamente ineficaz mesmo no tratamento precoce, o remdesivir recentemente falhou em demonstrar eficácia no estudo clínico randomizado de grande porte da Organização Mundial de Saúde (SOLIDARITY) (Ref.8), apesar de um estudo clínico prévio randomizado também de grande porte sugerindo alguma eficácia clínica (Ref.9). E é importante destacar: a eficácia da atividade antiviral da nitazoxanida no tratamento de pacientes com doenças diversas ainda é suportada por evidência científica muito limitada.


> Leitura recomendada: A Ivermectina é eficaz para o tratamento da COVID-19?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7332204/
  2. https://link.springer.com/article/10.1186/s43141-020-00055-5
  3. https://journals.physiology.org/doi/full/10.1152/ajplung.00170.2020
  4. https://www.nature.com/articles/s41422-020-0282-0
  5. https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2020.09.24.312165v1
  6. https://www.jidc.org/index.php/journal/article/view/33031085
  7. http://www.finep.gov.br/noticias/todas-noticias/6229-estudos-comprovam-que-o-vermifugo-anitta-e-eficaz-no-combate-a-covid-19
  8. https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.10.15.20209817v1.full.pdf
  9. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2007764
  10. https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.10.21.20217208v1.full.pdf 
  11. https://www.sciencemag.org/news/2020/10/another-piece-populist-propaganda-critics-slam-brazilian-government-s-new-covid-19-drug