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Será que estou realmente sofrendo de um excesso de gases?


- Atualizado no dia 19 de janeiro de 2025 -

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          É muito comum ouvir as pessoas reclamando de sintomas no trato digestivo - especialmente relacionados ao intestino - devido supostamente ao excesso de gases. Isso é mais comum ainda quando o indivíduo possui problemas intestinais, como a síndrome do intestino irritável. Enquanto os pacientes geralmente ficam convencidos que os gases são a causa, o médico acaba possuindo poucos argumentos para confirmar ou refutar essa hipótese. Nesse contexto, alguns especialistas chegam a afirmar que a questão de culpabilidade do gás intestinal se tornou um mito (Ref.1). E, de fato, experimentos clínicos sobre a dinâmica gasosa intestinal nas últimas décadas trazem resultados que confrontam o consenso popular. Afinal, os gases são ou não o vilão?

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   GASES NO SISTEMA DIGESTIVO

          Os gases normalmente entram no trato digestivo quando engolimos ar e quando bactérias presentes no intestino grosso degradam certos alimentos não digeridos. Outras duas fontes importantes de gás é via interação química entre os sucos digestivos e a difusão de gases no intestino a partir da corrente sanguínea.

          Todo mundo engole pequenas quantidades de ar quando está comendo ou bebendo, e alguns alimentos, como refrigerantes, carregam uma quantidade extra de ar (geralmente dióxido de carbono) quando ingeridos. Esse ar engolido pode ser tanto eliminado pela boca - pela respiração ou ao arrotarmos - quanto pelo ânus - junto com as flatulências. No geral, engolimos mais ar quando:

- Mastigamos chicletes;
- Consumimos bebidas gaseificadas (refrigerantes, água com gás, etc.) (1);
- Comemos ou bebemos muito depressa;
- Fumamos;
- Chupamos doces duros (balas, pirulitos, etc.);
- Usamos dentaduras soltas de encaixe;

          Já a enorme quantidade de bactérias que compõem nossa microbiota intestinal age sobre carboidratos não completamente digeridos pelo estômago e pelo intestino delgado - açúcares, fibras, amido e outros polissacarídeos e oligossacarídeos - presentes nos alimentos, em especial naqueles de origem vegetal e integrais. Esses carboidratos servem, então, de alimento para essas bactérias quando chegam no intestino grosso (2). No processo de digestão por esses microrganismos - aeróbico e/ou anaeróbico -, gases como metano, dióxido de carbono, hidrogênio e sulfeto de hidrogênio são gerados. A concentração e ocorrência desses gases variam de pessoa para pessoa, dependendo da composição da microbiota, dinâmica intestinal e da dieta de cada um. Mas presença de gás nitrogênio e oxigênio na flatulência é devido exclusivamente à ingestão de ar.

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           É interessante também notar que nem todos os humanos produzem notáveis quantidades de gás metano no intestino (produção concentrada no cólon), com apenas 1 em cada 3 pessoas significativamente produzindo esse composto. Isso se deve ao fato de que nem todo mundo abriga um tipo específico de procarionte anaeróbico (!) capaz de produzir metano em boas quantidades, sendo essa característica definida por herança familiar. O filho de uma mãe e um pai 'produtores' de metano possui 95% de chance de também produzir metano, e isso parece ser definido por fatores ambientais na etapa inicial de desenvolvimento do bebê (contato com os pais) e não por genética. 

          No caso dos gases gerados pelos sucos digestivos, temos a massiva produção de dióxido de carbono quando o ácido clorídrico (HCl) do estômago é neutralizado pelo bicarbonato de sódio (NaHCO3) produzido pelo pâncreas no duodeno.

          São cinco os principais gases que constituem a maior parte (>99%) da mistura gasosa intestinal: oxigênio, nitrogênio, dióxido de carbono, metano e hidrogênio. Parte desses gases são absorvidos pela corrente sanguínea (via circulação venosa abdominal) e eliminados pelos pulmões, em específico os gases oxigênio, metano, hidrogênio e dióxido de carbono. O restante é eliminado pelas flatulências - no caso do hidrogênio, apenas 10% da quantidade produzida é eliminada nessa via, devido ao fato de que boa parte é reaproveitada como substrato energético pela microbiota. Nitrogênio é fracamente assimilado pela circulação sanguínea, sendo eliminado quase totalmente pelo ânus.

          O mau cheiro das flatulências é gerado majoritariamente pela pequena quantidade (<1%) de gases sulforados (contendo enxofre) produzidos pelas bactérias no intestino grosso, como metanotiol, dimetil sulfeto, dimetil dissulfeto, dimetil trisulfeto e, principalmente, sulfeto de hidrogênio. Os principais gases intestinais são todos inodoros.


   BACTÉRIAS E GASES
 
          Mais de 99% do gás intestinal é composto de hidrogênio molecular (H2), dióxido de carbono (CO2) e metano, todos inodoros. Menos de 1% é composto de outros compostos odoríferos. Gases que contribuem para o mau-cheiro dos flatos incluem compostos como sulfeto de hidrogênio (H2S), metanotiol (CH3SH) e sulfeto de dimetila (C) [(CH3)2S], assim como outras substâncias voláteis como ácidos graxos de cadeia curta. Ref.

          O intestino humano hospeda trilhões de bactérias, a maior parte representando organismos anaeróbicos. Os dois principais filos responsáveis pela produção de gás intestinal - primariamente H2 e CO2 - são bactérias Bacteroidetes e Firmicutes, e podem constituir até 90% da população total bacteriana no intestino. O gás CH4 é produzido por microrganismos Archaea no cólon, a partir do metabolismo de CO2 e de H2 (!). Compostos maucheirosos como o H2S são produzidos por bactérias redutoras de sulfato. Os sulfatos, por sua vez, podem ser derivados no cólon de fontes como proteína animal (ex.: carne, ovos, etc.) que contêm os aminoácidos cisteína, metionina e taurina, assim como polissacarídeos sulfatados, todos possuindo enxofre na estrutura molecular. O gás mais predominante produzido por bactérias no cólon é o H2, oriundo da fermentação de substratos (proteínas, carboidratos e gorduras) não digeridos ao longo do caminho gastrointestinal humano.

Leitura recomendada:

          As bactérias dos gêneros Bacteroides, Ruminococcus, Roseburia, Clostridium, Eubacterium, Desulfovibrio e Methanobrevibacter estão entre os mais abundantes integrantes da microbiota responsáveis pela produção de gás intestinal.

> Para uma revisão detalhada e atualizada sobre a produção de gases no intestino humano, acesse a Ref.18


   (!METANO E HIDROGÊNIO INTESTINAIS

          Entre os numerosos microrganismos que habitam o intestino humano, aqueles capazes de produzir metano, em geral, são procariontes pertencentes ao Reino Archaea, chamados de metanógenos. A espécie Methaninobrevibacter smithii é o metanógeno dominante no intestino humano, seguido pelo Methanospaera stadmagnae.   A produção de metano (CH4) é subsequente à produção de hidrogênio molecular (H2), durante o processo de fermentação anaeróbica de carboidratos endógenos ou exógenos (dieta). Na metanogênese, dióxido de carbono (CO2) é reduzido à CH4 através de H2 como agente redutor (doador de elétrons).


          Uma vez produzido, o metano intestinal pode ser excretado tanto pelo flato quanto exalado pela boca após atravessar a mucosa intestinal, entrar na circulação sistêmica sem ser metabolizado e sair pelo tecido pulmonar durante as trocas gasosas. Do total de metano produzido no intestino, 20% a 50% é exalado pela boca. É estimado que 35% a 65% dos adultos saudáveis produzem metano intestinal em níveis suficientes para ser detectado no ar exalado da boca (presença de 107 a 1010 metanógenos por grama de massa fecal seca) (Ref.11).

           Evidências acumuladas nas últimas décadas sugerem uma ligação entre distúrbios intestinais com a produção de metano e de sulfeto de hidrogênio na microbiota intestinal (Ref.12-13), apesar de uma relação causa-e-efeito não ter ainda sido estabelecida (Ref.15).

           Uma rara e catastrófica consequência do acúmulo de gases inflamáveis como H2 e CH4 no intestino são possíveis explosões ou fogo durante procedimentos cirúrgicos. Os reportes mais comuns nesse cenário são de explosões colônicas durante procedimentos de endoscopia ou laparotomia, ou fogo durante o uso de lasers por causa da liberação de gases intestinais. Nesse último caso, ficou famoso um acidente que ocorreu em 2016 envolvendo fogo e sérias queimaduras corporais em uma paciente quando esta liberou gases intestinais (flatulência) durante o uso cirúrgico de laser; a paciente tinha >30 anos de idade e o acidente ocorreu no Hospital da Universidade Médica de Tóquio, Japão (Ref.17). Alguns poucos casos envolvem explosões do intestino delgado (!).

          O gás no intestino grosso pode conter até 69% de hidrogênio e 56% de metano. A faixa explosiva do hidrogênio é de 4-72% e do metano é de 5-15%, mas nenhum deles é combustível em um ambiente com menos de 5% de oxigênio. A concentração de oxigênio diminui de 10% no estômago para 5% no cólon. Durante cirurgias, é comum usar anestesia geral com administração de oxigênio e/ou óxido nítrico, aumentando significativamente o potencial de explosão com o uso de ferramentas diatérmicas (usando correntes elétricas de aquecimento) para incisões cirúrgicas no intestino. Em situações de obstrução intestinal, onde existe fomento à proliferação microbiana e grande acúmulo de gases metano e hidrogênio, o risco de explosão aumenta ainda mais, inclusive no intestino delgado.

          Para reduzir o risco de explosão devido a cirurgias envolvendo o trato intestinal, recomenda-se: 

I. Uso de instrumentos alternativos de corte/dissecação (ex.: tesouras) ao invés de facas diatérmicas para incisões no intestino;

II. Evitar o uso de óxido nitroso como anestésico quando existe suspeita ou confirmação obstrução intestinal. 
      
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(!) Um exemplo nesse sentido foi reportado em 2020 no periódico Indian Journal of Surgery (Ref.16), onde um homem de 59 anos com obstrução no íleo (segmento final do intestino delgado) sofreu uma forte explosão durante incisão cirúrgica envolvendo um corte diatérmico. O íleo teve que ser removido, mostrando extensivas queimaduras, hemorragias e perfurações. Para fotos da porção removida do íleo, acesse aqui.

> Importante mencionar que existe produção de metano na boca por metanógenos presentes no microbioma oral. Inclusive, a espécie Methanospaera stadmagnae - principal representante Archaea na cavidade oral - está implicada em patologias periodontais.
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   EXCESSO DE GÁS

           Adultos saudáveis possuem, em média, cerca de 100 mL de gases intestinais (variando de 30 a 200 mL), principalmente compostos de hidrogênio (H2), dióxido de carbono (CO2) e de metano - produtos do metabolismo microbiano aeróbico ou anaeróbico - e menores quantidades de oxigênio (O2), nitrogênio (N2), sulfeto de hidrogênio (H2S), indol, escatol e amônia (NH2) (Ref.13). Os sintomas da presença de gás no sistema digestivo variam de pessoa para pessoa, e podem se manifestar como:

- Arrotar
- Flatulência
- Inchaço
- Dor ou desconforto abdominal

          Uma maior quantidade de gás sendo produzido - ou mudanças no seu fluxo dentro do intestino - pode ou não acentuar esses sintomas, e suas causas principais são:

- Excesso de bactérias e outros microrganismos no intestino delgado: A menor microbiota presente nessa região em comparação com o intestino grosso pode gerar uma significativa maior quantidade de gases (fermentação prematura) e diarreia caso aumentem de número populacional. Esse maior crescimento geralmente é consequência de outros problemas.

- Síndrome do intestino irritável: É um grupo de sintomas - incluindo dor ou desconforto no abdômen e mudanças nos padrões de movimento intestinal - que ocorrem juntos. Esse quadro pode afetar como os gases se movem através do intestino. O indivíduo afetado também pode se sentir inchado devido ao aumento de sensibilidade a quantidades normais de gás.

- Problemas na digestão de certos carboidratos: Uma causa comum de maior produção de gases é quando o indivíduo possui intolerância à lactose, onde a não digestão desse carboidrato - proveniente do leite e derivados -  acaba fornecendo-o de bandeja para a microbiota. Outros problemas intestinais que causam diarreia ou prejuízos à parede intestinal também fazem com que uma maior quantidade de carboidratos não satisfatoriamente digeridos alcancem o intestino grosso. Doença celíaca é um desses problemas.

- Mudança brusca de dieta: Pessoas que adotam subitamente uma dieta rica em fibras (mais cereais, grãos, frutas, verduras, alimentos integrais) geralmente passam a exibir uma maior produção de gases devido ao maior aporte de alimento para a microbiota. Introduzir esse novo tipo de dieta de forma mais gradual permite que o intestino tenha tempo de se adaptar - incluindo mudança na microbiota - e prevenir o maior acúmulo de gases. Moderação em alimentos que geram grande quantidade de resíduos fermentáveis, como feijões, também pode diminuir a produção de gases. Lembrando que diferentes microbiotas e taxas de trânsito intestinal entre as pessoas pode facilitar ou dificultar a produção de gases.

- Aerofagia: Seja por hábitos de alimentação seja por anormalidades psicológicas, algumas pessoas podem engolir mais ar do que o normal, aumentando a incidência de arrotos e mesmo flatulências. Comer mais devagar e de boca fechada pode ajudar muito nesse sentido, assim como reduzir ou evitar o consumo de bebidas gaseificadas. Fumar (cigarro, narguilé, maconha, etc.) e mascar chiclete também aumentam a ingestão de ar.

- Dificuldade de evacuação anal: A retenção de gases pode ser maior em indivíduos com problemas anatômicos que facilitam a obstrução da passagem do fluxo intestinal. Retenção de fezes também pode levar a um aumento na produção de gases e retenção desses últimos, ao bloquear o fluxo intestinal e ao deixar restos de alimentos por mais tempo no intestino grosso, permitindo maior fermentação bacteriana.

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> Muitas pessoas acreditam que estão liberando um excesso de flatos, mas é normal flatulências com frequências médias diárias de 18-21 vezes.

> O volume de gás produzido e evacuado pelo ânus é determinado por dois principais fatores: a dieta, particularmente a quantidade de resíduos fermentáveis, e a composição e atividade metabólica da microbiota colônica. Nesse sentido, alimentos que mais influenciam na geração de gases são de origem vegetal, ricos em carboidratos indigeríveis ou de difícil digestão pelo trato intestinal humano, como oligossacarídeos solúveis e fermentáveis da família da rafinose, polióis e frutanos. Para certos indivíduos com intolerância alimentar à lactose (3), leite e derivados podem aumentar a produção de gases, já que a maior parte da lactose será quebrada pela microbiota no cólon. 

Leitura recomendada

> Consumo moderado e continuado de alimentos pró-flatulência por indivíduos saudáveis geralmente não aumenta de forma significativa ou incômoda a produção ou frequência de flatulências a longo prazo. Isso porque esses alimentos podem modificar a microbiota no sentido de maior consumo metabólico do gás gerado ou pelo aumento da capacidade do gás ser absorvido na corrente sanguínea e ser eliminado na respiração.

> Durante típico metabolismo de alimentos digeridos e de componentes endógenos associados ao bolo alimentar transitando no trato digestivo, a microbiota intestinal da maioria das pessoas saudáveis pode gerar de 0,2 L até 1,5 L  de gás por dia.
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   FEIJÃO E GASES

           Muitas pessoas evitam comer feijão e outras leguminosas por acreditar que isso aumentará a flatulência além do normal. Porém, esse temor é um exagero e a maior parte das pessoas não relatam aumento de flatulência ou incômodo nesse sentido após consumo moderado de feijão e afins (Ref.22). Mais uma vez a questão recai nas fibras alimentares. A maioria dos legumes, incluindo feijões, contêm quantidades relativamente altas tanto de fibras quanto de amido resistente. Os oligossacarídeos encontrados nos legumes não são digeríveis pelas enzimas intestinais humanas. Ao invés disso, oligossacarídeos como rafinose - também presente em verduras como repolho, couve-flor e brócolis - e estaquiose são quebrados por fermentação bacteriana no intestino grosso. Essa fermentação gera como subprodutos os gases H2, CO2, CH4 e, às vezes, compostos sulfurosos, dependendo do tipo de bactéria envolvido.

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> Rafinoses e estaquioses estão presentes em todas as plantas e não podem ser digeridas ou absorvidas no intestino delgada devido à falta de enzimas α–galactosidases no sistema gastrointestinal humano. Portanto, são carboidratos que alcançam o cólon e acabam sendo degradados via fermentação bacteriana, com gases sendo liberados como subproduto metabólico. Lentilhas, feijões, ervilhas verdes e soja são exemplos notáveis de grãos ricos nesses carboidratos.

> Um consumo acima do moderado ou exagerado de feijão e outros derivados vegetais pode realmente aumentar a produção de gases até um nível de incômodo, especialmente se a dieta do indivíduo era antes baixa em fibras alimentares. Mas a resposta e a tolerância vão variar muito de indivíduo para indivíduo.
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          No geral, a incorporação de feijões na dieta pode resultar em maior flatulência inicialmente, variando em intensidade e percepção de pessoa para pessoa. Mas, com o tempo e continuado consumo de feijões, esse aumento inicial de flatulência é reduzido. O ideal é sempre introduzir aos poucos qualquer nova fonte rica em fibras na dieta, caso o objetivo seja minimizar o aumento de gases intestinais.

          Importante também lembrar que a microbiota diferencial entre as pessoas podem favorecer uma menor ou maior produção de gases intestinais. Por exemplo, bactérias no cólon das espécies Bacteroides fragilis e Bilophila wadsworthia na microbiota estão positivamente e significativamente associadas com o volume de gás evacuado ou número de evacuações de gás (Ref.23).


   OVOS E GASES

          Existe uma crença popular de que a ingestão de ovos aumenta de forma robusta a produção de gás e de flatulência, mas isso não possui suporte científico. Por conter aminoácidos com enxofre - assim como vários outros alimentos, como carnes -, produção de gases mau cheirosos pode aumentar, mas não a quantidade total de gases além do esperado para uma alimentação normal. Talvez a forte associação quantitativa e qualitativa entre ovos e flatos tenha origem do fétido e repulsivo odor de ovos podres (devido à presença significativa do gás sulfeto de hidrogênio).


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   GÁS E OS PROBLEMAS INTESTINAIS

          Apesar das pessoas e até médicos frequentemente culparem um suposto excesso e acúmulo de gás no intestino por boa parte dos casos sintomáticos de desconforto e dores na região gastrointestinal, a precisa relação entre gases intestinais e esses sintomas, particularmente inchaço e distensões abdominais, permanece relativamente pouco elucidada

          O volume e distribuição de gás dentro do trato gastrointestinal são rigorosamente controlados por uma complexa homeostase  que envolve a produção de gás, absorção via mucosas, consumo pela microbiota, propulsão intraluminal e evacuação anal. Estudos experimentais nas últimas décadas já mostraram que, em resposta à infusão jejunal de gás, pacientes com inchaço abdominal desenvolvem retenção de gás e sintomas, enquanto que indivíduos saudáveis toleram bem e rapidamente expulsam relativas grandes cargas de gás injetado. No entanto, em aparente conflito com esses resultados, quando pacientes reclamando de distensões abdominais têm sido especificamente investigados, apenas pequenas anormalidades pouco significativas no volume de gás e/ou distribuição são detectadas, tanto em condições normais quanto na ocorrência de episódios sintomáticos.

          Diferentes modelos experimentais de retenção de gás já foram usados para mostrar que enquanto a distensão abdominal está relacionada ao volume de gás dentro do intestino, a percepção de sintomas abdominais dependem tanto da atividade motora intestinal (gás é melhor tolerado quando o intestino está relaxada) quanto da distribuição intraluminal de gás (gás é melhor tolerado dentro do cólon do que dentro intestino delgado).

          Um estudo publicado em 2015 (Ref.7), reunindo dados sobre a dinâmica de gases intestinais em 37 adultos saudáveis e 118 pacientes - com idades de 19 e 74 anos - encontrou resultados indicando que o gás intestinal é temporariamente relacionado a sintomas gastrointestinais, especialmente distensão, flatulência e inchaço. Porém, as mudanças de distribuição e acúmulo do gás foram pequenas e não foram detectadas em todos os pacientes. Além disso, os pesquisadores responsáveis pelo estudo não conseguiram identificar características clínicas correlacionadas ao padrão anormal de gás. O fato de que apenas parte dos pacientes responderam às mudanças de padrões de gás no intestino sugere que outros fatores chaves estão envolvidos, com a sensação de distensão abdominal, por exemplo, podendo estar relacionada com fatores psicológicos, como ansiedade e somatização. Outra possibilidade é a provável existência de uma hipersensibilidade às mudanças na dinâmica intestinal, com as mudanças de padrões de gás, mesmo pequenas, disparando sintomas em uns e não em outros.

          Nesse e em outros estudos, como já mencionado, pacientes com distensões e sintomas abdominais subjetivos têm mostrado responder mais fortemente a injeções de gases pelo reto do que indivíduos saudáveis (até 30 mL/min), também indicando que não é o excesso ou acúmulo de gases o problema, e, sim, uma maior sensibilidade junto ou não de alterações no padrão de distribuição desses gases. Estudos clínicos com pacientes com síndrome do intestino irritável, por exemplo, mostram que estes possuem uma produção e acúmulo de gases dentro de uma faixa normal ou clinicamente sem importância e muitas vezes não diferentes de indivíduos saudáveis.

          Para completar, apesar da distensão abdominal estar de fato associada com um aumento de volume intra-abdominal, essa expansão de volume não necessariamente está envolvida com uma maior produção ou acúmulo de gases. Quando o volume abdominal é aumentado em indivíduos saudáveis, é induzido um incremento na atividade tônica dos músculos abdominais que pode ser medido via electromiografia. Essa resposta é provavelmente mediada por reflexos viscerossomáticos. Quando essa adaptação da parede abdominal ao aumento do volume intra-abdominal está comprometida - algo observado em pacientes que reclamam de inchaço -, uma falha na contração dos músculos abdominais surge. Em outras palavras, pacientes reclamando de inchaço realmente possuem uma distensão abdominal mas que não está obrigatoriamente ligada a um aumento no volume intra-abdominal, mas à distonia da parede abdominal com redistribuição e protusão da parede anterior. 

          Então, qual é a relevância clínica do gás intestinal? Pelas evidências acumuladas até o momento, para uma pequena proporção de pacientes a presença de gás no intestino é muito relevante para seus sintomas, mas na maioria dos pacientes reclamando de sintomas supostamente ligados aos gases a relação não é tão clara e provavelmente está mais ligada a outros fatores que podem ou não estar associados aos gases. No geral, um alegado excesso de gases no intestino raramente mostra-se um real problema.

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   CONCLUSÃO

          Reflexos anormais, inibições exageradas e estimulações comprometidas resultam em problemas de interação com o conteúdo intraluminal e distensões, e com a presença de hipersensibilidade podendo produzir sintomas que os pacientes frequentemente atribuem aos gases intestinais. Apesar de alterações na dinâmica de produção, acúmulo e fluxo dos gases intestinais serem causas de sintomas diversos, grande parte dos casos de dores e desconforto abdominais não parecem estar significativamente ligados a uma anormalidade associada aos gases em si. Hipersensibilidade aos gases e anormal distribuição destes por outros problemas podem ser os reais culpados, mesmo que esses não estejam sendo produzidos ou acumulados em excesso. Distensões muitas vezes são provocadas por falhas neuromusculares, não acúmulo excessivo de gases além do tolerado pela região intra-abdominal.

          Nesse sentido, um exame clínico mais detalhado dos problemas intestinais associados, e não apenas adoção de estratégias para diminuir a suposta maior produção ou acúmulo de gases, é mais do que essencial. Muitas vezes as pessoas podem procurar fazer mudanças na dieta ou se auto-medicarem achando que o problema é o excesso de gases, e acabam adiando a procura do real problema junto a um profissional de saúde.



REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
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  18. Rose et al. (2023). Intestinal gas production by the gut microbiota: A review. Journal of Functional Foods, Volume 100, 105367. https://doi.org/10.1016/j.jff.2022.105367
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