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Cruzadas: Fé, Violência e Amor durante a Guerra Santa

- Atualizado no dia 10 de dezembro de 2020 -

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             Ao longo do século XI, o Oriente Médio passou a ocupar o centro das políticas globais, e um berço de violência e de tensões culturais. Com quatro principais religiões e várias nações e povos em choque, os inimigos e aliados eram volúveis. E em meio às tensões Medievais entre Ocidente e Oriente no final do século XI, uma imponente voz emerge e ecoa a partir da França. Em Clermont, o Papa Urbano II chama pela ajuda dos Cristãos ao Imperador Bizantino contra seus vizinhos Turcos e para a retomada de Jerusalém de volta às mãos Cristãs.

           Fomentados pela urgência Papal, e em nome de Jesus Cristo, centenas de milhares de Europeus migraram para o Oriente Próximo para fazerem parte das Cruzadas. Por dois séculos, com início em 1095 d.C., os Cruzados lutaram ferozmente contra os Muçulmanos na Terra Santa. Jerusalém precisava ser liberada e conquistada, e, com essa conquista, Reinos Cristãos precisavam ser estabelecidos. Para preencher essa necessidade, novas instituições emergiram, como a notória irmandade dos Templários. O fervor religioso e a busca por redenção dos pecados forneceram o combustível inicial para as campanhas, mas não foram suficientes para manter Jerusalém nas mãos dos Cruzados, levando o foco das campanhas militares Cristãs no século XIII a eventualmente mudar da Terra Santa para o Império Bizantino e o Egito.   

          Em meio a esses conflitos, os Europeus migrantes se estabeleceram na Costa Leste do Mediterrâneo por várias décadas, mas durante muito tempo era desconhecido qual era exatamente a relação entre eles e os povos nativos da região. Nesse sentido, em 2018, um estudo publicado na Cell (Ref.1), sequenciando de forma inédita o genoma de nove indivíduos Cruzados que morreram em batalha no século XIII, jogou luz na questão e revelou que os Cruzados construíram famílias naquela região e até mesmo recrutaram os nativos do Oriente Próximo para a Guerra Santa. Além disso, uma descoberta sinistra também revelada pelo estudo: cabeças de Cruzados eram lançadas pelas forças Muçulmanas para intimidar os Cristãos.

  • OBS.: A primeira parte deste artigo traz um resumo do período das Cruzadas, explorando também os mitos e distorções históricas amplamente disseminados. É uma leitura mais do que recomendada. No tópico 'GUERRA E AMOR', o estudo é explorado.

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   PANO DE FUNDO

          É comum nos depararmos com várias distorções sobre o período das Cruzadas. Enquanto que o discurso em favor da Europa Ocidental Medieval para o ataque aos Muçulmanos foca na alegação de que os Cristãos estavam engajados em uma luta de resposta ao avanço do Islã e de retomada do que outrora foi tomado, o discurso em favor dos Muçulmanos descreve a campanha militar ao Oriente Médio apenas como uma empreitada por novas riquezas e territórios, sendo a causa Cristã uma simples justificativa para os "crimes" cometidos. No entanto, além do persistente anacronismo nesses discursos, a violência deflagrada durante as Cruzadas teve origem de ambos os lados.

          Apesar do Islã não ter sido a única razão para as Cruzadas, não podemos ignorar o fato de que a campanha político-religiosa dos Muçulmanos impôs uma substancial pressão sobre os Reinos Europeus e sobre o Império Bizantino. O ataque de Maomé (Mohammad) e do seu exército - jihad (guerra sagrada Muçulmana ligada à Lei Islâmica) - na região de Meca em 630 d.C. eventualmente levou toda a Arábia ocidental a se tornar uma comunidade Muçulmana, chamada de ummah, e, após cerca de 1 ano após sua morte, as invasões Muçulmanas se intensificaram. A Síria - antes uma província Cristã do Império Romano Oriental - foi a primeira a ser conquistada. Então, as forças Muçulmanas continuaram ganhando uma série de batalhas, tomando Damasco e outras cidades próximas em 635, com a expulsão final do exército Bizantino do território Sírio em 636. Em seguida, os Árabes marcharam para a Terra Santa - uma área localizada entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, e de suma importância religiosa para o Cristianismo, Judaísmo e o Islamismo -, tomando Jerusalém em 638 e Cesareia Marítima em 640.




          Após a conquista de Jerusalém, o exército Muçulmano invadiu os territórios Cristãos na África do Norte, tomando o Cairo (Egito) e, em 642, a Alexandria. Nesse momento, uma poderoso Império Muçulmano domina a maior parte do Oriente Médio, se espalhando ao longo da Costa Norte da África e fincando a bandeira na cidade Turca de Antioquia. Cerca de 30 anos depois, o Império Muçulmano continuou a expansão, passando pela cidade Marroquina de Tânger e alcançado o Atlântico. Em 714, boa parte da Espanha foi ocupada, e hordas do exército Muçulmano tentaram invadir a França, apesar dos Francos terem conseguido repeli-los em 732, na região de Tours, próximo de Paris. Carlos Magno bloqueou o avanço Muçulmano na região da Espanha, mas esse freio foi temporário. Em 831, as forças Muçulmanas invadiram a Sicília, Itália, - segurando-a até 1072 -, e, em seguida, as costas Italianas e Francesas. Em 837, atacaram o interior da Itália e em 846 saquearam Roma, retirando-se pouco tempo depois para focarem no controle do sul Italiano pelos próximos dois séculos.




          Durante o século VIII, os governantes Muçulmanos nas terras conquistadas baniram todas as exibições de cruzes em Jerusalém e aumentaram os impostos punitivos (jizya) sobre os Cristãos. Em 772, o califa Muçulmano ordenou que as mãos de todos os Cristãos e Judeus na cidade sagrada fossem marcadas. Nos séculos X e XI, Igrejas foram saqueadas e destruídas. Especificamente, entre 850 e 950, monges Beneditinos foram expulsos de antigos monastérios, os Estados Papais foram subjugados, e piratas Muçulmanos se estabeleceram ao longo das costas do norte da Itália e do sul da França, de onde frequentes ataques eram lançados. Em 1009, por exemplo, sob a orientação do Califa Fatímida Al-Hakim (Aláqueme Biamir Alá, 996-1021), os Muçulmanos destruíram a Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém, a imponente basílica que Constantino ergueu sobre o que se acreditava ser o local da tumba onde Jesus Cristo foi colocado antes da Ressurreição.

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ATUALIZAÇÃO (10/12/20): Aliás, mais de 4500 túmulos de muçulmanos foram identificados recentemente em um cemitério no nordeste da Espanha, em uma área pensada ter sido intocada pela invasão Árabe da península Ibérica no início do século VIII d.C. Análises de radiocarbono sugeriram que a necrópole estava em uso do século VIII d.C. até o século XI d.C., indicando uma grande população de Muçulmanos na região espanhola de Tauste. Segundo os pesquisadores, mais de 400 dos túmulos foram exumados, e todos os corpos foram enterrados encarando o sudeste, na direção de Meca, seguindo os costumes Islâmicos (Ref.19). Abaixo, a foto de um desses túmulos.



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          Apesar da tensão na Terra Santa entre as três principais religiões monoteístas terem sido abafadas com o assassinato de Al-Hakim em 1021, no Cairo - fomentando inclusive um crescente fluxo de Cristãos (peregrinos) de várias partes da Europa em visita a Jerusalém -, ainda no século XI os Turcos Seljúcidas, recém convertidos ao Islã, se tornaram os novos governantes da Ásia Menor, e expressavam extrema intolerância em relação às outras religiões. Para eles só havia espaço para o único Verdadeiro Deus, Alá (Allah), não Jeová ou Javé. Isso aumentou a tensão religiosa nos territórios ocupados pelos Muçulmanos, deflagrando crescente medo e violência aos peregrinos e cada vez mais irritação aos Reinos Cristãos na Europa, especialmente à Igreja Católica.



          Ao longo do século XI, houve uma crescente resposta militar dos Cristãos aos ataques dos Muçulmanos. Em 1034, os Pisanos saquearam uma base Muçulmana no Norte da África, e carregaram o contra-ataque ao longo do Mediterrâneo. Em 1062-63, mais contra-ataques na Sicília, e, em 1087, uma grande ofensiva saqueou Mádia - no território da atual Tunísia -, com o apoio do Papa Victor III. Porém, enquanto que na Europa Ocidental os Muçulmanos estavam sendo repelidos, os Turcos continuavam impondo enorme ameaça no leste Europeu contra os Bizantinos, estes os quais já tinham perdido diversos territórios para os novos e poderosos inimigos Árabes, incluindo a Anatólia (atual Turquia) inteira. E antes dos Turcos*, as defesas Bizantinas já haviam sido quebradas pelos Curdos e vários grupos Iranianos. Na década de 1070, o Papa Gregório VII chegou a intervir em apoio ao Império Bizantino, cuja população, apesar de não ser constituída por Católicos, representavam os Cristãos pela Igreja Ortodoxa.

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*Os Cristãos Ocidentais na época chamavam de 'Turco' todos que constituíam o exército Turco, incluindo Turcomanos, Sírios e  os Seljúcidas.
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          Em outras palavras, na época da Primeira Cruzada, os Cristãos já vinham se defendendo das forças Islâmicas ao longo de 450 anos. Portanto, as Cruzadas tiveram seu início, em grande parte, como uma resposta às invasões Muçulmanas, apesar destas estarem respondendo - e se aproveitando - das campanhas prévias de Conquista dos Romanos nas terras Orientais.




         Pelo fato do conhecimento sobre os Muçulmanos ser praticamente não-existente no mundo Ocidental dominado pelo Latim, a Igreja proibia os Cristãos de realizarem contratos com os Muçulmanos, tornando quase impossível quaisquer tipos de acordo de trégua ou paz entre as partes. 
A Igreja Romana Católica via os Muçulmanos como inconvertíveis e os consideravam descabidos de liberdade de escolha, com a exterminação se tornando uma solução aceitável e cada vez mais tentadora como primeira ação de defesa. O Papa Urbano II (1035-1099) caracterizava os Muçulmanos como "sub-humanos, violadores de mulheres, violentos, agressivos, assassinos de Cristãos e poluidores da Igreja Cristã".

           No geral, ao longo do século XI, a Igreja considerava os pagãos como 'errados' e os Cristãos como 'certos', sem meio termo. Os oponentes dos Cruzados eram referidos como 'infiéis, 'gentalha', 'inimigos dos Cristãos e, acima, de tudo 'pagãos'. A Guerra Sagrada, portanto, era mais do que justificada sobre as palavras do Velho Testamento, uma guerra a serviço de Deus que carregava sua punição divina.

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   O CHAMADO

          Próximo do final do século XI, a Europa e o Oriente Médio podiam ser divididos em três blocos de poder: no extremo Oriental estava o mundo Islâmico, no oeste, na fronteira com o Atlântico, estavam os Estados feudais da Europa Ocidental; e, entre os dois, "no centro do mundo", o Império Bizantino (Império Romano do Oriente), localizado na bacia do Mediterrâneo e cuja capital era Constantinopla. Nessa época, a Europa estava emergindo da chamada "Idade das Trevas", e muitas das suas nações formadas eram recentes. Nesse sentido, a Europa Ocidental estava economicamente muito longe de outras nações e impérios do mundo civilizado. Enquanto que o Império Bizantino e os Estados Islâmicos estavam comercialmente e estruturalmente muito avançados, sustentando populações de centenas de milhares em cidades como Constantinopla, Bagdá e Cairo, as maiores cidades Europeias, como Roma, Veneza e Milão, apenas conseguiam lidar com algo em torno de 30-40 mil pessoas.

          Já desde o século VIII, a Europa Ocidental era dominada pela Igreja, não mais pelo estado secular como era no início do Cristianismo nessas regiões. Nas cortes, bispos passaram a ocupar importantes cargos, e a sociedade foi dividida em três classes: os lordes, o clero e a laicidade. Esse ambiente hierárquico específico foi a faísca inicial de evolução das Cruzadas, onde eventualmente emergiram os chamados 'movimentos de paz', os quais tentavam impor a 'Paz de Deus' ao mundo. Isso unido ao conceito de Guerra Sagrada e à necessidade de peregrinação à Terra Santa formaram sólidas bases para a Primeira Cruzada. Além disso, o povo da Europa Ocidental na Idade Média, em geral, confiava de forma extrema na alta autoridade da Igreja Católica, tornando as massas mais pobres e religiosas extremamente suscetíveis às palavras de ordem do clero (este o qual, aliás, monopolizava a educação acadêmica). Essa devoção ao Cristianismo intensificou-se em 1000 d.C., com o aumento da adoração aos santos, aumento na peregrinação e aumento na presença de patrocínios da Igreja.

          Unindo todos esses fatores, incluindo a crescente expansão militar e populacional dos Muçulmanos - e subsequentes conflitos entre esses e os Cristãos no Mediterrâneo, Europa e Oriente Médio -, e a busca de maior poder de influência e proteção para o clero e o Cristianismo, faltou apenas a espoleta: o Imperador Bizantino, Aleixo I Comneno, escreve da sua capital - já em clima de batalha - ao Conde de Flanders requerendo que ele e seus companheiros Cristãos no Ocidente viessem ao resgate do seu império, este o qual estava sob nova ameaça Muçulmana. Em desespero, Comneno detalha em carta que se os Turcos Seljúcidas tivessem triunfo e derrubassem Constantinopla, não apenas os Cristãos seriam assassinados, torturados e estuprados, mas "as preciosas e sagradas relíquias do Salvador" seriam perdidas.




          Quando o Papa Urbano II recebe essa carta, ele imediatamente fica mais do que determinado a responder positivamente ao pedido de ajuda. Então, em 1095, o Papa organizou um grande encontro de clérigos e da laicidade na cidade Francesa de Clermont-Ferrand (Concílio de Clermont), em 27 de novembro. Sobre um pódio no meio de um campo, e cercado por uma imensa multidão que incluía desde pobres camponeses até membros da nobreza e do clero, o Papa deu voz a um dos mais impactantes, energéticos e inspirados discursos da história. O Papa começou descrevendo em detalhes gráficos o massacre sendo levado aos Cristãos peregrinos e às Igrejas e locais sagrados pelos "impiedosos Muçulmanos":

"... Muitas das Igrejas de Deus têm sido violadas (...) Eles arruinaram os altares com imundice e profanação. Eles circuncidaram os Cristãos e espalharam o sangue sobre os altares ou sobre as fontes batismais. Para eles é divertido matar Cristãos ao abrir suas barrigas e arrancar para fora os intestinos, estes os quais eles amarram a uma estaca. Então eles chicoteiam suas vítimas e as fazem andar em círculos ao redor da estaca até que seus intestinos tenham saído por completo e a morte os derrubem. (...) O que eu preciso falar sobre os abomináveis estupros de mulheres? Sobre esse assunto pode ser pior falar do que permanecer em silêncio."




          Nesse ponto do discurso, o Papa aproveitou para alimentar o conceito de "Trégua de Deus", uma resolução de tensão visando a nobreza feudal, onde grande parte da qual estava inclinada a realizar a guerra, mesmo entre aliados próximos, apenas pelo prazer de uma boa luta - afinal, era isso o que os nobres faziam todos os dias desde a infância: treinavam para a guerra.

"... Guerreiros Cristãos, que continuamente e em vão buscam por pretextos para a guerra, alegrem-se, porque vocês hoje encontraram um verdadeiro pretexto (...) Se vocês caírem, vocês irão ter a glória de morrer no mesmo lugar que Jesus Cristo, e Deus nunca irá esquecer que ele encontrou você nas batalhas sagradas. (...) Soldados do Inferno, se tornem soldados do Deus vivo!"

          Após essa explosiva fala, gritos de "Dieu li volt!" (Deus o quer!) - ou 'Deus vult' - começaram a se espalhar ao longo da multidão, e homens começaram a cortar suas capas e outras peças de roupa para fazer cruzes e amarrá-las em seus ombros e peitos (!). Várias cópias do discurso em Clermont foram feitas (escritas e faladas em Francês) e circularam por toda a Europa. Além de resgatarem a Terra Santa dos pagãos inimigos de Deus, o Papa prometeu perdão absoluto de todos os pecados e a entrada direta para o paraíso para aqueles que atendessem ao chamado divino. Todos estavam prontos para marcharem para Jerusalém, em busca de guerra, em busca de redenção, em busca de Deus.

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(!)  Aliás, a origem do termo 'Cruzada' pode ser traçada justamente às cruzes feitas de tecidos e usadas como distintivo no vestuário externo daqueles que participaram desse movimento. Escritores medievais usavam termos como crux, croisement, croiserie; o termo Cruzada em si foi primeiro cunhado na Espanha no século XIII, sendo popularizada através da tradução inglesa Crusade a partir do ano de 1577. Isso estressa a centralidade do simbolismo da 'cruz' suportando as campanhas militares Cristãs, com base na crença de que as Cruzadas eram movimentos legitimados pelo mandado pessoal do próprio Cristo. 
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   A PRIMEIRA CRUZADA

           Nobres e camponeses Cristãos - liderados predominantemente pelos cavaleiros Francos e com o suporte da Igreja Católica -, em número de centenas de milhares, marcharam determinados ao longo da Europa até chegarem em Constantinopla. Na capital Bizantina, com o suporte do Imperador Bizantino, os cavaleiros foram guiados pelos Cristãos Armênios até Jerusalém, através dos territórios controlados pelos Turcos (representados pela atual Turquia e Síria). Em junho de 1099, finalmente chegando à cidade e após um número de batalhas pelo caminho, os Cruzados começaram um furioso cerco de cinco semanas em Jerusalém, esta a qual caiu novamente nas mãos Cristãs em 15 de julho de 1099. O que se seguiu foi um aterrorizante massacre, pintando toda a Jerusalém de sangue Muçulmano e de quem estivesse pelo caminho (Cristão ou não). Não havia perdão aos inimigos de Deus.

          Os Cruzados com números originais de 130-300 mil tinham chegado a Jerusalém com números tão baixos quanto 15 mil - devido a doenças, privação, infortúnios, deserção e lutas ao longo do caminho (como o cerco à cidade de Antioquia e sua conquista em 1098) -  e a maior parte com fome (já tinham inclusive comido seus cavalos). Mas de tão obstinados e devotados a Deus, os sobreviventes conseguiram vitória em pleno território inimigo, quase destruindo e despopulando Jerusalém no processo. Após 3 anos desde que partiram da Europa continental, os Cruzados descarregaram toda a tensão da jornada nos habitantes da cidade, acumulando um total estimado de até 100 mil mortos em apenas 10 dias - incluindo um enorme número de Judeus, algo que foi condenado pelo Papa e por bispos. Os soldados, após a carnificina, se dirigiram para o altar da Basílica do Santo Sepulcro para rezar ao Senhor, um dos locais mais sagrados da cristandade onde segundo a tradição (João 19:41-42), Jesus teria sido crucificado, sepultado e, ao terceiro dia, teria ressuscitado.

           Porém, mesmo durante o massacre de Jerusalém, houve também negociações e aderência a obrigações contratuais por parte dos Cruzados, como a saída segura da cidade garantida ao seu governador, Iftikhar al-Dawla, o que garantiu que Raimundo IV de Toulouse - um poderoso nobre no sul da França, extremamente religioso e um dos líderes da Primeira Cruzada - ganhasse possessão da Torre de David

          A primeira Cruzada foi um enorme sucesso resultando na retomada da cidade sagrada depois de 460 anos nas mãos dos Muçulmanos. Algo que pode ter facilitado a vitória provavelmente foi o conhecimento prévio passado pelos Bizantinos aos Cruzados Francos sobre as táticas de guerra dos Sarracenos. Devido a sua posição geográfica, o Império Bizantino estava em contato direto - e, como visto, constante choque - com as forças do mundo Árabe. Mas é incerto se apenas um conhecimento teórico transmitido tão em cima das batalhas teria dado alguma vantagem aos Cruzados da Europa Ocidental, ou mudado significativamente o modo de combate desses últimos. Historiadores Orientais apontam que o sucesso dos Cruzados só foi possível pelo fato do Império Seljúcida estar severamente desunido e declinado na época, algo que ocorreu logo após as mortes sucessivas em 1092 do vizir Seljúcida e do grande sultão Seljúcida (1063-1092) e do Malique Xá I (1072-1092), deixando o Império sem iguais sucessores no centro do poder capazes de resolver os conflitos internos (Ref.21).

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> Aliás, o lendário canal de trincheira que ajudou a barrar o avanço dos Cruzados ao Sul de Jerusalém não foi apenas uma história inventada nas Crônicas. Para saber mais, acesse: A grande trincheira que barrou os Cruzados ao Sul de Jerusalém era real
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          Porém, os Cruzados não pararam aí, porque Jerusalém, apesar de conquistada, era agora uma cidade cercada pelas forças inimigas e, portanto, necessitava de poderosas defesas. Nesse sentido, as forças Cristãs decidiram estabelecer uma coleção de assentamentos na área do Levante, os quais por sua vez resultaram na formação de várias ordens militares responsáveis por uma eficiente organização de defesa. A missão específica dessas ordens era fornecer assistência para os militares em comando e estabelecer uma administração funcional no Levante. A partir dessa área fortemente militarizada, várias campanhas foram carregadas contra as regiões inimigas ao redor (1107-8, 1120-25, 1128-29, 1139-40). A mais notável foi a investida contra o exército Egípcio que vinha com o objetivo de recapturar Jerusalém. Godofredo marchou com suas forças e atacou e derrotou o exército Egípcio enquanto este estava dormindo em acampamento, realizando um um grande massacre. Esses assentamentos também deram estruturação para quatro Reinos - estados independentes ao longo da Costa do Mediterrâneo -, representados pelo Condado de Edessa, o Principiado de Antioquia (hoje sul da Turquia), o Condado de Trípoli e, por fim e mais importante, o Reino de Jerusalém (um enclave sobre a costa da Palestina semi-equivalente em termos territoriais à moderna Israel).






          Duas ordens religiosas de cavaleiros se destacaram, as quais foram as primeiras a unirem habilidades militares e disciplinas monásticas no mundo Cristão. Os Cavaleiros Hospitalários foram fundados inicialmente para cuidar dos Cristãos peregrinos doentes que se dirigiam para a Terra Santa. Mantendo seu nome 'médico', em 1120 os Hospitalários expandiram seus votos que inicialmente englobavam castidade, pobreza e obediência para incluírem a proteção armada dos Cristãos na Palestina. Já os Cavaleiros Templários se originaram como uma ordem militar religiosa em torno de 1119-20 e reconhecida pelo Papa em 1129 no Concílio de Troyes. Seguindo a conquista de Jerusalém em 1099, a maioria dos Cruzados sobreviventes retornaram para a Europa, deixando os quatro pequenos territórios Latinos Cristãos desarmados e amplamente isolados em uma hostil região. Os Templários - vestindo túnicas pretas com uma cruz vermelha no manto - nasceram com o dever de proteger  a Terra Santa. É interessante apontar que as duas ordens se odiavam intensamente, mas juntas conseguiram proteger o Reino de Jerusalém com a força de soldados muito bem treinados que construíram e mantiveram uma cadeia de castelos muito bem estabelecidos ao longo das fronteiras do Reino. Como tinham bastante poder, eram populares e mantiveram-se independentes, essas ordens não respondiam ao controle de governantes locais e não era raro entrarem em conflito com reis dentro dos Reinos Cruzados.



          Ao longo da Costa do Mediterrâneo, além dos castelos fortificados, foram estabelecidos igrejas leais a Roma. O Reino de Jerusalém  englobava quinze catedrais. A Igreja da Natividade, em Bethlehem, por exemplo, se tornou o assento do bispo Cristão do Ocidente em 1110. Para os Cruzados, o Domo da Rocha foi o Templo de Salomão; a Mesquita de Aqsa foi convertida para o uso de um palácio e estábulos.


           É importante também lembrar que Muçulmanos e Cristãos continuaram convivendo juntos na cidade de Jerusalém. Para citar um notável exemplo, tínhamos Sírios que trabalhavam com peças de ouro no mercado à direita do Santo Sepulcro e trabalhadores Cristãos à esquerda. De fato, o trabalho em metais nesse período frequentemente combinava uma estética Islâmica com uma base Cristã. Algumas peças até carregavam uma inscrição indicando que elas foram feitas por um ourives Muçulmano para um Cristão. Outro exemplo é a rendição de Ascalão aos Cruzados, seguindo a derrota das forças Egípcias: Raimundo IV aceitou e o resultado foi que a cidade permaneceu um bastião Muçulmano até 1154. Essa é outra distorção sobre as guerras durante as Cruzadas: a ideia que cumulativamente elas representaram como regra uma amarga e cruel disputa entre duas religiões diametralmente opostas, cada uma tentando sempre aniquilar a outra. 

          As relações dos Cruzados com os povos locais do Oriente Médio eram complexas, especialmente por causa da grande diversidade étnica e de grupos religiosos espalhados na região. Cada uma dessas comunidades tinha um amplo espectro de objetivos, alianças, inimizades e interesses definidos por vários fatores - não simplesmente a identidade religiosa -, criando uma intricada teia de relações (Ref.20). E isso ficou bem claro para os Cruzados já durante a primeira jornada para Jerusalém, à medida que encontravam uma enorme variedade de sociedades pelo caminho.

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   SEGUNDA CRUZADA (1147-1149)

          Neste ponto da história, é crucial nos atentarmos ao contexto geral da Ásia no século XII, porque é aqui onde as distorções históricas sobre as Cruzadas se encontram para a formação de um quadro que foge demasiadamente da realidade. Como já reforçado, as Cruzadas foram uma campanha militar impulsionada e alimentada pela fé, pelo desejo dos Cruzados de libertarem a Terra Santa. Não existia um plano 'colonial' de ocupação ou de busca de riquezas. Quem na prática dominava o Oriente Médio antes e após a Primeira Cruzada eram os Muçulmanos. E, nesse sentido, os Muçulmanos estavam ocupados em várias frentes, enfrentando diversos inimigos não-Muçulmanos e heréticos, mais notavelmente os Ismaelistas (ramo dissidente minoritário do Xiismo) no Irã e as forças do Qara-Khitay, os quais são frequentemente descritos como uma espécie de proto-Mongóis. Aliás, as invasões Mongóis na primeira metade do século XIII foram apenas mais um capítulo de uma série de invasões de nômades das estepes aos domínios Muçulmanos no Leste Asiático que vinham ocorrendo há mais de um século.

          Apesar da importância de Jerusalém na 'geografia sagrada' do mundo Islâmico, os Cruzados, no quadro geral, eram apenas uma ameaça localizada e não fomentaram um espírito de jihad até meados do século XII. De fato, na literatura Persa dessa época (século XI-XIII), relativamente pouco é referido sobre os Cruzados, algo também observado em outros registros escritos do mundo Árabe. No texto titulado Bahr al-favaʾid ("Mar de Preciosas Virtudes"), escrito por um governante Seljúcida da Síria entre 1159 e 1162, temos mais referências aos Cruzados do que o normal, porém o real foco da obra recai nos heréticos, especialmente os Ismaelistas, os quais são considerados os piores tipos de infiéis pelo autor (o capítulo "Refutação aos Heréticos" deixa isso mais do que claro): 

          "(...) É melhor derramar o sangue de um herético do que matar setenta infiéis Gregos"

          Outro exemplo que ilustra bem a questão é que a propaganda da jihad Sunita durante o início das Cruzadas frequentemente tratava com igual importância as batalhas contra os Francos e os Fatímidas como parte de uma única campanha para a reconquista de terras aos governantes Muçulmanos Sunitas, dando menor importância aos planos Cruzados em específico. As Cruzadas, precisamos reforçar novamente, não eram campanhas sistemáticas de dominação promovidas pela Europa Ocidental, apenas campanhas militares essencialmente religiosas (peregrinações armadas) e de alto risco. Somando-se a isso, conflitos políticos internos no mundo Islâmico representavam outra preocupação maior do que os Cruzados.

          Eventualmente, em apenas algumas décadas após a retomada de Jerusalém, os reinos Cristãos e suas defesas na região começaram a perder as forças e a vontade de lutar, pressionados cada vez mais pelas forças Muçulmanas que cercavam a região. Em dezembro de 1144, Zengi, o Muçulmano governante de Alepo e Mosul, capturou Edessa, marcando a primeira grande perda territorial dos Cruzados. Isso fomentou, em 1147-49, uma nova grande ofensiva dos Cruzados, convocada pelo Papa Eugênio III e liderada pelo abade Francês Bernado de Claraval (1090-1153), numa tentativa de tomar Damasco, a mais importante cidade Muçulmana na Síria. A campanha foi um grande fracasso, principalmente porque os Muçulmanos tinham rapidamente se reagrupado na região. Em apenas quatro dias, as forças Muçulmanas lideradas pelo filho de Zengi, Nu ad-Din, levaram os Cruzados - representados principalmente pelos Francos nesse ataque - a recuarem.

          Mesmo com a derrota, os Cruzados Francos se recuperaram e foram triunfantes na Batalha de Montigisard, em 1117, uma vitória que foi amplamente repercutida na Europa mas que acabou diminuindo a urgência por ajuda do Ocidente. E o que se seguiu foi trágico para os Cristãos.

          Lideradas pelo Salah al-Din (Saladino), as forças Muçulmanas - composta por guerreiros do Egito, Síria e Iraque - avançaram ao longo da Síria e finalmente retomaram Jerusalém em outubro de 1187, após os Cruzados serem atropelados na Batalha de Hatim em 4 de julho do mesmo ano. Saladino e seus exércitos também reconquistaram quase toda a Palestina ainda no mesmo ano. No entanto, além de não promover um massacre contra as forças Cristãs no Reino de Jerusalém (honrando sua palavra de não o fazer caso houvesse rendição), Saladino permitiu que o Patriarcado de Jerusalém deixasse a cidade com os tesouros da Igreja, chegando a declarar [adaptado]:

          "Se nós arranjarmos desculpas para confiscar suas riquezas, os Francos irão nos acusar de traição (...) não os deixemos acusar o povo de fé de quebrar nossos votos de honra. Deixem-os ir. Eles irão espalhar nossa benevolência."




          Saladino conseguiu uma vitória fulminante porque ele usava táticas de batalha muito diferentes daquelas que os Cruzados estavam já acostumados a lidarem com outras forças Muçulmanas. Ele implementou o uso de cavalaria de longo alcance, mas mantendo táticas Turcas tradicionais de velocidade; instruiu os guerreiros montados a usarem suas lanças como armas principais, e, quando estas quebrassem, as trocassem pelas espadas; e treinava seus arqueiros a como lutarem em campos abertos de batalha. Mas o principal trunfo de Saladino era explorar ao máximo o ambiente ao redor em busca de vantagens. Em Hatim, a manipulação do ambiente de batalha desorientou fatalmente os Cruzados, especialmente porque esses últimos estavam em terras estrangeiras.

         Saladino e os seus seguidores, ao entrarem na cidade sagrada, também se maravilharam com o que os Cruzados tinham feito com Jerusalém, deixando-a com uma beleza inigualável, especialmente com as Igrejas e palácios para os Templários e Hospitalares.

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   TERCEIRA CRUZADA (1189-1192)

           Ao ouvir sobre a desastrosa derrota na Batalha de Hatim, uma nova chamada por ajuda aos Cruzados foi deflagrada. Em março de 1188, Henrique II da Inglaterra, Ricardo I (filho de Henrique II), Filipe II da França, e o Imperador Sacro Romano Frederico I já tinham feito votos de espada aos Cruzados. Inicialmente, ambos os exércitos enviados pelos três representantes Europeus se atrasaram: França e Inglaterra por causa de suspeitas mútuas, e os Germânicos após a morte de Frederico I durante a travessia do Rio Goksu em junho de 1190. Henrique II também morreu antes da sua partida programada para a Cruzada, mas Ricardo I (Coração de Leão) e Filipe Augusto II chegaram à Jerusalém no verão de 1191. Ambos estabeleceram um cerco de quase 2 anos na região de Acre, a qual se rendeu em julho do mesmo ano, e, após a morte de Balduíno V, os dois passaram a discutir quem controlaria a Terra Santa caso fosse reconquistada.

          Filipe II resolveu retornar para o Ocidente, deixando para trás parte do seu exército. Ricardo I, no entanto, tentou retomar Jerusalém, matando os prisioneiros no Acre, colocando um cerco em Arsuf e Jaffa, e refortificando Ascalon. Porém, a Inglaterra começou a passar por uma grave crise política, forçando Ricardo I a voltar para às terras Britânicas em 9 de outubro de 1192, mas antes fazendo um acordo com Saladino (assinado em 2 de setembro de 1192), este o qual garantia livre acesso a Jerusalém para os peregrinos Europeus e para os Judeus. Em 1193, Saladino morreu, o que fomentou promessas de novas Cruzadas e uma campanha militar em 1197 por parte do Imperador do Sacro Império Romano Henrique VI (filho de Frederico I). Porém, essa campanha terminou em um acordo de trégua em 1 de julho de 1198, após a morte de Henrique VI em 28 de setembro de 1197.




          No final, o saldo da Terceira Cruzada foi relativamente positivo, apesar de muito aquém daquele obtido na Primeira Cruzada, especialmente considerando que Jerusalém continuava sobre o controle dos Muçulmanos (ou seja, Deus estava desgostoso com os Cristãos na visão da Igreja Católica e dos seus seguidores). Os Cruzados ganharam a ilha de Chipre (localizada no leste do Mar Mediterrâneo) e a cidade costeira de Acre, situada na região da Galileia, ao norte da Baía de Haifa. E, apesar de breve, um acordo foi alcançado com Saladino que agradou em parte as três principais religiões na Terra Santa.

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   QUARTA CRUZADA (1202-1204)

          O sucesso relativo da Terceira Cruzada animou os habitantes da Europa e, após as forças Muçulmanas terem vencido os Cruzados - em pequeno número na região do Levante - na Batalha de Alarcos, o Papa Inocêncio II chamou por outra Cruzada. Em novembro de 1199, um grupo de cavaleiros Franceses juraram votos Cruzados. O objetivo inicial era a retomada de Jerusalém a partir da conquista do Egito, mas o fim dessa Cruzada terminou de forma completamente inesperada.

          Com cada Cruzada, as relações entre os Bizantinos (Gregos Ortodoxos) e as forças Ocidentais (Igreja Católica Latina) entraram em uma escalada de tensão. Após escolherem lados em uma disputa dinástica no Império Bizantino - realizando um acordo com o doge de Veneza, Enrico Dandolo (quem tinham sido cegado em um massacre contra os Latinos em Constantinopla), por ajuda para alcançarem o Oriente Médio - os Cruzados logo perceberam que tinham poucos soldados e menos dinheiro do que esperavam - e do que foi-lhes prometido. Então, em 1202, algumas das forças Europeias fizeram um cerco no porto de Zara do Rei da Hungria - que também estava sob votos Cruzados - para ganharem sua passagem. Em resposta, Inocêncio III excomungou os Venezianos e proibiu um ataque aos Bizantinos, em específico às cidades Cristãs. No entanto, essa mensagem não chegou a tempo (mas mesmo se tivesse chegado, talvez não mudasse o curso de eventos).




           Em 24 de junho e 1203, o exército Cruzado chegou aos pés de Constantinopla, com uma força consistindo em torno de 4500 cavaleiros e seus escudeiros, até 14 mil soldados de infantaria, e 20-30 mil Venezianos. Após uma intensa batalha, os Cruzados capturaram Constantinopla  nesse mesmo ano e colocaram Aleixo IV Ângelo (1182-1204) no trono. 

           Apesar da queda de Constantinopla ter ofuscado o objetivo inicial da campanha, um pequeno contingente de Cruzados Ocidentais, liderados por Renard II de Dampierre, efetivamente seguiu até o Oriente Médio, em abril de 1203. O grupo era constituído de 300 cavaleiros, muito pouco para mesmo considerar um ataque à bem fortificada Jerusalém, ou qualquer outra importante cidade, mas eles emprestaram apoio aos Estados Latinos que ainda resistiam precariamente em meio às poderosas forças Muçulmanas. 

          No final de janeiro de 1204, Murtizouphlos - um Bizantino da família Real anti-Ocidental - aproveitou-se da instabilidade política e da revolta da população na época para aprisionar e assassinar Aleixo IV e rapidamente se apoderar do trono, finalmente nomeando-se Aleixo V Ducas. O novo Imperador ordenou como primeiro ato que os Cruzados deixassem a cidade. Os Cruzados responderam furiosamente, retomando Constantinopla, saqueando a cidade e assassinando os monges e padres Ortodoxos no processo. As riquezas e tesouros tomados foram divididos entre os Venezianos, os Francos, e outros Cruzados, estes os quais fundaram o Império Latino, com Constantinopla sendo sua capital e Balduíno de Flanders seu Imperador. A liderança do alto clérigo Ortodoxo na cidade foi substituída por uma administração Católica, mas ao longo dos 59 anos de existência do Império Latino, os indivíduos que seguiam o Cristianismo Ortodoxo foram deixados vivendo livres e sem serem incomodados na região.

          Os Bizantinos formaram um governo no exílio e conseguiram retomar a Ásia Menor em 1235, e, em 1261, recapturaram Constantinopla, colocando um fim no Império Latino. No entanto, os esforços de batalha ao longo do século XIII enfraqueceram muito os Bizantinos, e, em 1453, os Turcos Otomanos - aproveitando da recuperação insuficiente do Império Bizantino - tomaram controle da região, capturando Constantinopla em 29 de maio de 1453.


   OUTRAS CRUZADAS

          Sucessivas Cruzadas foram promovidas ao longo do século XIII. A Sétima e a Oitava Cruzadas, em 1248, receberam o patrocínio de Luís IX, Rei da França, que morreu na Tunísia. Em 1268, a Antioquia caiu frente às sangrentas forças Muçulmanas do Sultão do Egito, Baibars, o qual também capturou o Castelo de Montfort, e, em 1291, a cidade do Acre, terminando a era dos Reinos Cruzados Latinos (em 1289 Trípoli foi capturada pelos Mamelucos). Chamadas por novas Cruzadas ao longo dos próximos séculos foram todas ignoradas.

          Para justificar a perda de Jerusalém e os fracassos das Cruzadas subsequentes à primeira, os Papas frequentemente argumentavam que os pecados dos habitantes da Terra Sagrada durante o domínio Cristão, assim como os pecados de todos os Cristãos, eram a causa dos infortúnios, uma punição ou abandono de Deus. Deus estaria preferindo os infiéis Sarracenos em posse da Terra Sagrada do que Cristãos pecadores. De fato, em 1198, Inocêncio III reforçou que os Cruzados precisavam depender do poder de Deus e não das suas forças ou números. Honório III, em sua carta a Leopoldo VI, duque da Áustria (1223), chega inclusive a descrever como os Cruzados se tornaram arrogantes, pensando que o sucesso deles era devido às suas habilidades marciais e não à vontade de Deus, e que consequentemente Deus os abandonou e eles perderam a fortaleza de Damieta (uma cidade no Egito).

          Além de punição ou abandono de Deus pelos pecados do mundo Cristão, existia também a defesa da ideia de teste da fé Cristã (Ref.23). Bernado de Clairvaux (São Bernardo) (1090-1153), amplamente responsável por orientar religiosamente a Segunda Cruzada, sugeriu que enquanto Deus era capaz de 'enviar uma dúzia de legiões angélicas' e liberar a Terra Sagrada sem qualquer auxílio humano, ele estava na verdade testando os Cristãos, querendo saber o que eles eram capazes de fazer em seu nome e em nome da salvação, um árduo teste de fé. Essa ideia foi reforçada pelo Papa Gregório (1187) durante a Terceira Cruzada. Em uma carta de 1216, Honório III também defendia esse cenário, escrevendo que Deus poderia arrancar a Terra Sagrada dos Sarracenos 'apenas com sua palavra', mas ele permitia que os infiéis a ocupassem até aqueles encarregados da sua liberação tivessem recebido suas recompensas. Deus poderia fazer tudo sozinho, mas ele escolheu testar a fé dos Cristãos. 

           O argumento do pecado foi muito usado pelos Papas para explicar derrotas locais durante a Primeira Cruzada e o fracasso das subsequentes Guerras Santas, visando sustentar as campanhas e suporte da população aos Cruzados e manter a estrutura da fé Cristã inabalável. 

            É importante lembrar aqui que, por causa da situação política feudal fraturada na Europa, os Papas emergiram como figuras centralizadores e de coordenação dos Cristãos durante as Cruzadas, ou seja, a importância dos Papas ia além de uma figura simplesmente religiosa.

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   IMPACTO DAS CRUZADAS NA EMERGÊNCIA DOS ESTADOS MODERNOS

          Apesar das Cruzadas terem, no saldo final, falhado em seu objetivo inicial e central, as migrações de conquista à Terra Santa impulsionaram a Europa Ocidental a abandonar o feudalismo e se mover em direção à criação de estados cada vez mais impessoais e consolidados. Os monarcas Europeus começaram a ganhar um maior poder político sobre o que antes dominava a Europa: uma rede solta de elites descentralizadas locais. Alguns historiadores, aliás, argumentam que o início do século XII marcou um ponto de virada no desenvolvimento da formação dos Estados nos territórios ocidentais da Europa, onde a taxação, administração e subsequente política de sociedade aumentaram a capacidade do Estado de intervir em todos os aspectos da vida social. No século XV, com a emergência e início de consolidação das transações comerciais trans-Atlânticas, os monarcas Europeus já possuíam um longo caminho percorrido de centralização do poder na figura do Estado, dando base para o surgimento de vários tipos de instituições críticas para a posterior industrialização e eventual estabelecimento do processo democrático.

          Segundo Blaydes & Paik (2016) (Ref.15), quatro foram os motivos que colocam as mobilizações associadas às Cruzadas como um evento causal para o aumento de poderio dos monarcas Ocidentais e da força dos Estados nascentes:

1. A saída de um relativo número de elites Europeias em direção ao Oriente Próximo reduziu o número absoluto de elites que podiam servir de desafios para o rei (menor concorrência pelo poder), aumentando a estabilidade dos monarcas governantes.

2. Os dízimos cobrados da população para sustentar as Cruzadas estão entre as primeiras formas de taxação a serem impostas sobre a população Europeia, criando precedentes para formas posteriores de taxação centralizada e encorajando o desenvolvimento de instituições representativas. Em 1166, o Rei Henrique II da Inglaterra, em assistência às exigências do Papa para o financiamento das Cruzadas, implementou um imposto na renda e na propriedade de todos no reino para a defesa de Jerusalém. Com a perda de Jerusalém para o sultão Muçulmano Saladino em 1187, Papas e Monarcas ao longo de toda a Europa Ocidental aumentaram ainda mais os esforços para o levantamento de fundos para as Cruzadas. A França e a Inglaterra, por exemplo, impuseram o famoso 'Dízimo Saladino', o qual cobrava 10% sobre todas as rendas e mercadorias móveis não essenciais em suporte para a reconquista da Terra Santa; quem se recusava a pagar era preso ou excomungado. O Filipe II, em 1190, teve até que abandonar o Dízimo Saladino por causa dos crescentes protestos contra sua rigorosidade.

3. A grande escala de vendas de terras pelas elites rurais procurando financiar as expedições Cruzadas diminuiu a força do modo feudal de administração das propriedades terrenas. Vendas, alugamentos e hipotecas das terras passaram a ser muito comuns e incentivadas pela Igreja (em 1145, o Papa garantiu aos Cruzados o direito de vender ou penhorar suas terras sem o consentimento dos Lordes Feudais ou parentes), levando eventualmente à alienação de propriedade pelos Cruzados. E não apenas a venda direta, mas empréstimos de fontes diversas para financiar as Cruzadas eram feitos com a terra dos Cruzados servindo de colateral. Muitas terras passaram a ficar nas mãos de arrendatários de capitais, estes os quias possuíam a habilidade de adquirir propriedades e oferecer empréstimos, geralmente em detrimento econômico dos Cruzados e de suas famílias. Essa brusca mudança na dinâmica socio-econômica - fomentada por motivos ideológicos e religiosos - na administração das terras contribuiu substancialmente para a destruição do feudalismo.

4. As Cruzadas foram um catalisador para a reintegração da Europa Ocidental dentro das redes de comércio global, com implicações para a ascensão de cidades e estruturas governamentais urbanas. Áreas com um grande número de Cruzados - mesmo após consideração de co-fatores, como a religiosidade - viram um aumento na estabilidade política, uma maior probabilidade no estabelecimento de instituições parlamentares, um maior fluxo de capital via taxas, e uma maior urbanização. O robusto crescimento das cidades Italianas através do comércio com o Oriente Próximo visando primariamente o abastecimento  dos Cruzados - mas gerando colateralmente robustas relações comerciais paralelas e oportunistas (com especial interesse nas especiarias e outras mercadorias exóticas) - é um clássico exemplo disso.

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   MITOS SOBRE AS CRUZADAS

          Carregados de anacronismo e distorções históricas, é comum ouvirmos discursos moderados ou extremistas que frequentemente usam as Cruzadas para a reafirmação de agendas políticas. Filmes e séries também rasgam os fatos históricos para a satisfação de roteiros comerciais. Entre os principais mitos que envolvem as Cruzadas, temos:


1. As Cruzadas representaram um ataque não provocado ao mundo Islâmico. 

          Como já discutido, isso passa longe da verdade. No ano de 632 d.C., o Egito, a Palestina, a Síria, a Ásia Menor, o Norte da África, a Espanha, a França, a Itália, e as ilhas da Sicília, Sardenha e Córsega eram todos territórios completamente Cristãos. Grande parte era de domínio do Império Romano, o qual apoiava-se no Cristianismo Ortodoxo. Porém, em 732 d.C., apenas um século depois, os Cristãos perderam o Egito, a Palestina, a Síria, o Norte da África, boa parte da Espanha, a maior parte da Ásia Menor e o sul da França. Outros territórios estavam sob ameaça de serem conquistados pelos Muçulmanos, e muitos Cristãos - especialmente os peregrinos - estavam sob ataque ou eram reprimidos. Essa tensão entre Cristãos e Muçulmanos foi a principal ignição para as Cruzadas, e a retomada de Jerusalém como uma missão divina o combustível.

          Por outro lado, é também um mito pensar que Muçulmanos - e Sarracenos em geral (Árabes e Muçulmanos) -  e Cristãos eram como água e óleo. Apesar dos muitos conflitos, existiam diversos acordos pacíficos e relações comerciais entre ambas as partes. Aliás, devido a aspectos geográficos, os Bizantinos possuíam naturalmente laços comerciais e políticos muito fortes com o mundo Muçulmano, apesar dos constantes conflitos intercalados com períodos pacíficos. Para citar um bom exemplo, próximo do fim da Primeira Cruzada, o exército Cruzado estava disposto a aliar-se com al-Afdal, um vizir Fatímida do Egito, com o seguinte acordo: os Cruzados iriam restaurar a propriedade perdida do vizir - confiscada pelos Turcos - e, em retorno, ele iria retornar Jerusalém e seus territórios adjacentes para as mãos dos Cruzados. Apesar das negociações não terem tido sucesso - forçando as forças Cruzadas a conquistarem Jerusalém em 1099 -, isso mostra que os Cristãos Ocidentais tentaram evitar um derramamento desnecessário de sangue ao tentar uma aproximação diplomática com os Sarracenos. Outro exemplo de mesma natureza é o fato de que quando a cidade de Jerusalém foi conquistada em 638 pelo Califa Omar, os Cristãos e os Judeus eram permitidos de praticarem suas religiões na cidade sagrada caso concordassem em pagar uma taxa especial, a já mencionada jizya.


2. Os Cristãos e Estados Ocidentais participaram das Cruzadas por motivos de ganância, em busca de riquezas.

          Esse mito é bastante disseminado, mas, como já deixado claro, a essência de motivação das Cruzadas foi a fé Cristã, uma resposta sincera aos chamados e promessas do Papa Urbano II. A força principal dos Cruzados era composta por guerreiros Cristão profissionais, os quais arduamente buscavam perdão pelos seus pecados e juraram proteger seus vizinhos Cristãos no leste das forças infiéis. Os Cristãos Ocidentais não tinham interesse em colonizar o Oriente Médio ao promoverem as Cruzadas. O patrocínio e recursos de sustentação dos Cruzados em Jerusalém vinham quase que exclusivamente da Europa Ocidental, e nunca existiu quaisquer tentativas de relação colonial. Muitos Cruzados, especialmente representantes da nobreza, sustentaram a si mesmos nas campanhas militares com suas próprias riquezas. 

          Enormes custos de viagem e alto risco de morte (50-75%), sem um sólido plano de colonização ou organização militar, só podem ser explicados pela devoção religiosa dos Cruzados - independentemente dos motivos implícitos dos Papas de fortalecer o poder da Igreja Católica em potencial conflito com os interesses puramente religiosos. Mesmo após a Quarta Cruzada, marcada por total fracasso, campanhas militares de Cruzados continuaram em limitado porte, financiadas e lideradas por nobres muito ricos e com grandes posses de terra, mesmo sob alto risco de derrota e pesadas perdas (materiais e humanas) (Ref.26). Relíquias sagradas, salvação da alma e outras buscas espirituais e de glória nesse sentido impulsionavam os líderes Cruzados e muitos dos seus seguidores, não um plano incoerente de investimento financeiro e de colonização exploratória em terras distantes e extremamente perigosas.

          É preciso entender que o mundo onde os Cruzados viviam era bem diferente do nosso hoje, com diferentes valores (1). A religião era algo indistinguível de outras atividades básicas do dia-a-dia. Se os Cruzados não tivessem sido motivados por religião, mas por terra e riquezas, os cavaleiros da Europa teriam respondido mais cedo, em 1063 d.C., quando o Papa Alexandre II propôs uma Cruzada para expulsar os infiéis Muçulmanos da Espanha. Ao contrário da Terra Santa na longínqua Palestina, a região Espanhola visada era extremamente rica, com solos muito férteis e ainda localizada dentro da Europa Ocidental. Mas praticamente ninguém atendeu ao chamado Papal. Trinta anos mais tarde, porém, milhares atenderam prontamente ao chamado do Papa. Não era mais a Espanha a ser defendida, era a Terra Santa. Jesus Cristo não andou pelas ruas de Toledo, nem foi crucificado em Sevilla.

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(1) Outro exemplo que deixa isso bem claro ocorreu entre os séculos XIV e XVI, onde "surtos" patológicos de danças ligados a fatores religiosos levou grande terror aos habitantes da Europa. Para saber mais, acesse: A misteriosa Praga da Dança!
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          Obviamente, isso não significa que não houve busca materialística durante as campanhas, especialmente pelos integrantes mais pobres das Cruzadas (camponeses e comuns), já que estes precisavam de sólido suporte para continuarem firmes na missão de fé. Os Papas, inclusive, não colocavam um banimento formal na aquisição de territórios e acumulação de riquezas pilhadas pelos Cruzados. Essa mistura de necessidades materialística e espiritual foi chave crucial para se ganhar o massivo apoio às Cruzadas tanto dos ricos quanto dos pobres. No entanto, a busca materialística não era, nem de longe, o real interesse dos Cruzados. A obsessão de Ricardo Coração de Leão por Jerusalém representa bem isso. As Cruzadas eram Guerras Santas em um sentido quase literal. Eram mais peregrinações do que campanhas militares. Algumas fontes citam, inclusive, que o Rei Luís IX da França expressou um desejo de desistir da sua coroa e se tornar um monge quando retornou da sétima Cruzada, mas sua esposa teria o feito desistir da ideia (Ref.26).

          Aliás, os abusos da Igreja Católica denunciados por Martinho Lutero vieram em parte por causa das excessivas taxas (associadas às indulgências) impostas pelos Papas para continuarem sustentando as Cruzadas durante o século XIII. A Cruzada de Luís IX em meados do século XIII custou mais de seis vezes o rendimento obtido anualmente pela Coroa. Poucas pessoas se tornaram mais ricas com as Cruzadas, ou voltavam vivas, e a maioria dos seus integrantes tinham plena consciência disso. As Cruzadas eram entendidas como uma penitência aceitável para os pecados, uma jornada para a purificação da alma, um teste de Deus e uma chance para a entrada no Reino dos Céus. A Quarta Cruzada, por exemplo, perdeu totalmente seu rumo devido a falta de recursos financeiros para seu patrocínio.

           Talvez o único caso conhecido onde podemos apontar um claro interesse econômico associado às Cruzadas (oportunidade, e não motivo) foi por parte dos Italianos após a tomada de Jerusalém em 1099. Junto à chegada de uma série de frotas do Ocidente - com recursos para o controle da região costeira e a criação de estados viáveis - os Cruzados tiveram importante suporte das cidades Italianas de Veneza, Pisa e, particularmente, da jovem Gênova. O motivo para o forte envolvimento desses notáveis centros comerciais da Itália é ainda debatido, mas existem evidências suficientes mostrando que eles possuíam interesse tanto religioso quanto comercial em manter Jerusalém nas mãos dos Cristãos. Navegantes e tropas Italianas ajudaram a capturar vitais portos costeiros (como Acre, Cesárea e Jaffa), obtendo generosos privilégios comerciais, especialmente transportando especiarias e outras mercadorias do interior Muçulmano para a Europa. Por outro lado, os Italianos se empenharam também ao máximo para levar e trazer peregrinos que buscavam visitar a Terra Santa.


3. Os Cruzados tinham como objetivo impor a religião Cristã com a força da espada.

          O objetivo primordial dos Cruzados era a retomada e defesa da Terra Santa. Eles não buscavam converter os Muçulmanos ali, apenas libertar Jerusalém e mantê-la nas mãos Cristãs. Aliás, os Papas acreditavam que os Muçulmanos não eram passíveis de conversão. Durante o estabelecimentos dos Reinos Cruzados Latinos, não houve tentativas de conversão, apenas defesa de Jerusalém contra os Muçulmanos que tentavam retomá-la. Aliás, durante o domínio Cruzado de Jerusalém, Muçulmanos eram deixados praticarem sua fé dentro da cidade, e havia interação pacífica entre as práticas Islâmicas e Cristãs.


4. As Cruzadas foram essencialmente criadas pelos segundos filhos de nobres que não podiam herdar as terras dos seus pais e, portanto, viram na Terra Santa uma oportunidade de ganhar terras.

          Para começar, como já explanado, territórios muito mais próximos e bem mais promissores estavam a disposição dos nobres naquela época. Não faz sentido dezenas de milhares de guerreiros marcharem de forma desorganizada e sem um bom motivo estratégico para um território longínquo, extremamente perigoso e pouco promissor. Somando-se a isso, segundos e terceiros filhos tendiam a ir para a Igreja, e o clero na época controlava mais de 1/3 das terras na Europa Ocidental, ou seja, não faltava terras para quaisquer que fossem os filhos de nobres durante o período das Cruzadas.


5. "Cruzada das Crianças"

          Conta-se que dois grupos independentes compostos por dezenas de milhares de crianças, inspirados por visões divinas de um menino Germânico e de um menino Francês, se reuniram ao redor de Colônia (cidade Germânica) e próximo de Chartres (região Francesa) na crença de que a pureza dos seus corpos receberia bênção divina e os permitiriam de recuperar Jerusalém. O grupo Germânico teria atravessado os Alpes e alguns teriam alcançado o porto de Gênova, onde a dura realidade (sem dinheiro, sem experiência de combate, sem armas) acabaram com quaisquer esperanças de conquista. Ali, recusaram a passagem do grupo para o Leste e toda a campanha colapsou.

          No entanto, essa narrativa tradicional é repleta de elementos lendários. O que se sabe hoje é que, de fato, existiram dois movimentos populares com pessoas de todas as idades em 1212 na Alemanha e na França com o desejo de retomarem Jerusalém. Esses movimentos - ainda pouco entendidos e obviamente fracassados - não eram uma Cruzada e tão pouco receberam autorização do Papa.

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          No primeiro estudo genético sobre os Cruzados publicado recentemente no periódico American Journal of Human Genetics (Ref.1), pesquisadores confirmaram que os guerreiros Cristãos tiveram um relacionamento próximo e até mesmo construíram famílias com o povo local na região do Oriente Próximo. E mais: essas pessoas morreram juntas em batalha, ou seja, provavelmente Cristãos Libaneses lutaram ao lado dos Cruzados na defesa de Jerusalém. A conclusão veio depois da análise de DNA oriundo de nove esqueletos datados do século XIII e descobertos em uma cova na região de Sídon, cidade do Líbano. No entanto, o estudo também mostrou que enquanto os Cruzados se misturaram como o povo local, a presença genética deles na região teve curta duração ao longo das gerações, praticamente desaparecendo das populações hoje do Oriente Médio.

          É bem estabelecido a identidade da nobreza oriunda de várias regiões da Europa Ocidental que liderou as Cruzadas, mas os registros históricos não dão detalhes sobre como os soldados ordinários que viajaram junto aos cavaleiros nobres viveram e morreram no Oriente Próximo (região que historicamente engloba a Anatólia, o Levante - Síria, Líbano, Jordânia, Chipre, Israel e territórios Palestinos - e a Mesopotâmia - Iraque). Nos últimos anos, os arqueólogos revelaram 25 esqueletos datando do século XIII dentro de uma cova na cidade Libanesa de Sídon. Todos pertenciam a homens que tinham sido violentamente mortos durante batalha, algo evidenciado por fortes traumas nos crânios e outros ossos. Os corpos tinham sido jogados em um buraco cavado e queimados.     

          Outro curioso e sinistro achado na área onde estava localizada a cova foi a identificação de um crânio isolado, o qual mostrava evidências de que a cabeça original tinha sido usada como projétil em uma catapulta para disseminar doenças e/ou reduzir a moral das forças inimigas, reforçando o quão brutal eram as batalhas nas Cruzadas.

          Através da análise preliminar de vestígios de objetos como calçados e moedas junto aos esqueletos, e datação com carbono-14 (1), os pesquisadores já tinham sugerido que aqueles eram Cruzados. No novo estudo, análises genéticas de 9 dos 25 esqueletos - sequenciamento completo de genoma no Instituto Sanger Wellcome - confirmaram confirmaram a suspeita. Três indivíduos ali eram Europeus de diversas origens, incluindo Espanha e Sardenha, quatro eram nativos do Oriente Próximo, e dois indivíduos possuíam uma ancestralidade genética mista, fortemente sugerindo que eles eram descendentes diretos da união amorosa entre Cruzados e Libaneses.




          Os resultados das análises inicialmente implicaram em duas hipóteses:

1. Seguindo uma batalha entre Cruzados/Europeus e um exército Muçulmano/Árabes, os mortos de ambos os lados foram enterrados na mesma cova.

2. Os Cruzados recrutaram povos nativos no Oriente Próximo para o exército Cristão e, portanto, os mortos enterrados na cova estavam todos lutando com os Cruzados.

           Porém, os registros históricos da época dessa batalha mostram que os ataques aos Cruzados foram liderados por exércitos Muçulmanos composto por indivíduos na maior parte recrutados da Síria, Iraque, Egito, Turquia e de tribos Beduínas na região. Além disso, as análises genéticas mostraram que os indivíduos nativos do Oriente Próximo ali enterrados eram geneticamente mais próximos dos atuais Libaneses. Em outras palavras, a probabilidade de que os indivíduos dos esqueletos não-Cruzados estavam lutando com os Muçulmanos é mínima, tornando a segunda hipótese a mais coerente, ou seja, integração dos Cristãos locais com a estrutura social dos Cruzados - incluindo a militar -, com nativos Cristãos se juntando aos Cruzados como soldados ou se tornando oficiais e cavaleiros. É válido também notar que esse cenário supõe que há 800 anos os Cristãos Libaneses já formavam uma estrutura geneticamente diferenciada (povos geneticamente isolados) em comparação com os Libaneses Muçulmanos. Poderiam Libaneses Muçulmanos terem se afeiçoado com os Cruzados e lutado com estes pela mesma causa?

          Os pesquisadores também sequenciaram o DNA de pessoas que viveram no Líbano há 2 mil anos (século III), durante o período Romano, bem antes dos Cruzados, e encontraram que a população Libanesa hoje é geneticamente muito similar àquela de milênios atrás. Isso sugere que os Cruzados não tiveram impacto genético de longo prazo no Oriente Próximo. Em outras palavras, os filhos de Cruzados com os Árabes que outrora tinham se juntado à Guerra Santa, provavelmente passaram a se casar com indivíduos da população local quando a luta teve fim, levando os traços genéticos dos Cristãos Ocidentais a se perderem ao longo das gerações.




          Isso reforça a ideia de que apesar dos violentos episódios iniciais de expulsão e matança na disputa pela Terra Santa, muitos Cruzados que permaneceram nos eventuais Reinos Cruzados não tratavam a região apenas como um campo de batalha, mas também como um lar, tentando inclusive conviver de forma pacífica e íntima com os povos nativos.     



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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