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Potencial sinal de vida encontrado em Vênus

- Atualizado no dia 17 de março de 2023 -

           Apesar de possuírem massa e dimensões similares, a Terra e seu vizinho Vênus possuem uma superfície e uma atmosfera bem distintas. Enquanto nosso planeta possui temperaturas e pressões na sua superfície convidativas à emergência e manutenção da vida como a conhecemos, Vênus possui uma superfície com temperatura média de 464°C - devido ao violento efeito estufa causado pela sua atmosfera - e uma pressão atmosférica 92 vezes maior. Porém, nas altas altitudes da atmosfera Venusiana existe, de fato, séria especulação sobre a potencial presença de vida. E, em um estudo publicado hoje no periódico Nature Astronomy (Ref.1), pesquisadores confirmaram a presença de substancial quantidade de fosfina nas nuvens ácidas de Vênus, um composto inorgânico que não deveria estar ali presente em quantidades detectáveis, pelo menos não com base no nosso atual conhecimento de química abiótica e da atmosfera Venusiana. E fosfina é um importante indicador astrobiológico de vida em ambientes oxidantes, como a atmosfera de Vênus.

 > O início deste artigo faz uma revisão geral sobre como vida seria possível em Vênus. No tópico 'FOSFINA EM VÊNUS' o novo estudo é explorado.  

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   VÊNUS E O POTENCIAL DE VIDA    

          Vênus, o segundo planeta mais próximo do Sol, possui uma atmosfera bastante densa composta por dióxido de carbono (~96,5%), seguido por nitrogênio molecular (~3,5%), e quantidades traços de dióxido de enxofre, água e de ácido sulfúrico (I). A atmosfera de Vênus possui 93 vezes mais massa que a atmosfera da Terra e uma pressão atmosférica 92 vezes maior. Somando à alta pressão (exacerbando o efeito estufa), a grande quantidade e alta concentração de gás carbônico além de dióxido de enxofre, ambos gases estufa, prendem bastante calor que chega do Sol, mesmo com suas densas nuvens altamente reflexivas (o planeta reflete 75% da radiação solar incidente). Isso resulta em temperaturas superficiais próximas de 480°C, com uma média latitudinal global de 464°C.

> (I) Leitura recomendada: Por que Vênus, e não Mercúrio, é o planeta mais quente do Sistema Solar?

          No entanto, enquanto a temperatura média na superfície de Vênus é altíssima independentemente da latitude examinada, a temperatura cai bruscamente com o aumento da altitude devido à crescente rarefação do ar atmosférico. A camada inferior das nuvens de Vênus (47,5-50,5 km) é especialmente visada para a exploração de possível vida, devido às condições favoráveis para a manutenção de organismos microbianos anaeróbicos, incluindo temperaturas e pressões (~60°C e 1 atm), e a presença de mícron-aerossóis de ácido sulfúrico (os quais concentram água da atmosfera Venusiana).  

          A habitabilidade das nuvens de Vênus tem sido alvo de discussões por várias décadas, apesar de bem menos populares do que aquelas visando outros candidatos mais promissores, como Marte ou Encélado (II). Desde o final da década de 1990, ficou bem estabelecido que as condições entre a atmosfera inferior e média de Vênus eram favoráveis à vida terrestre, e que condições em mais altas altitudes iriam congelar mas não necessariamente matar microrganismos. Condições físico-químicas nessas nuvens carregam potencial biótico devido especialmente à presença de compostos de enxofre, CO2, nitrogênio e água, e moderadas temperaturas (0-60°C) e pressões (~0,4-2 atm).

> (II) Leitura recomendada: Encélado: O satélite em Saturno capaz de sustentar a vida

          No caso da disponibilidade de água, valores de vapor de água (razões misturadas) a altitudes de 40 km e maiores são estimadas de variarem de 20 até 50 partes por milhão (ppm) a latitudes de 60°, e acima de 500 ppm próximo do equador, com estimativas globais sugerindo misturas de razões de 40-200 ppm. Devido à natureza higroscópica do ácido sulfúrico, grande parte dessa água provavelmente se encontra na forma de gotículas ou de aerossóis nas nuvens Venusianas, formando verdadeiros mini-habitats com água líquida para vida microscópica.

          Nas nuvens inferiores é onde teríamos as maiores densidades de partículas/gotículas (70% da massa total). Em altitudes variando de 47,5 até 50,5 km, as densidades de partículas são reportadas de serem em torno de 50 partículas/cm3 para as partículas de maiores dimensões (2-8 μm de diâmetro) e 600 partículas/cm3 para as de menores dimensões (~0,4 μm de diâmetro). Entre as distribuições dessas partículas, aquelas de maior massa estão associadas com dimensões de ~5-15 μm nas nuvens inferiores e de ~2-15 μm nas nuvens médias (50,5-56,5 km). As massas estimadas variam de ~0,1-100 e ~0,01-10 mg/m3 para as nuvens inferiores e médias, respectivamente.

          Em comparação, os aerossóis biológicos primários na atmosfera da Terra carregando diferentes materiais bióticos (bactérias, esporos de fungos, fragmentos de hifas fungais, pólen, esporos de plantas, detritos de plantas e partículas virais) variam de dimensões nanométricas até submilimétricas, ou seja, englobando obviamente partículas micrométricas (μm). De fato, a média dimensional de aerossóis biológicos na atmosfera Terra varia de ~4 μm nas regiões continentais até ~2 μm nas regiões costeiras, e com as bactérias representando os principais habitantes dessas partículas (~104 células/m3).

          Nas nuvens inferiores de Vênus, as cargas estimadas de massa (~0.1–100mg/m3) são comparáveis ao valor de biomassa para os aerossóis terrestres (~44 mg/m3), enquanto que o espectro dimensional de partículas (≤8μm) abre a possibilidade de que essas nuvens podem carregar de forma similar e em suspensão agregados de células únicas ou comunidades microbianas agregadas.

          Nesse sentido, análises espectroscópicas das nuvens de Vênus nas últimas décadas têm resultado em padrões espectrais (transmissão e absorção) similares - apesar de altamente especulativos - a nuvens simuladas de aerossóis contendo altas quantidades de cofatores bióticos ferro-baseados relativos à bactéria Escherichia coli. Proteínas baseadas em sulfeto e em ferro derivadas das bactérias Acidithiobacillus ferrooxidans e Thiobacillus ferrooxidans também possuem um espectro UV que é altamente similar à Vênus.



   SOBREVIVÊNCIA EM VÊNUS

           Vários microrganismos terrestres podem servir como relevantes análogos para a vida nas nuvens de Vênus, as quais são enriquecidas com ácido sulfúrico, e componentes anaeróbicos essenciais, como CO2 e compostos contendo ferro. Na Terra, microrganismos aéreos e cultiváveis têm sido encontrados com aeronaves especializadas e balões em altitudes variando de 15 a 42 km.

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           Para as nuvens de Vênus, qualquer potencial biomassa claramente seria dependente da disponibilidade de água, carbono, e outros nutrientes biogênicos (enxofre, nitrogênio, fósforo, boro e metais de transição). A redução fototrópica do abundante CO2 atmosférico de Vênus seria a principal fonte de carbono para as estruturas orgânicas, com um influxo atenuado de radiação ultravioleta (UV) dentro das camadas de nuvens fornecendo a energia necessária para essas reações químicas. No caso de enxofre e de fósforo, ambos já foram detectados via radiometria fluorescente de raios-X das sondas VeGa 1 e VeGa 2 (no caso do fósforo, mais adiante será dado um foco no composto fosfina). Espectros de infravermelho e UV denunciam ferro em considerável abundância. 

           A maior parte do ciclo de vida dos microrganismos em Vênus passaria em gotículas muito ácidas formadas pela ação higroscópica do ácido sulfúrico (H2SO4) e dos esporos associados aos microrganismos, incluindo replicação celular (Ref.3). Em média, essas gotículas (solução) seriam compostas de ~85% de H2SO4 e por ~15% de água. À medida que as gotículas suspensas ficam maiores - carregando microrganismos e nutrientes - e começam a cair, água é evaporada, formando núcleos de aerossóis ricos em matéria orgânica (incluindo esporos dos microrganismos) e nutrientes, que podem ser levados pela circulação atmosférica para alimentar outras gotículas em suspensão e em formação, e para fechar o ciclo reprodutivo dos microrganismos conservados na forma de esporos. Poeira da superfície de Vênus e também de meteoroides entrando na atmosfera podem ser fontes contínuas de nutrientes não voláteis, especialmente metais, os quais podem ser prontamente dissolvidos nas gotículas de ácido sulfúrico.


           Em termos de sobrevivência em um ambiente rico em enxofre e em ambientes com baixo pH, a já mencionada bactéria A. ferrooxidans serve como um análogo terrestre exemplar para a vida nas nuvens de Vênus. Essa bactéria persiste em ambientes com pH extremamente baixo (muito ácido, com o pH variando de 1 até 2), fixa tanto CO2 e gás nitrogênio (N2) da atmosfera, e obtém sua energia para o crescimento da oxidação de hidrogênio, compostos ferrosos, enxofre elemental, ou compostos sulfurosos parcialmente oxidados. Essa bactéria também sobrevive em temperaturas de 50-60°C, similares àquelas encontradas nas nuvens inferiores de Vênus. Além disso, sob condições de baixo pH ou anaeróbicas, a A. ferrooxidans produz ácido sulfúrico, e possivelmente outras formas oxidadas de enxofre via enxofre metabolicamente oxidado e usando Fe3+ como um aceptor terminal de elétrons.



           Entre outros exemplos de análogos com a vida terrestre, temos o gênero Archaea Stygiolobus, o qual também oxida anaerobicamente enxofre elemental resultando em ácido sulfúrico em condições ácidas, e crescimento ótimo a temperaturas de ~80°C, e também utiliza Fe3+ como um aceptor terminal de elétrons. 

             Esses análogos terrestres pavimentam o caminho para o potencial bioquímico das nuvens Venusianas centrado no metabolismo de ferro e de enxofre, onde a oxidação de Fe2+ estaria intrinsecamente acoplado à redução anóxica fotossintética de CO2. Como sintetizado na figura abaixo, esses ciclos redox Fe/S podem também ser sustentados ao acoplar os constituintes redox-reativos dentro das nuvens e atmosfera de Vênus.


           Aliás, em um estudo publicado em 2021 no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (Ref.6), pesquisadores propuseram que estranhos níveis de amônia (NH3) detectados na atmosfera de Vênus também seriam provavelmente produtos biológicos nas nuvens Venusianas ajudando a reduzir a alta acidez do ambiente e possibilitando a persistência de vida. Ou seja, se microrganismos realmente estiverem presentes nas gotículas suspensas nas altas atmosferas de Vênus, esses seres estariam modificando o ambiente no sentido de torná-lo mais convidativo à vida. Aliás, aqui na Terra existem microrganismos no nosso estômago que produzem amônia para neutralizar a alta acidez estomacal e permitir sobrevivência. A hipótese no novo estudo, se correta, pode também potencialmente explicar anômalas distribuições e níveis de SO2 e de O2 na atmosfera de Vênus, subprodutos das reações biológicas envolvendo a amônia. Estudos mais recentes também defendem que a anômala presença de amônia - e de fosfina - na atmosfera de Vênus podem indicar presença de processos bióticos, ou estranhos processos abióticos ainda desconhecidos pela ciência (Ref.7).


   EVOLUÇÃO E TRANSPORTE NO PLANETA

            Simulações teóricas sugerem que Vênus tinha um clima habitável por pelo menos 750 milhões de anos, com água líquida em sua superfície que pode ter persistido por até 2 bilhões de anos. A presença de água líquida no passado Venusiano é suportada por comparações das razões atmosféricas de deutério/hidrogênio entre Vênus e Terra. Nesse contexto, e considerando a evolução biológica na Terra, temos uma faixa de tempo geológico plausível para a vida ter evoluído na superfície de Vênus.

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             À medida que as condições na superfície Venusiana se tornaram cada vez mais quentes e inabitáveis, a vida pode ter progressivamente migrado para as nuvens acompanhando a massiva evaporação da água superficial e a circulação atmosférica, com múltiplos mecanismos possíveis para o transporte dos microrganismos para as altas altitudes (como aqueles observados na Terra). Eventualmente, esses microrganismos podem ter se adaptado aos ambientes das nuvens devido a pressões seletivas emergindo do transporte superfície-nuvem, aerossolização, disponibilidade limitada de água e ambientes com baixo pH.

          Na Terra, os microrganismos em suspensão na atmosfera permanecem longos períodos em altas altitudes, antes de caírem de volta à superfície sob a ação da gravidade. Em Vênus evidências astronômicas e coletadas pelas sondas VeGa 1 e 2 sugerem que o mesmo ocorre nas altitudes das nuvens inferiores e médias, com longos períodos de permanência em suspensão (2-3 meses) antes dos microrganismos gradativamente descerem para as altitudes mais baixas e muito quentes. Isso fornece tempo suficiente para uma massiva replicação celular equilibrar as perdas populacionais devido à gravidade, com materiais inorgânico e orgânico sendo repostos e/ou fertilizando outras regiões das nuvens através da circulação atmosférica vertical (reciclagem entre as camadas inferiores e superiores).


   SEMEAÇÃO INTERPLANETÁRIA

          É também especulado que a Terra possa estar semeando via ao longo do Sistema Solar, incluindo Vênus, Marte e as Luas de Júpiter e de Saturno, a partir de micróbios enterrados dentro de materiais ejetados do nosso planeta após impactos de cometas e de asteroides, e mesmo através de micróbios anexados à espaçonaves (satélites e sondas). Extremófilos anexados a partículas de poeira que são levantadas até altas altitudes da atmosfera superior da Terra e lançados para o espaço por fortes ventos solares podem também ser transportados via pressão radiativa e ventos galáticos para a atmosfera de Vênus. Bactérias terrestres aterrissando na atmosfera Venusiana, nesse sentido, podem ter se adaptado ao ambiente e se proliferado nas nuvens de Vênus.

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          De fato, existe evidência de um anel interplanetário circunsolar que parece seguir e possivelmente ter se originado de forma externa à órbita de Vênus, e a qual penetra a atmosfera do planeta (Ref.4). Poeira nesse anel originária da Terra pode carregar micróbios. E, como já realçado, as condições nas altas atmosferas de Vênus podem congelar mas não necessariamente matar esses microrganismos, permitindo retorno às atividades biológicas quando chegassem às altitudes contendo as nuvens.

          Sobre a possibilidade do carregador serem veículos espaciais humanos, é válido mencionar que todas as tentativas de completamente esterilizar esses veículos têm falhado, e bilhões de microrganismos acabam sendo enviados em missões diversas de exploração do Sistema Solar. Em Vênus, várias sondas e balões enviados da Terra já passaram pela sua atmosfera, aterrissando em sua superfície. O primeiro desses veículos foi a sonda Soviética Venera 3, em 1 de março de 1966, seguida pela Venera 5 e 6 em maio de 1969 e a Venera 7 em 15 de dezembro de 1970 e a Venera 8 em 22 de julho de 1972, Venera 9 em 22 de outubro de 1975, e duas Espaçonaves Pioneiras em 1978, assim como as sondas da Agência Espacial Europeia e do Japão.

          Sobre microrganismos em detritos terrestres arremessados no espaço por violentos impactos de cometas e de asteroides, muitas espécies de micróbios evoluíram a habilidade de sobreviverem a impactos de hipervelocidade, pressões de choque de 100 GPa, e extrema aceleração e ejeção no espaço, incluindo o ambiente interestelar de vácuo e de frígidas temperaturas, e inundado de raios cósmicos, raios gama, raios UV e radiação ionizante. Nesse sentido, é razoável assumir que Vênus e Marte, bombardeados intensamente com meteoroides-asteroides-cometas há cerca de 3,8 bilhões de anos, podem ter recebido bastante material terrestre carregando vida microscópica. Esporos podem sobreviver a temperaturas de choque após impactos acima de 250°C.

           No impacto que extinguiu os dinossauros há cerca de 66 milhões de anos, é estimado que a uma velocidade de impacto de 25 km/s, até 5,5 x 1012 kg de detritos podem ter sido arremessados para o espaço, junto com volumes desconhecidos de água e talvez milhões de trilhões de organismos enterrados nesses materiais ejetados. Esporos de microrganismos podem sobreviver dezenas de milhões de anos a deriva no espaço, até aterrissarem em um planeta ou satélite natural. E mais recentemente pesquisadores "ressuscitaram" microrganismos enterrados em sedimentos marinhos datados em mais de 101 milhões de anos, e sem existir esporos associados (III).

> (III) Para mais informações, acesse: Cientistas despertam microrganismos retirados de sedimentos com mais de 100 milhões de anos


OBSERVAÇÃO: Apesar de remota, é possível que vida possa persistir também abaixo da superfície de Vênus, em torno de pelo menos 10 metros, onde as temperaturas podem alcançar até 200°C - limite de sobrevivência de alguns microrganismos terrestres hiper-termófilos, apesar da atividade biológica associada ser pequena ou inexistentes nessas condições. Água poderia estar continuamente suprindo essa região a partir de camadas subterrâneas inferiores. A superfície Venusiana hiper-árida e completamente seca pode ajudar a forçar a subida de água de grandes profundidades subterrâneas, como ocorre nos desertos do Kuwait.

  

   FOSFINA EM VÊNUS

          Tem sido proposto nos últimos anos que qualquer traço de fosfina (PH3) detectado na atmosfera de um planeta rochoso é um promissor sinal de vida. Traços de PH3 na atmosfera terrestre (partes por trilhão de abundância globalmente) é unicamente associado com atividade antropogênica ou pela presença de atividade microbiana - microrganismos produzem esse gás altamente redutor mesmo em um ambiente oxidante. De fato, PH3 é encontrado no Sistema Solar além da Terra apenas na atmosfera redutora de gigantes gasosos, onde é produzido em camadas atmosféricas profundas a altas temperaturas e pressões, e levado para altas altitudes via convecção. Nos planetas solares terrestres além da Terra, o ambiente altamente oxidante (crosta e atmosfera) impediria a permanência por longo período de tempo de PH3, limitando drasticamente qualquer acúmulo significativo.


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           No novo estudo publicado na Nature Astronomy (Ref.1), pesquisadores resolveram explorar espectroscopicamente a faixa de comprimento 1-0 milímetro de onda de transição rotacional do PH3 que pode ser absorvida contra as grosas camadas da atmosfera de Vênus.

          Os resultados confirmaram a presença de PH3 em altitudes de ~53-61 km, nas nuvens médias e superiores, onde as temperaturas ficam em torno de 30°C e com pressões de ~0,5 bar. Porém, esse PH3 pode ter se originado das nuvens inferiores onde é mais provável a existência de vida microbiana, e então se difundido verticalmente para maiores altitudes. O PH3 foi detectado mais fortemente a latitudes medianas e não foi detectado nas regiões atmosféricas dos polos. A abundância estimada desse composto na região de detecção foi de ~20 partes por bilhão (ppb) até ~30 ppb, com uma abundância média inferida para a atmosfera do planeta em torno de 7 ppb.

          A presença mesmo de algumas poucas partes por bilhão de PH3 é completamente inesperada para uma atmosfera oxidante (onde compostos oxigenadas estão em quantidades muito maiores do que compostos contendo hidrogênio). Nas nuvens Venusianas, é esperado que qualquer fósforo (P) esteja sob formas oxidadas, como fosfato (PO43-).

          Os pesquisadores resolveram simular e testar milhares de cenários (temperatura, pressão, radiações eletromagnéticas, percursores, etc.) e caminhos químicos possíveis para explicar uma origem abiótica do PH3 na atmosfera de Vênus. Eles não encontraram nenhum caminho plausível com o nosso atual conhecimento de química. Em particular, eles descartaram a possibilidade da hidrólise de fosfeto geológico ou meteorítico como a fonte de fosfina Venusiana. Eles também rejeitaram a formação de ácido fosforoso (H3PO3). Enquanto H3PO3 pode originar PH3 sob aquecimento, sua formação sob as temperaturas e pressões de Vênus iriam requerer condições não-realísticas, como uma atmosfera composta quase que inteiramente de hidrogênio.

          Nas camadas acima de 80 km da atmosfera de Vênus, a persistência de PH3 seria menor do que 103 segundos, primariamente devido às altas concentrações de radicais que reagiriam com e destruiriam o PH3. Próximo da base atmosférica, a estimativa é de ~108 segundos devido a mecanismos de decomposição térmica (destruição colisional). Nesse sentido, é estimado que o tempo de vida do PH3 na atmosfera como um todo de Vênus seria menor do que 103 anos, ou porque seria rapidamente destruído ou porque seria transportado para regiões onde rapidamente seria destruído. 

          Considerando esse último ponto, os pesquisadores também calcularam o fluxo de produção de PH3 necessário para manter os níveis de ~10 ppb desse composto na atmosfera. O valor encontrado foi de ~106-107 moléculas/cm2/s, e considerando o tempo de persistência de 103 anos (máximo). Reações fotoquímicas em Vênus não conseguem produzir PH3 nessa taxa.

          Para gerar PH3 de compostos oxidados de fósforo, radicais fotoquimicamente gerados teriam que reduzir o fósforo ao abstrair oxigênio e adicionar hidrogênio - requerendo reações predominantemente com hidrogênio (H), mas também com oxigênio (O) e radicais hidroxila (OH). Radicais hidrogênio são raros na atmosfera de Vênus por causa das baixas concentrações de potenciais fontes de hidrogênio (como H2O e H2S que são fotolizados via UV para produzir radicais H). Reações do tipo seriam 104-106 mais lentas do que o requerido para a taxa de produção abiótica mínima de PH3.  

           Raios (relâmpagos) podem ocorrer em Vênus, a níveis muito menores do que o observado na Terra. A produção de PH3 via essa rota para a abundância observada desse composto só seria observada com uma quantidade pelo menos 107 vezes maior de raios. De forma similar, teria que existir acima de 200 vezes mais atividade vulcânica em Vênus do que na Terra para injetar uma quantidade mínima de PH3 na atmosfera (e até ~108 vezes maior dependendo da geoquímica associada ao manto de Vênus). Meteoritos, no máximo, entregam algumas poucas toneladas de fósforo para Vênus por ano. Processos exóticos como triboquímica (reações friccionais) e prótons de ventos solares só gerariam PH3 a quantidades irrisórias.

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           Como nenhum processo químico conhecido é capaz de explicar uma fonte abiótica para o PH3 na atmosfera em Vênus, uma fonte biótica se torna plausível. Porém, mesmo se corroborada por estudos independentes, a detecção de PH3 em níveis de 20-30 ppb [média atmosférica de 7 ppb] continua não sendo uma robusta evidência para vida, apenas para uma química anômala e não explicada. Por exemplo, a fotoquímica das gotículas contendo ácido sulfúrico das nuvens de Vênus é quase que completamente desconhecida, e pode ser uma possível fonte de fosfina. Além disso, é altamente especulativo ainda o porquê de microrganismos estarem produzindo PH3 nas nuvens Venusianas, apesar de vários microrganismos sabidamente o produzirem na Terra.

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ATUALIZAÇÃO (19/11/20): Após críticas de estudos e de astrônomos quanto aos dados e metodologias do paper publicado na Nature, os autores realizaram uma reanálise dos dados e reduziram dramaticamente a concentração de fosfina anteriormente determinada, para uma média atmosférica em torno de 1 ppb e picos localizados de abundância em torno de 5 ppb. Porém, os pesquisadores refutaram a argumentação de que não haveria linha detectável de fosfina em Vênus, e afirmaram que o sinal analisado não pode ser explicado somente por SO2. Ainda segundo os pesquisadores, o nível médio de 1 ppb ainda é difícil de ser explicado no planeta sem processos biológicos (ex.: erupções vulcânicas e raios de tempestade). Somando-se a isso, os resultados da reanálise sugeriram que a concentração de fosfina na atmosfera de Vênus pode ser altitude-dependente, com ~5 ppb acima de 60 km e até ~100 ppb acima de 50 km.  

> A detecção de fosfina em Vênus como uma provável bioassinatura em Vênus continua ainda um tópico controverso de discussões acadêmicas e alvo de muito ceticismo (Ref.8). Alguns cientistas pedem uma análise mais compreensiva da composição atmosférica de Vênus para melhor modelar rotas de reações químicas biológicas ou abiológicas e emissões espectrais associadas (Ref.9-10) enquanto outros cientistas firmemente continuam argumentando que a fosfina detectada em Vênus é, na verdade, sinal de absorção espectral produzida por moléculas de dióxido de enxofre (SO2) na mesosfera (Ref.11). Os autores do estudo na Nature defendendo a detecção da fosfina como provável evidência de vida em Vênus argumentaram em uma carta enviada em 2022 à PNAS (Ref.12) que apenas um extraordinário nível de atividade vulcânica em Vênus explicaria os níveis de fosfina detectados (partes por bilhão). Embora atividade vulcânica tenha sido recentemente confirmada em Vênus (!), é incerto o nível de erupções vulcânicas no planeta. A carta foi em resposta à proposta em um estudo de que fosfina na atmosfera de Vênus poderia ter origem de interações com fosfetos no manto profundo do planeta com o ácido nas nuvens.

(!) Para mais informações: Por que Vênus, e não Mercúrio, é o planeta mais quente do Sistema Solar?

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   FOSFINA E PROCESSOS BIOLÓGICOS

          O fósforo (P) é um constituinte universal e essencial dos organismos vivos terrestres e é o 10° mais abundante elemento da crosta terrestre. A grande maioria tanto de fósforo mineral quanto de fósforo biológico está na forma de fosfato (PO43-), com o fósforo se apresentando no estado de oxidação +5. Fosfato é a forma mais termodinamicamente estável de fósforo nas condições da superfície da Terra. No entanto, vários outros estados de oxidação do fósforo existem, especialmente o fosfeto (oxidação +3) e incluindo a fosfina (oxidação -3). O fosfeto é uma significativa fonte de elétrons para alguns microrganismos.

           Apesar de ser o menos comum estado de oxidação do fósforo, a fosfina (PH3) é um componente dos ciclos biogeoquímicos da Terra e amplamente detectado na nossa atmosfera como um gás traço. Em atividades industriais e comerciais antropogênicas, esse composto é muito usado e liberado para a atmosfera, particularmente na indústria ligada à agricultura (como um produto do uso de zinco e de fosfetos de alumínio como rodenticidas e inseticidas). Países com substancial atividade agrária, como a China, possuem relativos altos níveis ambientais de fosfina. De qualquer forma, a maior parte da fosfina na atmosfera terrestre é estimada de ser oriunda de atividade biológica. De fato, inúmeros trabalhos têm estabelecido íntima associação de fosfina com sistemas biológicos.

            No entanto, os mecanismos exatos para a produção biológica de fosfina ainda são debatidos, e o caminho metabólico levando ao PH3 em bactérias anaeróbicas é ainda desconhecido. Vida explora reações que são termodinamicamente favoráveis, independentemente se são cineticamente não favoráveis (problema contornado via catálise com enzimas), e limitações termodinâmicas são apontadas como principal problema teórico no entendimento da produção de fosfina em sistemas biológicos.


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          Em um estudo publicado em 2019 no periódico Science of the Total Environment (Ref.5), pesquisadores conseguiram criar um modelo termodinâmico que conseguiu com sucesso estabelecer uma rota bioquímica geral para a produção de fosfina por microrganismos. O modelo prediz que fosfina biológica, no geral, é produzida em um ambiente completo altamente estruturado no qual fosfeto é produzido em baixas temperaturas e fosfina é produzida em maiores temperaturas. A fonte de fosfina nesse caso seria a partir da redução exergônica de fosfato com o carregador intracelular redox NADH usado como redutor, a baixo pH e baixa temperatura. Aqui, o organismo estaria ganhando energia ao usar NADH para produzir diretamente fosfeto.

           O modelo, em específico, fornece uma explicação para a ocorrência de fosfeto em águas subterrâneas e para a produção biológica de fosfina, baseando-se nos seguintes postulados: 

- Fosfeto (HPO32-) é produzido como o resultado do metabolismo energético de organismos em ambientes altamente anaeróbicos, altamente redutor contendo substancial fósforo e com limitado sulfato e carbonato ou dióxido de carbono, e em ambientes que são frios, possuem pH <7, ou ambos.

- Fosfina pode ser produzida via desproporcionação de fosfeto em ambientes quentes altamente ácidos ou ambientes muito quentes moderadamente ácidos.

- Os únicos ambientes nos quais a produção de fosfina a partir de fosfato é termodinamicamente favorável são aqueles com pH extremamente baixo ou temperaturas entre 60°C e 100°C, ou ambos. No entanto, em um ambiente estratificado, no qual as águas da parte inferior são locais anaeróbicos de produção de fosfeto e águas mais quentes superficiais são locais da sua desproporcionação, onde duas comunidades separadas de organismos podem resultar na produção global de PH3.

          Portanto, a produção biológica completa de PH3 a partir de PO44- é provável de ocorrer somente em ambientes terrestres extremos e raros que combinam temperaturas de 40°C ou superior, pH de 4 ou inferior, altas concentrações de fosfato, baixa quantidade carbono e reduzidas concentrações de enxofre reduzido, e ausência de oxigênio molecular (anaeróbico). Essas condições são encontradas na Terra em campos de fumarolas ou sistemas hidrotermais ácidos. Para uma produção biológica mais geral e plausível de fosfina para explicar as quantidades traços dessa substância na atmosfera, uma combinação de ecossistemas seria necessário, como sugerido pelo terceiro postulado e ilustrado na imagem abaixo.



           No caso das nuvens de Vênus, temos temperatura e acidez suficientes para uma produção completa de fosfina (dentro das gotículas líquidas de ácido sulfúrico), sem a necessidade de um não-realístico cenário de múltiplos-ecossistemas estruturados. Além disso, as condições nas nuvens Venusianas são anaeróbicas.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.nature.com/articles/s41550-020-1174-4
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6150942/
  3. https://www.liebertpub.com/doi/10.1089/ast.2020.2244 
  4. https://link.springer.com/article/10.1007/s10509-019-3678-x
  5. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30579209/
  6. Seager et al. (2021). Production of ammonia makes Venusian clouds habitable and explains observed cloud-level chemical anomalies. PNAS, 118 (52) e2110889118. https://doi.org/10.1073/pnas.2110889118
  7. https://www.mdpi.com/2226-4310/9/12/752
  8. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10426507.2021.1998051
  9. Trujillo et al. (2021). Computational Infrared Spectroscopy of 958 Phosphorus-Bearing Molecules. Frontiers in Astronomy and Space Sciences, Volume 8. https://doi.org/10.3389/fspas.2021.639068
  10. https://link.springer.com/article/10.1007/s11214-023-00960-4
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