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536 d.C.: O pior ano para se estar vivo


- Atualizado no dia 19 de agosto de 2019 -

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          Quando pensamos em anos sombrios pós-Antiguidade, logo tendemos a nos lembrar de 1349, quando a Peste Negra devastou mais de um terço da população Europeia. Ou lembramos de 1918, quando a gripe Espanhola matou de 50 a 100 milhões de pessoas, a maioria jovens adultos. Porém, muitos historiadores modernos discordam, e argumentam que 536 d.C. foi o mais assustador e trágico já presenciado pela humanidade até onde se tem conhecimento. "Foi o início de um dos piores períodos para se estar vivo, se não o pior ano", disse McCormick, historiador e arqueólogo da Universidade de Harvard, EUA, em entrevista para a Science Magazine (Ref.3) e autor principal de um recente estudo que aponta uma gigantesca erupção vulcânica na Islândia como causa principal dos eventos sinistros que atingiram a Eurásia em 536.

          Naquele ano, um sombrio, misterioso e profundo nevoeiro cinzento inundou a Europa e boa parte da Ásia, levando terror, miséria, frio e desespero para milhões e milhões de pessoas, e deflagrando o colapso de sociedades e Impérios ao longo do século VI. Os Escandinavos foram os mais negativamente afetados. Aliás, pelo que tudo indica, o mito do Ragnarök - o famoso Apocalipse Nórdico - nasceu como fruto direto dos eventos deflagrados em 536.



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   NEVOEIRO SOMBRIO

          Em 536, um misterioso nevoeiro tomou conta da Europa, Oriente Médio e de outras partes do continente Asiático, levando escuridão dia e noite para essas regiões, por 18 meses contínuos (com início no mês de março). Os cientistas hoje chamam esse intrigante evento de 'Dust Veil' (Véu de Poeira). Isso levou as temperaturas médias no verão desse ano a caírem em torno de 1,5°-2,5°C, iniciando a década mais fria nos últimos 2300 anos. No leste da Sibéria e no norte da Suécia, as temperaturas médias no verão chegaram a cair 3-4°C. Neve caiu no verão Chinês e Mesopotâmico, plantações foram devastadas, e inúmeras pessoas foram derrubadas pela fome.

          As primeiras observações desse evento foram realizadas em vários registros escritos nessa época. As crônicas Irlandesas, por exemplo, registram perdas totais na produção de pães nos anos de 536 a 539. Mas a mais dramática e detalhada descrição vem do oficial Romano Cassidorus, escrevendo fora de Ravenna, e em cujo Variae podemos ler: "...algo está vindo até nós das estrelas, produzindo um Sol colorido de azul, cobrindo a Lua Cheia e trazendo um verão sem calor... gelo perpétuo... seca não-natural; as plantações estão morrendo nos campos, nada cresce e todo o brilho das estrelas se tornou sombrio; coisas no meio do espaço dominam nossa visão; um nevoeiro se condensou por algum tipo de mistura... não permite nem a cor natural nem o calor dos corpos celestes penetrar; diferente da perda momentânea de um eclipse, o nevoeiro atravessou quase o ano inteiro." (Ref.1) Descrições similares de uma escuridão celestial prolongada, frio contínuo e perda de plantações são encontradas em registros escritos por Procópio, Zachariah de Mitilene, John o Lidiano, e John de Éfeso.

          A primeira confirmação científica dos efeitos desse evento veio da análise dos anéis de crescimento de árvore fósseis, os quais indicaram como os verões no hemisfério Norte, da Sibéria até os EUA, apresentaram um resfriamento fora do normal (menor luminosidade, menor crescimento das árvores por causa da menor capacidade de fotossíntese, associado também com uma variação nas concentrações de isótopos dos elementos oxigênio e carbono). Nas altas latitudes e altitudes, onde a produtividade nas plantações é altamente dependente da temperatura, os danos foram os mais pronunciados.

          E, se não podia ficar pior, em 541 uma praga bubônica atingiu o porto Romano de Pelúsio, no Egito. Chamada de 'Praga de Justiniano' - Justiniano, o Grande, foi um imperador Bizantino de 527 até 565 -, ela se espalhou rapidamente, dizimando de um terço a metade da população no Leste do Império Romano, e contribuindo para o colapso final desse último. Hoje se sabe que o seu agente de causa foi o bacilo Yersinia pestis, identificado de materiais esqueléticos do sul da Alemanha e da França. O impacto da praga com certeza foi amplificado pela fome e pela escassez na produção de vitamina D produzida na pele das pessoas, especialmente na Europa, consequências da baixa incidência de luz solar (1).


          Durante século VI, a maioria das vilas na Suécia foram abandonadas, com novos assentamentos mais tarde encontrados drasticamente reduzidos em número, marcando a maior mudança já vista em território Sueco nos últimos 6 mil anos em termos de estruturação civil. Previamente ao colapso, a economia agrária na Escandinávia estava se expandindo, mas comunidades bem estabelecidas há um milênio de repente foram abandonadas. Em várias áreas do sul da Noruega, o número de sepulturas encontradas após 536-545 d.C. caíram 90-95% em relação ao período anterior. Nas sociedades da ilha Báltica de Öland e Gotland, mais de 1300 casas da Idade do Ferro foram abandonadas naquele século em Öland, enquanto em Gotland o número ultrapassou as 1900.


          Ainda no contexto Escandinavo, o sombrio Véu de Poeira deflagrado em 536 provavelmente moldou grande parte da cultura Nórdica. No Gylfaginning ('O Truque de Gylfi'), presente na Edda de Snorri Sturluson - um texto Islandês do início do século XIII que reunia contos alicerces da Mitologia Nórdica - encontramos menção ao Fimbulvetr, o poderoso inverno que serviu de motor para o Ragnarök, a destruição de todos os mundos e seus habitantes, incluindo os deuses. Nessa menção, é descrito como o mítico Rei Gylfi visitou os deuses de Æsir e entrou em um salão onde três homens estavam sentados. Ele então perguntou o que eles sabiam sobre o Ragnarök. Um deles respondeu:




          Já no poema Medieval Völuspá, é indicado que o Ragnarök começa quando as crianças do lobo Fenrir levam a Lua embora, atacam o Sol e pintam a casa dos deuses de vermelho com o sangue dos seus próprios corpos. Além disso, junto a essas descrições, é também dito que os raios solares se tornam negros e as estrelas não mais passam a ser visíveis nos verões seguintes e que o clima fica fora de balanço. Isso entra em concordância não somente com o Gylfaginning e outros textos da Mitologia Nórdica, mas também com as fontes Clássicas.

          Quem testemunhou as trágicas consequências do Véu de Poeira muito certamente imaginava estar presenciando o literal fim do mundo. Quando nos poemas e contos do Ragnarök as cenas finais retratam a ressurreição do Sol, Terra e Deuses em uma paisagem paradisíaca, claramente podemos interpretar isso como um reflexo do momento feliz quando o calor do Sol retornou após o Fimbulwinter, trazendo nova e próspera vida para aqueles que sobreviveram.

          Aliás, quando o Ragnarök é mencionado no Edda, o termo possui a forma alternativa 'ragnarökkr'. Antigos acadêmicos traduziram essa palavra para 'Crepúsculo dos Deuses'. Essa leitura foi refutada por pesquisadores mais modernos, os quais passaram a interpretar o termo Ragnarök como o 'Fim dos Deuses'. No entanto, autores ainda mais recentes apontam que o 'ö' em 'rök' é um termo derivativo neutro, sugerindo substantivos alternativos como røk(k) ou rek(k) - os quais significam 'escuridão' - e os verbos fortemente associados røk(k)va e rek(k)va - 'escurecer'. Nesse sentido, hoje muitos historiadores consideram que 'Crepúsculo dos Deuses' ou 'Escuridão dos Deuses' é uma tradução mais acurada e que se encaixa perfeitamente com os longos períodos de escuridão e miséria vistos ao longo dos anos 536-550* d.C., especialmente em 536, os quais nem mesmo os deuses foram capazes de impedir.

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CURIOSIDADE: A pedra rúnica Rök, a mais famosa conhecida da Era Viking e localizada na região central da Suécia, parece fazer referência direta aos trágicos eventos de 536 d.C., também associando-os ao Ragnarök. Para saber mais, consulte o tópico 'Runas' no artigo Vikings: A Era Subestimada da Sociedade Nórdica
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   CAUSA DO APOCALIPSE

          Os historiadores já sabiam há muito tempo que o meio do século VI foi um período muito sombrio - no que costumava ser chamado de Idade das Trevas -, mas a fonte do misterioso nevoeiro nunca foi especificada, com o acúmulo de evidência nos últimos anos, porém, apontando claramente para uma ou mais super-erupções vulcânicas.

          Um estudo recentemente publicado no periódico Antiquity (Ref.2), liderado pelo arqueólogo McCormick e o glaciologista Paul Mayewski (Universidade de Maine, Orono), encontrou fortíssimas evidências de que o responsável principal pelo Véu de Poeira foi uma cataclísmica erupção vulcânica na Islândia, a qual espirrou uma quantidade absurda de cinzas ao longo de quase todo o Hemisfério Norte, no início do ano de 536, com duas outras massivas erupções vulcânicas ocorrendo também em 540* (2) e em 547* na mesma região. Outra massiva erupção também parece ter ocorrido na América do Norte, no final de 535 ou no início de 536, as quais podem ter contribuído para o fenômeno. Somando com a praga bubônica que assolou a Europa durante esse período, a economia Europeia sofreu uma terrível estagnação que durou até 640 d.C.

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(2) Lançando quase 50 km de pluma vulcânica na atmosfera e uma enorme quantidade de aerossóis para a estratosfera (fomentando um resfriamento quase global), essa segunda erupção parece ter ocorrido no outono de 539 d.C. a partir do vulcão Ilopango, em El Salvador (Ref.7). É estimado que mais de 100 mil mortes ocorreram devido ao evento na Mesoamérica - apelidado de Tierra Blanca Joven -, levando também ao abandono de uma área superior a 20 mil quilômetros quadrados. Com magnitude 7, é considerado uma das 10 maiores erupções vulcânicas nos últimos 7 mil anos.
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          Esses resultados foram obtidos após a análise ultra-precisa de um núcleo de gelo de 72 metros de comprimento retirado da Geleira Colle Gnifetti, nos Alpes Suíços, e que engloba traços químicos que representam um período de 2 mil anos na história humana. Eventos como erupções vulcânicas, variações climáticas e poluição humana deixam todos assinaturas químicas nas camadas de gelo sendo formadas por contínua sobreposição de neve ao longo dos anos (neve a qual arrasta os poluentes no ar atmosférico). Com o auxílio de poderosos lasers (ablação a laser), o time de pesquisadores - de forma inovadora - conseguiu colher amostras de 120 mícrons de espessura do núcleo, equivalentes a apenas alguns dias ou semanas de deposição de neve. Cada amostra - totalizando cerca de 50 mil para cada metro do núcleo de gelo - foi analisada para vários elementos químicos através da técnica super sensível de ICP-MS (Espectrometria de Massa com Plasma Indutivamente Acoplado).


          Com os dados das análises em mãos, os pesquisadores conseguiram construir uma linha do tempo de eventos que ocorreram entre os anos de 530 e de 660. O elemento mais crucial para entender a dinâmica da economia Europeia Medieval é o chumbo (Pb). O chumbo acaba indo para a atmosfera em significativas quantidades na Era Medieval a partir do processamento de minérios de prata nos altos fornos (3). A prata se tornou a nova moeda padrão na Europa no século VII, e o aumento expressivo da sua produção ficou evidenciado em dois picos de alta concentração de chumbo na atmosfera, um no ano de 640 e o outro no ano de 660. A fonte dessa enorme quantidade de prata, até agora um mistério, parece ter sido as minas de Melle, na França, de acordo com o novo estudo. Essa produção acompanha a recuperação da Europa pós-século VI. Picos de chumbo podem ocorrer também durante erupções vulcânicas, porém estas são acompanhadas pelo elemento bismuto - não presentes em mensurável quantidade durante durante as décadas do século VII. Sem as cinzas vulcânicas perturbando todo o clima Europeu, as atividades e expansão humanas se intensificaram.


           Os pesquisadores encontraram também partículas de vidro vulcânico que espelham rochas vulcânicas encontradas na Islândia nas amostras de gelo correspondentes ao ano de 636, indicando que essas partículas alcançaram até mesmo a Suíça e reforçando a super-erupção associada a esse ano. Por regra, geralmente quando ocorre uma enorme erupção vulcânica as temperaturas médias em vastas áreas tendem a diminuir bruscamente a médio e a longo prazo, devido a ejeção e dispersão de aerossóis (partículas muito pequenas) de compostos sulfurosos na estratosfera. Essas partículas tendem a ficar muito tempo nas altas camadas atmosféricas, e refletem de volta para o espaço parte da luz solar que entra, o que diminui substancialmente o aquecimento da superfície terrestre, além de escurecer o dia.

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   CONCLUSÃO

          Verões frios, invernos congelantes e profundas crises de fome. Quem viveu do ano de 536 d.C. em diante provavelmente pensou estar presenciando o fim do mundo, o Apocalipse para os Romanos Cristãos, o Ragnarök para os Nórdicos. Em 536, a escuridão reinou absoluta. Até os deuses sucumbiram nos poemas.



REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. Gräslund, B., & Price, N. (2012). Twilight of the gods? The “dust veil event” of AD 536 in critical perspective. Antiquity, 86(332), 428–443. 
  2. https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge-core/content/view/0727B4230C5DA92634B6251B9FBD3898/S0003598X18001102a.pdf/alpine_icecore_evidence_for_the_transformation_of_the_european_monetary_system_ad_640670.pdf
  3. https://www.sciencemag.org/news/2018/11/why-536-was-worst-year-be-alive
  4.  https://boris.unibe.ch/84499/1/PAGESmagazine_2015(2)_64-65_Churakova.pdf
  5. https://www.researchgate.net/publication/273445470_The_Years_without_Summer_Tracing_AD_536_and_Its_Aftermath
  6. https://www.nature.com/articles/s41598-018-19760-w/
  7. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0277379119301465