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Novamente confirmado: HIV indetectável é intransmissível


- Atualizado no dia 1 de dezembro de 2021 -

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          A AIDS é a síndrome da imunodeficiência humana causada pelo vírus HIV. Este vírus ataca e destrói as células do sistema imunológico, especialmente as células-T CD4+. Isso faz com que qualquer doença oportunista faça um estrago no corpo, mesmo que seja apenas um simples resfriado. Por isso o tratamento da infecção é tão importante, porque irá conter a reprodução do vírus dentro do corpo, protegendo o seu sistema imunológico. É estimado que 36,7 milhões de pessoas ao redor do mundo vivem com o vírus HIV, com a maior parte dos casos presentes na África subsaariana (em torno de 25 milhões), e com um notável aumento de casos na Rússia nos últimos anos.

          O tratamento da infecção pelo HIV é realizado via terapia anti-retroviral, e caso seguido rigorosamente pelo paciente, este pode alcançar o conceito U=U (Indetectável=Intransmissível). Em outras palavras, um paciente que consegue manter um nível de carga viral indetectável no sangue não é mais capaz de sexualmente transmitir o vírus para outras pessoas. Evidências acumuladas nas últimas décadas validam esse conceito, reforçado por um um estudo-comentário de revisão publicado em 2019 no periódico JAMA (Ref.1).

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   AIDS, HVI-1 E COQUETEL

          O vírus responsável pela AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida), o HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), é um retrovírus pertencente ao gênero Lentivirus, este o qual é englobado pela família Retroviridae. Existem dois tipos de HIV: o HIV-1 e o HIV-2, onde o primeiro é de longe o mais patogênico e infeccioso, sendo responsável pela maioria dos casos de infecção ao redor do mundo (o HIV-2 concentra-se apenas em algumas regiões da África Central). Apesar de possuir um genoma bem modesto (menos do que 10 quilobases de tamanho) e pouquíssimos genes, o HIV-1 evoluiu poderosos mecanismos de evasão contra o sistema imune dos humanos, especialmente uma alta taxa de mutação, sendo um dos vírus mais polimórficos conhecidos e existindo como uma enorme diversidade de variantes ou quasi-espécies.




          A transmissão do vírus entre humanos ocorre através de contato sexual (anal, oral e vaginal), exposição a sangue contaminado e de mãe para filho durante o parto. Vários são os fatores virais e do hospedeiro determinado a variabilidade de quadros clínicos e progresso da doença após a infecção pelo HIV-1, esta a qual é iniciada geralmente sem sintoma ou acompanhada de um mal-estar, com subsequentes leves mudanças no sistema imune. Essa fase inicial se prolonga por até 3 meses, momento no qual anticorpos específicos para o HIV podem ser detectados. O progresso da doença é tipicamente bem lento, levando vários anos para a infecção primária desenvolver sintomas e doenças oportunistas oriundas da imunossupressão, e caracterizando finalmente a AIDS.

          Durante a infecção primária, apesar do indivíduo infectado parecer saudável, o vírus está ativamente se replicando nos nódulos linfáticos e na corrente sanguínea. Como resultado, o sistema imune acaba sendo lentamente danificado pelas superpopulações de vírus destruindo as células infectadas - no caso, cruciais células do sistema imune carregando em suas superfícies a proteína CD4+ (linfócitos e monócito-macrófagos T4). Na AIDS em si, o indivíduo infectado possui uma alta carga viral e a contagem de células-T CD4+ é menor do que 200 células/mL. Além de ficarem gravemente suscetíveis a outras infecções diversas (Mycobacterium avium, Mycobacterium tuberculosis, Pneumocystis carinii, CMV, toxoplasmose, candidíase, etc.), e ao desenvolvimento de cânceres, o enfraquecimento do sistema imune na AIDS pode levar a problemas neurológicos. Sem tratamento, um indivíduo com AIDS sobrevive geralmente mais 3 anos no máximo, e gravemente debilitado.



          O maior avanço no campo médico de manejamento das infecções pelo HIV-1 foi o tratamento de pacientes com drogas antivirais, as quais podem suprimir a replicação do HIV-1 a níveis indetectáveis. Com o conhecimento cada vez maior da estrutura do vírus, seu genoma, interação com as células hospedeiras e complexo ciclo de vida, drogas cada vez mais eficientes foram sendo descobertas. Antes de 1996, poucos tratamentos anti-retrovirais existiam para suprimir o HIV-1, e a alternativa clínica era tratar constantemente as infecções oportunistas que atacavam o paciente com AIDS. Mas em meados da década de 1990 houve uma revolução no tratamento das infecções por HIV-1, com o desenvolvimento de inibidores da transcriptase reversa e protease, duas das três essenciais enzimas do HIV-1, junto com a introdução de um regime de medicamentos (coquetel) que combinavam essas drogas para otimizar a eficácia e durabilidade da terapia.

          A assim chamada terapia de combinação anti-retroviral dramaticamente suprime a replicação viral e reduz a carga viral do HIV-1 a níveis abaixo do limite de detecção da maioria dos métodos clínicos analíticos (<50 RNA cópias/mL), resultando em uma significativa reconstituição do sistema imune associada com um aumento de linfócitos-T CD4+ na circulação sanguínea. O sucesso dessa terapia combinada também reside no fato de que mais de um agente anti-retroviral visa mais de um alvo molecular do HIV-1, o que dificulta a evolução deste último no intuito de evadir a ação terapêutica do coquetel.

           Em um indivíduo não tratado, na média existem 104-105 ou mais partículas de HIV-1 para cada ml de plasma, com uma taxa de produção de cópias do vírus de ~1010/dia. Por causa da tendência de erros do processo de transcrição reversa, é estimado que 1 mutação é introduzida para cada 1000-10000 nucleotídeos sintetizados. Como o HIV-1 possui um genoma com ~10 mil nucleotídeos em tamanho (10 quilobases), de 1 a 10 mutações podem ser geradas em cada genoma viral em cada ciclo de replicação. Com esse enorme potencial para gerar diversidade genética, fica mais fácil para mecanismos evolutivos atuarem. Nesse sentido, antes de ser iniciado o tratamento, o paciente frequentemente terá quasi-espécies de vírus circulando em seu corpo resistentes a um ou duas drogas anti-retrovirais. Mas como o coquetel combina normalmente três drogas anti-retrovirais, torna-se mais difícil uma variante do vírus ser resistente a todas elas.

          De fato, os vírus da imunodeficiência humana é uma das mais rápidas entidades evolutivas conhecidas (Ref.12). Por isso é tão difícil criar uma vacina contra o HIV e também por isso existe resistência aos medicamentos, mesmo sendo múltiplos utilizados. Investigações realizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) revelaram recentemente que, nos últimos 4 anos, 12 países na África, na Ásia e nas Américas ultrapassaram os níveis aceitáveis de resistência medicamentosa contra os antirretrovirais que constituem a base principal do tratamento para o HIV: efavirenz e nevirapina (Ref.13). Na África sub-Saariana, entre 2012 e 2018, cerca de 50% dos novos bebês diagnosticados com a doença em nove países dessa região tinham uma forma de HIV que era resistente à efavirenz, nevirapina ou ambos. A causa para esse preocupante aumento de resistência permanece elusiva, mas pode estar ligado às interrupções indevidas no tratamento.

          Hoje, um dos objetivos de pesquisa, além da produção de vacinas, é a criação de tratamentos que necessitem de apenas dois ou até mesmo um medicamento anti-retroviral, ou que não necessitem de um regime diário de consumo. Isso diminuiria efeitos colaterais e reduziria custos. Aliás, recentemente, dois novos medicamentos - cabotegravir e rilpivirine - que só precisam ser injetados no paciente 1 vez por mês (possuem efeitos de longo prazo) mostraram ser tão efetivos quanto os medicamentos TAR em um teste clínico envolvendo 1000 pacientes em 16 países (Ref.12).

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   INDETECTÁVEL=INTRANSMISSÍVEL

          Os pacientes que segurem corretamente e diariamente a terapia anti-retroviral (TAR) prescrita conseguem ter uma vida praticamente normal e saudável, e podem viver quase tanto quanto uma pessoa saudável não infectada pelo vírus. Além disso, a carga viral se torna tão pequena nesses pacientes que as chances de transmissão tendem a ser desprezíveis através do contato sexual. De fato, o consenso hoje é que uma carga viral de HIV-1 não detectável virtualmente não oferece risco de transmissão, e a pessoa pode ter relações sexuais com seu parceiro fixo sem se preocupar, mesmo sem proteção (camisinha). É o famoso conceito U=U ("Indetectável=Intransmissível", na tradução da sigla em inglês).

          O conceito U=U emergiu em 2016 com a Prevention Access Campaign, uma iniciativa internacional cujo objetivo é o fim da pandemia de HIV/AIDS assim como o fim do preconceito associado aos portadores do vírus. Esse conceito, baseado em fortes evidências científicas de alta qualidade, trouxe implicações para o tratamento da infecção por HIV de um ponto de vista científico e de saúde pública, para a auto-estima dos indivíduos ao reduzir o estigma associado ao HIV, e até mesmo para aspectos legais de criminalização ligados ao HIV.

          A primeira evidência corroborando o U=U veio com um estudo de revisão na Suíça em 2008, o qual indicava que indivíduos com HIV que não tiveram outras infecções sexualmente transmitidas, e alcançaram e mantiveram uma carga viral indetectável por no mínimo 6 meses, não mais transmitiam HIV pela via sexual. Em 2011, o HPTN (HIV Prevention Trials Network) realizou um robusto estudo comparando o efeito de um tratamento de TAR iniciado no início da infecção com uma TAR iniciada tardiamente em um total de 1763 casais (98% heterossexuais) onde um dos parceiros estava infectado com o vírus. O resultado mostrou uma redução de 96,4% na transmissão do HIV no grupo onde o tratamento foi iniciado o quanto antes.

          Estudos subsequentes, comparando milhares de casais fixos praticando sexo sem camisinha, em diferentes populações ao redor do mundo e de diferentes orientações sexuais (maior ou menor prevalência de sexo anal ou vaginal), praticamente confirmaram que para uma carga viral menor do que 200 cópias/mL, o risco de transmissão era virtualmente zerado. Em um comentário publicado esta semana no periódico JAMA, autoridades do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA  (NIAID, da sigla em inglês) revisaram as evidências científicas associadas ao U=U, reforçando sua validade mais do que clara. Mas para manter essa validade, o paciente precisa seguir a TAR como prescrito, diariamente e continuamente.




          Um dos grandes desafios a ser vencido é a grande taxa de abandono da TAR por causas diversas, incluindo indisponibilidade de medicamentos anti-retrovirais em certos países. Quando a TAR é interrompida, a carga viral sofre um substancial aumento dentro de 2 a 3 semanas. Campanhas reforçando o U=U são importantes, porque incentivam o paciente a manter a TAR como prescrito, especialmente por remover o sentimento de medo e culpa de que a pessoa pode estar representando um risco para seu parceiro sexual. Além disso, incentiva o governo a assegurar a disponibilidade dos medicamentos anti-retrovirais para a população. O U=U se torna também um importante conceito em países onde existem leis criminais usadas para penalizar exposições alegadas, percebidas ou potenciais de HIV de uma pessoa para outra. E, por fim, o U=U ajuda enormemente a diminuir o preconceito das pessoas em relação aos portadores do vírus, ao reforçar que as chances de transmissão via contato corporal de qualquer tipo são nulas caso a TAR seja religiosamente seguida.

          Um estudo mais recente publicado no periódico AIDS and Behavior (Ref.15), mostrou que uma maior e efetiva conscientização do conceito U=U na África do Sul é capaz de aumentar significativamente a taxa de homens aceitando realizar o teste de HIV. No país, existe uma grande resistência da população masculina em realizar o teste por causa da estigma e do medo associados a um resultado HIV-positivo. 

          Por outro lado, apesar de bem estabelecida na literatura acadêmica que o tratamento antiviral efetivo elimina o risco de transmissão do HIV, muitos profissionais de saúde ainda resistem em aceitar a ideia de U=U, e tendem a informar os pacientes que o risco de transmissão é "muito baixo" mas possível, criando empecilhos para campanhas de combate ao HIV, especialmente em comunidades muito afetadas pelo vírus (Ref.14).

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   CONCLUSÃO

          Pacientes que seguem religiosamente a terapia anti-retroviral alcançam um estado de não transmissibilidade da doença, e por isso ater-se ao tratamento é tão importante. Porém, o foco principal ainda continua o combate ao vírus HIV através de medidas de prevenção, como uso de camisinha com parceiros não fixos - especialmente em relações que envolvam sexo anal - e evitar o uso de seringas usadas. A Rússia hoje vive uma crise epidêmica de infecções com HIV por causa do descaso do governo em promover e investir nas campanhas de prevenção, inclusive ignorando  o PrEP (profilaxia de pré-exposição) (1) por razões homofóbicas. Entre 2010 e 2015, a UNAIDS calcula que mais de 80% dos novos casos de infecção em todo o Leste Europeu  e em toda a região do Centro Asiático estão localizados na Rússia, causados principalmente por uso de seringas usadas entre usuários de droga e sexo desprotegido. Cerca de 1,4-2 milhões de Russos estão infectados com HIV.


(1) Para mais informações, acesse: PeRP: O medicamento que previne a infecção pelo HIV

Leitura recomendada: Posso prevenir a infecção pelo HIV após uma relação desprotegida?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2720997 
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16890836 
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3312400/ 
  4. http://www.aids.gov.br/pt-br 
  5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3892619/
  6. https://www.cdc.gov/hiv/basics/whatishiv.html 
  7. https://aidsinfo.nih.gov/understanding-hiv-aids/fact-sheets/19/73/the-hiv-life-cycle
  8. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4924471/
  9. https://www.sciencemag.org/news/2018/06/russia-s-hivaids-epidemic-getting-worse-not-better
  10. https://www.nature.com/articles/d41586-019-00721-w
  11. https://www.nature.com/articles/s41598-018-19783-3
  12. https://evolution.berkeley.edu/evolibrary/article/0_0_0/medicine_04
  13. https://www.nature.com/articles/d41586-019-02316-x
  14. Ngure et al. (2020). “I just believe there is a risk” understanding of undetectable equals untransmissible (U = U) among health providers and HIV-negative partners in serodiscordant relationships in Kenya. Journal of the International AIDS Society, Volume 23, Issue 3, e25466. https://doi.org/10.1002/jia2.25466
  15. Smith et al. (2021). Undetectable = Untransmittable (U=U) Messaging Increases Uptake of HIV Testing Among Men: Results from a Pilot Cluster Randomized Trial. AIDS Behav 25, 3128–3136. https://doi.org/10.1007/s10461-021-03284-y