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Afinal, as mitocôndrias são sempre herdadas da mãe em humanos?


- Atualizado no dia 14 de maio de 2023 -

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          A mitocôndria é uma das mais reconhecidas organelas nas células eucariotas, a qual realiza um crucial papel na geração de energia metabólica e foi responsável pelo robusto e complexo sucesso evolutivo dos eucariontes. Essa organela é responsável pela maior parte da energia útil derivada da quebra de carboidratos e ácidos graxos, energia essa convertida em ATP pelo processo de fosforilação oxidativa. Mas a característica mais notável e única da mitocôndria é o fato desta possuir seu próprio DNA, o qual codifica tRNAs, rRNAs, e algumas proteínas mitocondriais. Todas as outras organelas citoplasmáticas nas células dos eucariontes - com exceção dos plasmídeos nas plantas - são totalmente dependentes do DNA presente no núcleo celular.

           Outra curiosidade sobre a mitocôndria, nesse sentido, é que praticamente todos os mamíferos e a grande maioria dos animais em geral, incluindo os humanos, herdam o DNA mitocondrial exclusivamente das mães (transmissão materna) como regra geral. Porém, é amplamente incerta a real extensão dessa regra entre os clados diversos de animais. Nesse último ponto, desde 2002 um acalorado debate acadêmico se arrasta sobre a possibilidade de transmissão paterna de DNA mitocondrial nos humanos. Em 2018, esse debate ficou ainda mais acalorado com um estudo alegando ter identificado 17 indivíduos pertencentes a três distintas famílias exibindo uma mistura de DNA mitocondrial paterno e materno.

  • OBSERVAÇÃO: A parte inicial deste artigo traz um breve resumo sobre a estrutura, funções e origem evolutiva da mitocôndria. A leitura é mais do que recomendada para quem não possui familiaridade com essa organela. O novo estudo é explorado no tópico 'MONOPÓLIO MATERNO?'

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   MITOCÔNDRIA (ESTRUTURA, FUNÇÕES E ORIGEM)

          Devido à possessão do seu próprio DNA, a estruturação da mitocôndria envolve proteínas codificadas pelo seu genoma e traduzidas dentro da organela, assim como proteínas codificadas pelo genoma nuclear e importadas do citosol.

           A mitocôndria se encontra cercada por um sistema de dupla-membrana, consistindo de membranas mitocondriais interna e externa. A membrana interna forma numerosas dobraduras (cristae), as quais se estendem para o interior (ou matriz) da organela. Cada um desses componentes possuem funções distintas, com a matriz e a membrana interna representando os principais compartimentos de trabalho dessa organela.




          A matriz contêm o sistema genético e as enzimas responsáveis pelas reações centrais do metabolismo oxidativo. A quebra oxidativa de glicose e ácidos graxos é a principal fonte de energia metabólica nas células animais. Os estágios iniciais do metabolismo de glicose (glicólise) ocorre no citosol, onde esse carboidrato é convertido em piruvato. Piruvato é então transportado dentro da mitocôndria, onde sua oxidação completa para CO2 gera a maior parte da energia útil (ATP) associada ao metabolismo da glicose. Na fase inicial de oxidação do piruvato é produzido acetil-CoA, o qual é em seguida quebrado em CO2 através do ciclo do ácido cítrico. A oxidação de ácidos graxos também produz acetil-CoA, o qual também segue o caminho do ciclo de ácido cítrico.




          Saindo da membrana interna, a membrana externa é permeável a moléculas pequenas, devido a presença de proteínas chamadas 'porinas', as quais formam canais que permitem a livre difusão de moléculas menores do que 6000 daltons. A composição do espaço intermembranal é portanto similar ao citosol em relação ao conteúdo de íons e pequenas moléculas.

          Além da importante função energética, a mitocôndria também atua de forma crítica em numerosas outras funções celulares, como na homeostase celular, apoptose (morte celular) e até mesmo no desenvolvimento neuronal (Ref.9).

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   GENÉTICA E ORIGEM DA MITOCÔNDRIA

           A mitocôndria contém seu próprio sistema genético, o qual é separado e distinto do genoma nuclear da célula. A única hipótese com real plausibilidade e suporte científico de evidências - e a mais óbvia e lógica, já considerada hoje uma teoria e fato científico no meio acadêmico - é que a mitocôndria evoluiu de uma bactéria que desenvolveu uma relação simbiótica dentro de células maiores (endossimbiose). Nos últimos anos, o resultado do sequenciamento de DNA de bactérias diversas revelou enormes similaridades entre os genomas mitocondriais e o da bactéria Rickettsia prowazekii. O gênero Rickettsa compreendem bactérias que são justamente parasitas intracelulares os quais, como as mitocôndrias, só são capazes de se reproduzirem dentro das células eucarióticas. Consistentemente com a similaridade simbiótica, sequências genômicas do DNA da Rickettsia e da mitocôndria fortemente sugerem que ambos compartilham um ancestral comum, a partir do qual o sistema genético das atuais mitocôndrias - de protozoários e plantas até os mamíferos - evoluiu.




          Nesse sentido, análises científicas estimam que a mitocôndria surgiu há cerca de 2 bilhões de anos atrás a partir do englobamento de uma alfa-proteobactéria por um percursor das células eucarióticas modernas. Apesar da mitocôndria ter mantido a característica de dupla membrana dos seus ancestrais e o sistema central de produção de ATP, a forma geral e a composição dessas organelas foram drasticamente alterados, adquirindo também diversas outras funções dentro das células eucarióticas.

          Continuando as incríveis semelhanças com as bactérias, as mitocôndrias geralmente possuem moléculas circulares de DNA. Como um passo essencial no processo de evolução eucariótica, o tamanho do cromossomo mitocondrial foi drasticamente reduzido, e grande parte do material genético da alfa-proteobactéria progenitora foi rapidamente perdido ou transferido para o genoma nuclear. Nos humanos, por exemplo, é um pequeno genoma circular, de aproximadamente 16 quilobases (cada quilobase, kb, corresponde a 1000 bases de nucleotídeos - A, G, C e T ou U) (1), o qual está presente nas células em um vasto excesso de cópias relativo aos cromossomos nucleares. Algumas leveduras e plantas possuem uma mitocôndria com genomas bem maiores, indo de 80 kb até 400 kb, respectivamente, apesar desses genomas maiores serem compostos predominantemente de sequências não-codificantes. A planta da espécie Arabidopsis thalina, por exemplo, possui um DNA de aproximadamente 367 kb, mas apenas codifica um pouco mais do que o dobro de proteínas (n = 32) da mitocôndria humana (n = 13).

  • (1) O mtDNA humano inclui 37 genes, com 13 deles codificando proteínas e 24 associados a moléculas de RNA não-codificante. Nesse sentido, quase todas as >1100 proteínas constituindo a estrutura mitocondrial são oriundas do genoma nuclear (Ref.). Para melhor entender o assunto (a partir de um conhecimento básico de genética), acesse o artigo: Letras artificiais e o maquinário genético

          Durante a evolução de eucariotas cada vez mais complexos, as mitocôndrias foram se especializando cada vez mais na função de produzir ATP através da fosforilação oxidativa, dirigindo a maior parte dos seus genes para essa tarefa. Na construção de proteínas para sua estrutura, enquanto o genoma dessas organelas conseguem codificar uma pequena parte delas, a outra parte é codificada com o auxílio do genoma nuclear. Nesse sentido, é provável que muitos genes responsáveis por essas proteínas antes presentes no ancestral alfa-proteobacteriano foram transferidos para o genoma nuclear.  O genoma mitocondrial do protozoário da espécie Reclinomonas americana, por exemplo, possui 69 kb e contém 97 genes codificantes (muito mais do que em outros eucariontes de grupos mais complexos, como plantas e animais). A mitocôndria nos humanos, por exemplo, possui apenas 37 genes. Fica mais do que sugerido que a mitocôndria presente nesse protozoário é uma das mais próximas em parentesco na escala evolutiva com o ancestral alfa-protobacteriano. E isso faz todo sentido, considerando que os protozoários representam os organismos eucarióticos mais simples, que não sofreram mudanças tão drásticas desde o ancestral comum de todos os eucariontes.




          A maioria dos genomas mitocondriais não codificam as proteínas necessárias para a replicação, transcrição ou tradução do DNA. Ao invés disso, os genes que codificam essas proteínas estão contidas no núcleo celular. Somando-se a isso, o genoma nuclear contém os genes que codificam a maioria das proteínas necessárias para a fosforilação oxidativa e todas as enzimas envolvidas no metabolismo mitocondrial. Essas proteínas (um total que ultrapassa os 95% do conteúdo proteico das mitocôndrias) são todas sintetizadas em ribossomos livres no citosol, entrando no ambiente mitocondrial a partir da membrana externa extremamente permeável, e através de complexas translocações em certos casos. Algumas estruturas críticas que permitem a passagem de diferentes proteínas do citosol através do sistema mitocondrial de dupla-membrana parecem também ter evoluído de forma convergente (2) entre diferentes grupos de seres vivos (protozoários, fungos, plantas e animais) (Ref.5).



          Além disso, existe outra diferença significativa referente ao DNA mitocondrial (mtDNA). No código genético universal dos procariontes e dos eucariontes, existem 64 possíveis códons tripletos, onde desses 61 codificam os 20 diferentes aminoácidos e os incorporam na formação das proteínas. Muitos tRNAs tanto nas células procarióticas quanto nas células eucarióticas são capazes de reconhecer mais de um único códon no mRNA, e são necessários, no mínimo, 30 diferentes tRNAs para traduzir o código universal. Porém, o mtDNA codifica apenas 22 tRNAs, e estes são os únicos tRNAs usados para traduzir os mRNAs mitocondriais. Isso é devido a características bioquímicas únicas dos tRNAs mitocondriais, permitindo que a uracila (U) no anticódon do tRNA consiga parear com qualquer das quatro bases no na posição do terceiro códon do mRNA, permitindo que 4 códons sejam reconhecidos por um único tRNA. Somando-se a isso, alguns códons na mitocôndria especificam diferentes aminoácidos em relação ao código universal.


          A replicação e a segregação dos cromossomos mitocondriais dentro da maioria dos eucariontes não é estritamente sincronizada com o ciclo celular global, e a qualquer momento a replicação do mtDNA ocorre para uma parte das cópias dessas organelas em uma dada célula. Em eucariontes mais complexos, como répteis e mamíferos, a segregação do mtDNA a nível celular depende parcialmente de eventos contínuos de divisão e fusão, cuja taxa varia de acordo com as necessidades de cada tipo de célula.

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> Um estudo publicado em 2020 no periódico Communications Biology  reforçou a ancestralidade comum de todos os eucariontes no contexto da teoria endossibiótica ao mostrar que tanto algas vermelhas (as mais simples células eucarióticas) quanto humanos compartilham o mesmo processo de fosforilação proteica durante a divisão celular da mitocôndria. Para mais informações, acesse: Evolução: A replicação mitocondrial é a mesma em algas primitivas e em humanos

> Em 2020, pesquisadores reportaram pela primeira vez uma ferramenta precisa para editar o DNA das mitocôndrias. No caso, a ferramenta é uma toxina (DddA) produzida pela bactéria Burkholderia cenocepacia. A Ddda, quando encontra uma base C (citosina) na cadeia de DNA, transforma essa em uma base U (uracila). Modificando-a em laboratório, os pesquisadores conseguiram controlá-la e torná-la mais precisa, e capaz de atuar no material genético mitocondrial. A nova enzima (DdCBEs) catalisa conversões C-G para T-A em mtDNA humano com alta especificidade e pureza de produto. Existe agora um alto potencial para tratar doenças letais ligadas ao mtDNA (!) via terapias gênicas, e também melhor estudar essa organela. O avanço foi detalhado na Nature (Ref.8).

(!) Hoje o único método efetivo para prevenir doenças ligadas a mutações patogênicas nas mitocôndrias é a mistura do DNA de três pessoas para a formação do embrião. Para mais informações: Anunciado bebê gerado a partir do DNA de três pessoas
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          E assim como no genoma nuclear, o mtDNA também é suscetível a mutações, algo responsável por doenças diversas associadas às mitocôndrias. Nas células eucarióticas, os genomas mitocondriais são aproximadamente idênticos (homoplasmia) entre as centenas ou milhares de cópias de mitocôndrias presente em um único indivíduo. Em muitas doenças mitocondriais, no entanto, alelos mutantes do lado materno acabam coexistindo com alelos normais (heteroplasmia). A extensão da heteroplasmia pode variar entre os tecidos e contribuir para a severidade da doença. Acumulação de mutações ao longo da vida de um indivíduo no mtDNA também está associada com o processo de envelhecimento.

          A nível de organismo, especificamente nos mamíferos, o mtDNA geralmente é transmitido de forma uniparental, ou seja, apenas de mãe para filho. Tanto o espermatozoide quando o óvulo possuem mitocôndrias, mas o mtDNA paterno tende a ser sempre eliminado após a fertilização - ou seja, só serve para fornecer energia aos espermatozoides (3). Após o espermatozoide entrar no citoplasma do oócito (fertilização), mitocôndrias paternas coexistem temporariamente no zigoto junto com um excesso de mitocôndrias maternas. Eventualmente, as mitocôndrias paternas são eliminadas por mecanismos que podem incluir degradação ativa (mitofagia) seletiva, autofagia e mesmo diluição passiva durante as divisões embrionárias até níveis indetectáveis (Ref.9). Aliás, as mitocôndrias possuem diferenças bioquímicas (marcadores) quando presentes no gameta feminino ou no gameta masculino, o que provavelmente ajuda a determinar quais serão eliminados. O fato do espermatozoide ser muito menor do que o óvulo também facilita o trabalho de eliminação do genoma mitocondrial paterno.

          De uma perspectiva teórica, a transmissão uniparental do mtDNA nos eucariontes modernos é fortemente conservada por estar associada com os seguintes benefícios:

- é pensada de suprimir a disseminação de variantes mitocondriais "egoístas";

- facilita a rápida eliminação de haplótipos deletérios e a fixação de haplótipos benéficos;

- previne erosão mutacional no genoma mitocondrial;

- Diferente do DNA nuclear, o mtDNA é mais suscetível a mudanças causadas por radicais livres devido à ausência de histonas e por estar localizado perto de centros mitocondriais geradores de espécies oxigenadas reativas. Nos animais em geral, é sugerido que o ambiente onde os espermatozoides são produzidos, armazenados e transportados os tornam ainda mais suscetíveis a danos no mtDNA, aumentando as chances de mutações deletérias capazes de causar graves doenças; além disso, espermatozoides não possuem citoplasma, resultando em baixa concentração de antioxidantes. Esses fatores somados aumentariam a pressão seletiva favorecendo eliminação do mtDNA paterno na embriogênese (Ref.9).

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   MONOPÓLIO MATERNO?

          Já é bem documentado há anos a transmissão de mtDNA paterno em algas e plantas (!), e a transmissão de mtDNA biparental (via vazamento paterno mitocondrial) em leveduras (fungos). Além disso, o processo de transmissão hereditária biparental já foi também observado ocasionalmente em várias espécies de animais mais complexos, como em moscas-da-fruta (Drosophila), galinhas e híbridos de ratos (Mus musculus × Mus spretus). Em mamíferos, transmissão biparental é muito rara; em animais mais simples (ex.: moluscos bivalves), é um fenômeno mais comumente observado. No entanto, sempre permaneceu controverso se a transmissão mtDNA paterna seria possível em humanos, mesmo que de forma extremamente rara.

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(!) Na maioria dos eucariontes, o genoma de organelas citoplasmáticas (mitocôndrias e plasmídeos) é herdado maternalmente. Em plantas, transmissão biparental (genomas materno e paterno) nos plasmídeos não é incomum e parece ser fomentada por fatores ambientais (ex.: estresse por frio) interagindo de forma complexa com fatores genéticos. Ocasional transmissão biparental nos plasmídeos e mitocôndrias pode ajudar a manter a estabilidade genômica citoplasmática (Ref.10).

> Em mais de 100 espécies de moluscos bivalves, pequenas proporções de mitocôndrias paternas coexistem com as mitocôndrias maternas em tecidos somáticos*, e esse traço é a norma e não a exceção. E, mais curioso, em um estudo publicado em 2021 na Communications Biology (Ref.11), pesquisadores reportaram que o bivalve marinho da espécie Arctica islandica exibe indivíduos machos e fêmeas com mitocôndrias exclusivamente paternas nos tecidos somáticos! Analisando uma população de A. islandica na Islândia, os pesquisadores encontraram que 11% dos indivíduos possuíam mtDNA paterno exclusivo. São os únicos animais conhecidos exibindo mtDNA exclusivamente paterno no corpo. Os indivíduos de A. islandica com mtDNA paterno exclusivo nos tecidos e órgãos do corpo perdem 30% da capacidade respiratória em relação aos indivíduos com mtDNA materno.

Na foto, valva esquerda de uma concha de A. islandica, coletada no arquipélago de Faroe Shelf, na região subártica do Atlântico Norte. Além da anômala transmissão uniparental paterna de mtDNA, o Arctica islandica detém a maior longevidade conhecida no reino animal; o espécime mais velho já registrado tinha 507 anos de idade. Aparentemente, esse molusco possui mecanismos altamente eficientes contra estresse oxidativo, particularmente alta capacidade mitocondrial de remoção de peróxido de hidrogênio (H2O2). Ref.12

*Tecidos somáticos são aqueles formados por células diploides nos animais, ou seja, todos os órgãos e tecidos do corpo. Células haploides são as células derivadas de células germinativas. 

> A transmissão biparental parece ser mais comum e estável entre híbridos de populações isoladas e de subespécies (Ref.13). Isso em parte porque pode existir divergência evolutiva nos marcadores associados às mitocôndrias paternas e maternas, dificultando o reconhecimento pelo maquinário de destruição mitocondrial seletiva associado ao gameta feminino. Aliás, em um estudo publicado no periódico Journal of Heredity (Ref.14), pesquisadores encontraram alta prevalência (2-59%) de transmissão biparental de mtDNA em três populações híbridos de crustáceos marinhos da espécie Tigriopus californicus. Aqui no Brasil, em Sergipe e na Bahia, existe alta frequência de hibridização entre duas espécies de tartarugas marinhas - tartaruga-comum (Caretta caretta) e tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata) - e presença de transmissão mitocondrial paterna nos híbridos de primeira geração (Ref.22).
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          As primeiras sólidas evidências de que transmissão biparental poderia ser possível na nossa espécie vieram com um estudo publicado em 2002, no The New England Journal of Medicine (Ref.6), quando pesquisadores descobriram que um paciente possuía nas células da sua musculatura esquelética ~90% de mtDNA paterno e ~10% de mtDNA materno. Porém, no resto do corpo, as células eram exclusivamente dominadas por mtDNA materno. Mesmo sendo um único caso reportado e isolado, o achado despertou significativa atenção da comunidade científica para o assunto. O caso foi posteriormente confirmado por pesquisadores da Harvard Medical School, com base nas amostras e resultados obtidos no estudo publicado no NEJM.

          No entanto, durante os próximos 16 anos, nenhum outro caso do tipo foi novamente encontrado, apesar da persistente busca por vários grupos de pesquisa. Isso levou muitos cientistas a começarem a acreditar que as análises do paciente de 2002 foram vítimas de algum tipo de erro técnico ou de contaminação de amostras. 

          Nesse sentido, seja no meio acadêmico seja no meio popular, tornou-se quase como um dogma que tanto a organela mitocôndria quanto o mtDNA mitocondrial são exclusivamente herdados pelo lado materno nos humanos. No entanto, um novo estudo publicado recentemente no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (Ref.7) praticamente derrubou esse dogma, confirmando que, de fato, DNA mitocondrial também pode ter uma parcela de hereditariedade paterna em certos casos.

          Para chegar nessa conclusão, os pesquisadores analisaram 3 famílias não relacionadas e que possuíam integrantes sofrendo de doenças com origem mitocondrial e possuindo um alto nível de heteroplasmia no mtDNA (variando de 24 a 76%). Através de análise genética realizada em três laboratórios distintos e sempre com novas amostras (para robustez e alta qualidade estatística, e de forma a excluir erros técnicos ou contaminações), os pesquisadores reportaram transmissão biparental de mtDNA (seja direta ou indireta) em 17 membros das famílias selecionadas. Treze desses indivíduos foram identificados via sequenciamento direto do genoma mitocondrial, e os outros 4 puderam ser inferidos baseando-se em heteroplasmia materna pré-existente causada por transmissão biparental nas gerações prévias.

          Mas como o mtDNA paterno escapou do seu destino normal de ser eliminado do embrião nesses 17 indivíduos?

          Para os pesquisadores do estudo, a provável causa para isso são mutações em genes que controlam a eliminação e/ou a replicação do mtDNA paterno durante os estágios iniciais de desenvolvimento do embrião. Infelizmente, os mecanismos moleculares associados à eliminação mitocondrial não são ainda totalmente compreendidos. Em ratos e na espécie de nematódeo Caenorhabditis elegans, o caminho lisossomial já foi mostrado ser crítico para a eliminação de mtDNA paterno. Autofagia também parece ser crítica no C. elegans através do autofagossomo LC3-dependente e da mitofagia. Recentemente já foi reportado também que a endonuclease-G mitocondrial se desloca do espaço intermembranal da mitocôndria paterna para a matriz após a fertilização, onde procede para a degradação ou eliminação do mtDNA paterno. Qualquer mutação nos genes associados a esses mecanismos pode fomentar a disseminação e persistência do mtDNA paterno nos embriões. Além disso, falhas em mecanismos responsáveis por favorecer a divisão e a multiplicação celulares do mtDNA materno durante o desenvolvimento embrionário em detrimento do mtDNA paterno podem também contribuir para a persistência do mtDNA paterno.

          De fato, segundo os resultados do estudo, o fator genético pareceu determinante nos casos analisados, já que o modo de transmissão biparental observado nas análises clínicas foi do tipo autossômico dominante (basta um gene anormal de um dos pais para o filho adquirir o fenótipo).

          De qualquer forma, os autores do novo estudo reforçaram que mesmo existindo casos isolados de transmissão biparental de mtDNA nos humanos, em uma escala de tempo evolucionária a transmissão materna continua sendo dominante e virtualmente exclusiva na nossa espécie. Portanto, o "dogma", em termos relativos, continua válido.


   CETICISMO

          Desde os achados do estudo de 2018 na PNAS, muito ceticismo e estudos críticos foram publicados, sugerindo possíveis contaminações das amostras analisadas, erros nas metodologias de análise genética e a proposta de outros mecanismos que podem possivelmente explicar a emergência do aparente alto nível de heteroplasmia nos 17 indivíduos (Ref.15-18). Alguns autores também argumentaram que o controle da presença de mtDNA precisa ter alguma influência epigenética e não apenas um fator nuclear como sugerido pelo estudo (Ref.15).

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> Relevante apontar que um estudo publicado em 2019 no periódico European Journal of Obstetrics & Gynecology and Reproductive Biology (Ref.16), analisando o mtDNA de indivíduos que foram gerados por técnicas de reprodução assistida (no caso, método de fertilização in vitro IVF-ICSI), encontrou que 2 bebês de 16 famílias exibiam mtDNA distinto das mães e associado a sequências do mtDNA dos pais, a princípio resultante de recombinação intermolecular entre mtDNA materno e mtDNA paterno.
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            O argumento cético mais recorrente questionando as supostas transmissões biparentais de mtDNA em humanos sugere que as sequências de mtDNA paterno identificadas são na verdade segmentos de mtDNA oriundos do genoma nuclear (núcleo celular), e não de mitocôndrias (Ref.19). Esses segmentos são conhecidos como NUMTs (nuclear mtDNA segments); particularmente longas sequências repetidas de NUMTs ("Mega-NUMTs") poderiam sofrer significativa amplificação via PCR e simular altos níveis de heteroplasmia - sugerindo erroneamente transmissão biparental de mtDNA. Apesar de raras, significativas inserções de mtDNA no genoma nuclear tem sido ocasionalmente observadas, e existe a possibilidade de inserções superficialmente similares a um mtDNA genuíno. Os autores do estudo de 2018 contra-argumentaram em 2019, caracterizando essa hipótese como improvável especialmente porque os 17 indivíduos positivamente associados com transmissão biparental de mtDNA eram pertencentes a três famílias independentes (Ref.17).

          Um estudo publicado em 2021 no periódico Genetics in Medicine (Ref.20), analisando quatro famílias em condições semelhantes àquelas das três famílias do estudo de 2018, concluiu que a transmissão biparental reportada previamente responde na verdade a co-amplificações de raros mega-NUMTs transmitidos paternalmente e mtDNA genuíno a partir do método de PCR de longo alcance. 

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   CONCLUSÃO

          O "dogma" central referente à exclusividade materna da transmissão vertical do DNA mitocondrial (mtDNA) nos humanos modernos (Homo sapiens) ainda continua firme quando olhamos o quadro geral, porém essa regra pode incluir exceções suportadas de forma notável por um estudo de 2018 na PNAS, onde transmissão biparental de mtDNA (paterna e materna) foi observada em 17 indivíduos de três distintas famílias. Por outro lado, estudos mais recentes têm fortemente questionado a validade dos achados nesse estudo de 2018, trazendo convincente evidência suportando uma explicação alternativa para a alegada transmissão biparental em humanos. Nesse sentido, é razoável concluir que transmissão paterna de mtDNA ainda não pode ser confirmada de ocorrer na nossa espécie. Até o momento, exceções à regra da "transmissão materna exclusiva de mtDNA" não possuem sólido suporte científico. Mais estudos são necessários para esclarecer a questão (!).

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(!) É importante esclarecer essa questão porque várias análises genéticas em diferentes campos da ciência (dinâmicas populacionais, estudos filogenéticos e paleogenômicos, investigações forenses, etc.) dependem da análise de genoma mitocondrial condicionada a uma transmissão uniparental.
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK9896/
  2. https://ghr.nlm.nih.gov/mitochondrial-dna
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK9896/
  4. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24195633
  5. https://elifesciences.org/articles/38209
  6. Schwartz & Vissing (2002). Paternal inheritance of mitochondrial DNA. NEJM, 347:576–580.
  7. Luo et al. (2018). Biparental Inheritance of Mitochondrial DNA in Humans. PNAS, 115 (51) 13039-13044. https://doi.org/10.1073/pnas.1810946115
  8. https://www.nature.com/articles/s41586-020-2477-4
  9. https://www.science.org/doi/abs/10.1126/science.abn4705
  10. Chung et al. (2023). Control of plastid inheritance by environmental and genetic factors. Nature Plants 9, 68–80. https://doi.org/10.1038/s41477-022-01323-7
  11. Dégletagne et al. (2021). Presence of male mitochondria in somatic tissues and their functional importance at the whole animal level in the marine bivalve Arctica islandica. Communications Biology 4, 1104. https://doi.org/10.1038/s42003-021-02593-1
  12. Blier et al. (2023). The longest-lived metazoan, Arctica islandica, exhibits high mitochondrial H2O2 removal capacities. Mitochondrion, Volume 68, Pages 81-86. https://doi.org/10.1016/j.mito.2022.11.005
  13. Allison et al. (2021). Selection for biparental inheritance of mitochondria under hybridization and mitonuclear fitness interactions. Proceedings of the Royal Society B, Volume 288, Issue 1964. https://doi.org/10.1098/rspb.2021.1600
  14. Lee & Willett (2021). Frequent Paternal Mitochondrial Inheritance and Rapid Haplotype Frequency Shifts in Copepod Hybrids. Journal of Heredity, Volume 113, Issue 2, Pages 171–183. https://doi.org/10.1093/jhered/esab068
  15. Camargo & Melo (2021). Mechanisms for sperm mitochondrial removal in embryos. Biochimica et Biophysica Acta (BBA) - Molecular Cell Research, Volume 1868, Issue 2, 118916. https://doi.org/10.1016/j.bbamcr.2020.118916
  16. Eker et al. (2019). Investigation of human paternal mitochondrial DNA transmission in ART babies whose fathers with male infertility. European Journal of Obstetrics & Gynecology and Reproductive Biology, Volume 236, P183-192. https://doi.org/10.1016/j.ejogrb.2019.02.011
  17. https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1821357116
  18. https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1909445116
  19. Pagnamenta et al. (2021). Biparental inheritance of mitochondrial DNA revisited. Nature Reviews Genetics, 22(8), 477–478. https://doi.org/10.1038/s41576-021-00380-6
  20. Bai et al. (2021). Interference of nuclear mitochondrial DNA segments in mitochondrial DNA testing resembles biparental transmission of mitochondrial DNA in humans. Genetics in Medicine 23, 1514–1521. https://doi.org/10.1038/s41436-021-01166-1
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  22. Vilaça et al. (2023). Evidence of backcross inviability and mitochondrial DNA paternal leakage in sea turtle hybrids. Molecular Ecology, Volume 32, Issue 3, Pages 628-643. https://doi.org/10.1111/mec.16773