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O misterioso caso de um homem que não consegue ver números


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          Referenciado como RFS para preservar sua identidade, um engenheiro geologista se tornou um dos mais curiosos casos da neurociência nas últimas décadas. Hoje próximo dos 70 anos de idade, o paciente começou a experienciar dores de cabeça, amnésia, tremores e dificuldade de andar em outubro de 2010. Inicialmente, os médicos pensaram que se tratava de um derrame, mas eventualmente foi revelado que ele possuía uma doença chamada de síndrome corticobasal, a qual destrói células cerebrais. Porém, além de levar a uma extensiva atrofia no córtex e no gânglio basal - e sintomas típicos associados, como problemas de memória e espasmos musculares -, a síndrome causou mais um estranho efeito colateral: o paciente não mais podia ver números, mais especificamente os dígitos de 2 a 9.

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   CONSCIÊNCIA E PROCESSAMENTO VISUAL

          Vários estudos no campo da ciência cognitiva têm visado a descrição de marcadores relativos à consciência visual. Teorias hoje estabelecidas geralmente concordam que estar ciente requer integração ao longo de múltiplos formatos e níveis de representação, mas a natureza dessa integração em termos cognitivo e neural permanecem sob debate. Para adereçar essa problemática, várias estratégias experimentais têm sido empregadas para tentar controlar o fator 'consciente' de participantes visando focar nos processos concomitantes não-conscientes ligados à visão. Nesse sentido, podemos citar a supressão contínua de flash e a rivalidade binocular (I) como dois exemplos bem conhecidos. 

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(I) Para mais informações, acesse: O que é a Rivalidade Binocular?

          No entanto, mesmo nos mais complexos e bem controlados experimentos, ainda é difícil assegurar que os estímulos analisados estão sendo totalmente ignorados pelo lado consciente dos participantes. Para contornar essa limitação, neuropatologias oferecem uma alternativa para os estudos sobre consciência.

          Nessa linha, em um curioso caso recentemente reportado e descrito no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (1), um indivíduo mostrou manifestar um raríssimo fenômeno neurofisiológico que traz evidência de complexo processamento cognitivo na ausência de consciência. O fenômeno reportado levanta questões sobre as condições necessárias para que estejamos cientes ou para que processamento cerebral de alto nível ocorra.  

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   PACIENTE R.F.S

          O indivíduo reportado no estudo da PNAS - chamado de R.F.S. para preservar a identidade - é um engenheiro geologista que tinha 60 anos de idade no início do estudo. Ele sofreu um evento neurológico agudo em outubro de 2010 envolvendo dor de cabeça, afasia transiente e amnésia, perda de visão temporária, e ondas bitemporais anormais registrada pela técnica de eletroencefalografia (EEG). No começo de 2011, o paciente em estudo começou a experienciar uma série de deficiências motoras e somatossensoriais, incluindo tremores nos membros superiores, episódios de toque fantasma, espasmos involuntários nos músculos, distonia, e dificuldade de andar, quadro esse que acabou progredindo em severidade ao longo dos anos seguintes.

            Testes neurofisiológicos iniciais revelaram danos na memória de longo prazo e uma dificuldade em acuradamente traçar e perceber a orientação de alguns dígitos (algarismos). Eventualmente, um diagnóstico de síndrome corticobasal foi feito em maio de 2011 com base nos sintomas relatados e atrofia parietal visível em imagem por ressonância magnética (MRI). Subsequentes análises via MRI mostraram progressiva perda de volume cerebral e cerebelar consistente com a síndrome.




          Então, a partir de agosto de 2011, o paciente passou a não ser capaz de reconhecer, nomear, copiar ou compreender os dígitos de 2 a 9 apresentados tanto de forma isolada quanto associados a outras letras e números (ex.: '8', '476', 'A7'). E isso se estendia para objetos tridimensionais com o formato do número: enquanto o paciente podia sentir pelo toque as formas corretas do objeto, ele não conseguia visualmente discriminar o número. O que o paciente via ao visualizar os números era um emaranhando de linhas que mudava de padrão mesmo quando olhava para o mesmo número em múltiplas ocasiões. Quando um número colorido era apresentado ao paciente, ele via o emaranhado de linhas mas com um background colorido espalhado ao longo da área do emaranhado, como visto abaixo na imagem e no vídeo.

          


             Primeiro, através de uma série de experimentos comportamentais e análises clínicas, os pesquisadores confirmaram que o paciente R.F.S era realmente incapaz de reportar a identidade de estímulos visuais associados os algarismos arábicos 2 a 9 devido à ausência de consciência visual (metamorfopsia numérica). Isso foi reforçado pelo fato de que durante os experimentos com a forma física dos números em mãos ele era capaz de visualmente caracterizar corretamente as formas caso a orientação espacial do número mudasse (por exemplo, com o dígito 8 deitado na forma de um símbolo de infinito). A distorção ocorria quando os circuitos cerebrais recebiam o estímulo visual de um número Arábico.




           Ou seja, não era uma disfunção psiquiátrica, psicogênica ou mesmo visual que o paciente possuía, e, sim, uma falha em processos cognitivos/perceptuais básicos. Mas o mais interessante é que ele não tinha dificuldade em identificar, compreender, copiar ou processar em qualquer sentido os dígitos 0 e 1. Também muito curioso, dificuldade cognitiva específica em relação ao 1 e ao 0 já havia sido reportada em outros pacientes com outras doenças neurológicas.

           O dígitos 0 e 1, segundo sugerem evidências acumuladas na literatura acadêmica, possuem um status cognitivo especial, potencialmente devido aos seus papeis em operações sintáticas com numerais, valor semântico como a ausência de quantidade e unidade, ou realização única em nomes verbais de números. Além disso, relativo ao caso R.F.S., os dígitos 1 e 0 possuem formas particularmente simples e lembram letras (para o 0, a letra O, e para o 1, a letra maiúscula I e a letra minúscula l).

           Para outras letras do alfabeto, em geral, o paciente R.F.S. não manifestava nenhuma dificuldade de compreensão visual, exceto uma leve distorção para as letras M, N, P, R, S e Z que não prevenia o reconhecimento das mesmas. Para outros tipos de estímulos visuais, a percepção do paciente parecia normal. Por exemplo, ele não cometia erros em nomear e discriminar símbolos tipográficos (#, $, +, %, etc.).

          Somando-se a isso, o paciente não mostrou dificuldade em ler e compreender palavras numéricas (ex.: 'cinco') ou numerais Romanos (ex.: 'XIV'); de fato, ele começou a usar essas formas alternativas para representar números e realizar cálculos após a emergência dos sintomas, e também aprendeu novos "números substitutos" como alternativa aos algarismos arábicos 2 a 9. Isso permitiu que ele mantivesse seu trabalho como engenheiro até sua aposentadoria em outubro de 2014. O paciente mesmo após a aposentadoria continuou usando seu novo sistema numérico para as atividades diárias (ex.: trabalho no computador e anotação de números telefônicos).

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          Outra característica dos seus estranhos sintomas neurológicos: figuras e objetos próximos dos dígitos 2 a 9 - ou associados a esses números - também ficavam distorcidos. Por exemplo, quando apresentado a números Arábicos - com exceção dos números 0 e 1 - que possuíam desenhos sobrepostos, muitas vezes o paciente nem mesmo sabia que haviam desenhos ali. Em outras palavras, a metamorfopsia numérica prevenia o reconhecimento de estímulos visuais na mesma localização.



           Nesse último caso, os pesquisadores utilizaram um EEG para registrar padrões nas ondas cerebrais quando o paciente via rostos e outras partes do rosto humano desenhadas nos números e nas letras. Quando o paciente identificava corretamente as partes faciais desenhadas nas letras, uma onda cerebral chamada N170 era registrada, e a qual está fortemente associada com a visualização de rostos humanos. Surpreendentemente, a mesma onda era registrada quando o paciente não conseguia visualizar nada devido ao fato das partes faciais estarem desenhadas sobre os dígitos. Isso mostra que o cérebro estava processando e identificando o desenho, mas o paciente não estava consciente disso.

          A mesma relação foi observada quando palavras eram escritas sobre os números ou letras, gerando em ambos os casos - conscientemente ou não - ondas cerebrais típicas conhecidas como P3b. E mais: o cérebro estava corretamente identificando as palavras escritas, não apenas identificando a presença de uma palavra, em ambos os casos.

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   O QUE ISSO SIGNIFICA?

         Após 8 anos estudando o paciente R.F.S., os pesquisadores concluíram que processo não-consciente de identificação numérica ocorria normalmente no caso analisado, ou não seria possível explicar como a deficiência é seletiva aos dígitos 2 a 9, deixando intacto outras representações numéricas.

         Nesse sentido, os pesquisadores propuseram que o déficit do R.F.S. afeta os sinais enviados dos processos de identificação dos números arábicos para a integração com informação visual (via conexões de feedback para níveis menores ou conexões feedforward para níveis maiores). De alguma forma, essa integração se tornou anormal no paciente, impossibilitando o estímulo visual correto de ser manifestado conscientemente, apenas o processamento visual (as linhas emaranhadas e a coloração de fundo). 

           Considerando os registros das ondas cerebrais N710 e P3b com ou sem os números, fica fortemente sugerido que a identificação de formas complexas (rostos, palavras) podem ocorrer com sucesso sem o resultado do processo de identificação se tornar disponível para a consciência visual (similar ao que propõe as "mensagens subliminares"). Processamento cognitivo de alto nível e consciência são distintos.

           Um indivíduo pode estar realizando um complexo processamento neural de algum estímulo recebido e não ter consciência disso caso uma componente de integração adicional não esteja presente. Os resultados desse estudo - apesar de ser limitado por envolver um único caso analisado - pode reforçar algumas hipóteses sobre consciência e enfraquecer outras. O achado também é um alerta sobre o quão frágil a consciência é: basta a eliminação de uma peça aparentemente desimportante para que complexos processamentos cerebrais passem despercebidos pelo nosso consciente.

         Infelizmente, nenhuma análise adicional pode ser feita no paciente R.F.S., o qual teve sua saúde deteriorada recentemente e perdeu sua habilidade de falar e de se mover.


> (1) Publicação do estudo: PNAS

Referência adicional: Science Magazine