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Água gaseificada é prejudicial à saúde?


            Como uma alternativa a bebidas açucaradas, ou como uma opção hidratante com zero valor calórico, muitas pessoas gostam de consumir água com gás (uma mistura geralmente de água mineral com gás dióxido de carbono). Porém, devido à similaridade físico-química desse tipo de bebida com refrigerantes, e devido ao baixo pH (mais alto grau de acidez), muitas pessoas ficam preocupadas com os possíveis impactos deletérios da água com gás sobre a saúde. Mas existe real motivo de preocupação?

 

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   ÁGUA COM GÁS

           Água com gás (ou gaseificada)  foi “inventada” em meados-final do século XVIII, quando o cientista e clérigo Joseph Priestley suspendeu água acima de um tanque com cerveja sendo fermentada, onde as grandes quantidades de dióxido de carbono (CO2) sendo produzidas passivamente foram dissolvidas na água (Ref.1). O baixo pH e efervescência resultantes na solução aquosa final foi considerada agradável pelas pessoas, abrindo as portas para uma grande variedade de bebidas gaseificadas, especialmente os tão populares refrigerantes. É válido ressaltar, porém, que águas naturalmente gaseificadas em fontes geotérmicas já eram de antigo conhecimento e uso humano.

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          Carbonatação, a qual produz a efervescência e borbulhamento característicos associados com as bebidas gaseificadas, é o resultado da dissolução de gás CO2 em um líquido sob pressão. Temperatura e pressão influenciam a taxa na qual CO2 dissolvido é convertido em gás e liberado, portanto produzindo bolhas quando o recipiente da bebida é aberto. A temperatura e pressão ambiente, até cerca de 1 ml (2 mg) de CO2 pode ser dissolvido em 1 mL de solução aquosa neutra (pH = 7). Acidez é uma propriedade comum de várias bebidas carbonadas. Refrigerantes, água gaseificada, cerveja e sucos cítricos representam quatro das mais ácidas bebidas conhecidas. Em parte, a natureza ácida dos refrigerantes (pH ~3) é derivada da conversão de CO2 dissolvido em íons HCO3- e H+ pela interação com as moléculas de água (H2O), assim como aditivos como ácido cítrico e ácido fosfórico (notavelmente na Coca-Cola e similares).

          Porém, diferente dos refrigerantes, a água gaseificada tradicional não contém açúcares, adoçantes artificiais, entre outros aditivos, estes os quais estão associados com problemas de saúde diversos, desde obesidade e deterioração dentária até câncer.

          De fato, a água gaseificada muitas vezes é confundida com refrigerantes de baixa caloria, por informações divulgadas nas propagandas ou mesmo na embalagem dos produtos. Contudo, os refrigerantes de baixa caloria caracterizam-se pela adição de adoçantes artificiais e aditivos químicos, por isso não podem ser consideradas boas fontes de hidratação. A água gaseificada contém apenas a adição de gás (o que também pode ser característica natural da fonte da água) e, portanto, é isenta de calorias e aditivos.

          Portanto, em termos de preocupação com a saúde, sobra apenas a questão da acidez e da liberação de gás no sistema digestivo. Alguns estudos já sugeriram uma associação entre o consumo de bebidas gaseificadas e exacerbação do refluxo gastroesofágico, dispepsia (indigestão) e inchaço abdominal... mas qual a evidência de suporte?

   ÁGUA ÁCIDA

          Devido ao fato de grande parte das bebidas gaseificadas serem muito ácidas, alterações no pH intra-esofágico podem, a princípio, resultar em sintomas similares ao refluxo gastroesofágico (doença digestiva em que o ácido do estômago ou a bile voltam pelo esôfago, causando irritação na mucosa do tubo alimentar). Porém, apesar de estudos experimentais já terem demonstrado uma queda significativa no pH esofágico após consumo de bebidas gaseificadas, esse aumento de acidez é apenas temporário (em torno de 90 segundos), e mesmo o impacto de bebidas altamente ácidas, como a Coca-Cola (pH ~ 2,4-2,5), é mínimo na região esofágica para causar preocupação. Agora, considerando que o pH médio de uma água gaseificada gelada é de 4,5 (podendo atingir um mínimo de >3,5 dependendo da marca e modo de produção) (Ref.3), é improvável que a acidez dessa bebida cause qualquer problema no sistema gastrointestinal.

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           Já foi também sugerido que a ingestão crônica e repetida de bebidas gaseificadas altamente ácidas pode causar danos na mucosa esofágica. Porém, não existe nenhuma evidência de suporte para essa ideia, especialmente considerando que o tecido esofágico é bem adaptado para suportar eventuais exposições do suco gástrico muito mais ácido. Nem mesmo sintomas próximos de refluxos gastroesofágicos têm sido demonstrados, muito menos exacerbação do problema (Ref.4).

          Por fim, a preocupação com a erosão dentária. Durante a erosão química dos dentes, íons hidrogênio (H+) presentes em soluções ácidas se tornam dissociados e interagem com os cristais de hidroxiapatita no esmalte, deixando a estrutura enfraquecida. O potencial de erosão química de uma bebida ácida vai depender do valor do pH (concentração de H+), acidez titulável (quantidade total de H+ à medida que o valor de pH muda), propriedades de quelação do cálcio disponível, capacidade de tamponamento (manutenção do pH em uma determinada faixa) e o conteúdo mineral (especificamente o nível de íons cálcio e fosfato). Por exemplo, apesar do iogurte ter um pH abaixo de 4 (significativamente ácido), seu potencial de erosão é nulo, devido alto nível de cálcio e de fosfato.

          Qualquer bebida gaseificada geralmente possui um nível de acidez acima do limite crítico que favorece a desmineralização do esmalte dos dentes (pH menor do que 5,5). Porém, simples água gaseificada tipicamente não possui um pH tão baixo a ponto de causar significativo dano dentário a partir de um consumo moderado (Ref.6), e isso é corroborado pela Associação Americana de Odontologia (Ref.7). Valores de pH acima de 4 (típicos de água gaseificada) são minimamente erosivos (Ref.8), causando impactos nos dentes muito longe daqueles provocados por refrigerantes açucarados, sucos com frutas cítricas e água gaseificada com flavorizantes. Mesmo nesses últimos casos, sérios danos ligados exclusivamente à acidez só serão preocupantes caso não exista uma boa higiene dental e/ou se existir excesso no consumo dessas bebidas. Além disso, após o consumo da bebida ser cessado, o pH intra-oral ideal é rapidamente restabelecido pela saliva dentro de 2-13 minutos (Ref.5).

           É válido reforçar aqui que o principal vilão dos dentes não é a acidez dos alimentos, mas o excesso no consumo de carboidratos simples (ex.: açúcar) – alimentando bactérias bucais que liberam destrutivos ácidos na estrutura dentária – e a baixa higiene bucal (ex.: falta de escovação dos dentes).

            Em uma recente entrevista para o The New York Times (Ref.9), a professora associada da Escola de Odontologia de Harvard e representante da Associação Americana de Odontologia, Dra. Brittany Seymour, afirmou que “seria necessário um grande consumo ao longo do dia de água gaseificada para danos [dentais] similares àqueles observados com sucos de frutas ou refrigerante”. De qualquer forma, a Dra. Seymour observou que por causa do existente potencial de erosão na água gaseificada, as pessoas não deveriam tomá-la como principal fonte diária de água.

          “Caso queira ter dois ou três copos de água gaseificada por dia, talvez associe cada copo com uma refeição,” adicionou a Dra. Seymour. “Se você prefere toma-la isoladamente, use um canudo para prevenir que a água atinja seus dentes. Em geral, não fique bebericando a água gaseificada por mais de uma hora, porque o contato prolongado com a boca aumenta o tempo de exposição do dente à acidez da bebida.”

          Ainda segundo a Dra. Seymour, é aconselhável para aqueles tomando água gaseificada múltiplas vezes ao dia a escovar os dentes com uma pasta dental contendo fluoreto após o consumo, para prevenir qualquer dano na dentição. Nesse caso, a pesquisadora também alertou para se esperar pelo menos 30 minutos após o consumo da bebida ácida para escovar o dente, já que a exposição ao meio ácido torna o esmalte mais macio e mais vulnerável a forças abrasivas. 

> Válido lembrar que aparelhos domésticos para gaseificar água podem ser usados para produzir uma solução final rica em dióxido de carbono dissolvido e com pH ficando abaixo de 4, o que pode implicar em danos dentais mais relevantes (Ref.10). É preciso ficar atento para esse aspecto, especialmente se você consome muita água gaseificada ao longo do dia. 

 

   EXCESSO DE GASES

          O dióxido de carbono dissolvido em qualquer bebida gaseificada, quando liberado após ingestão e passagem pelo tubo esofágico, aumenta o volume gástrico, estimulando receptores de estiramento nas paredes do estômago. Isso pode, subsequentemente, induzir uma sensação de desconforto epigástrico, comumente referido como ‘inchaço abdominal’. O desconforto gástrico engloba desagradáveis sensações induzidas pela distensão do estômago. Náusea, dor gástrica, desconforto e inchaço são todos sintomas associados com essa distensão, e tendem a ser mais acentuados nas mulheres (Ref.11).

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            Além disso, a liberação extra de CO2 nas cavidades gastrointestinais pode exacerbar sintomas em pessoas com problemas de flatulência, síndrome do intestino irritável, entre outros – apesar da quantidade de CO2 gasoso dissolvido na água chegando na cavidade intestinal e permanecendo livre nessa região ser muito baixa em situações normais (traumas intestinais podem aumentar o nível de CO2 livre). 

> Leitura recomendada: Será que estou realmente sofrendo de um excesso de gases?

           Porém, os cenários acima descritos são mais hipotéticos do que experimentalmente demonstrados, e mais estudos são necessários para explorar a associação específica entre gases liberados de bebidas gaseificados e problemas associados a desconfortos gastrointestinais.

          Nesse mesmo caminho, não existe evidência de mínimo impacto deletério dos gases liberados de bebidas gaseificadas em funções como esvaziamento gástrico ou motilidade gastrointestinal. Aliás, nesse ponto, existe evidência de benefício da água gaseificada, através de distensão gástrica e melhora na motilidade gástrica induzindo, a curto prazo, efeito de maior saciedade durante refeições (“estômago cheio”), algo que pode ajudar a prevenir excessos alimentares (Ref.12).

           No geral, quantidades ingeridas abaixo de 300 mL de água gaseificada não terão efeito significativo nas funções químicas e mecânicas da cavidade gástrica (Ref.13). Como a absorção de dióxido de carbono é muito alta no estômago – sendo dissolvido no fluído intersticial e no plasma sanguíneo associados –, pode existir alguma interferência positiva na produção de ácido clorídrico (principal ácido no estômago) – se isso pode melhorar a digestão ou piorar em alguma extensão sintomas associados a doenças gástricas, é incerto.

   RELATO DE CASO (Alerta!)

          Anafilaxia é uma reação de hipersensibilidade Tipo I severa e potencialmente letal que pode ocorrer dentro de segundos a minutos após exposição a um alérgeno. Sulfitos (compostos contendo o íon SO32-) tem sido implicados como causa de sintomas variando de espirros leves até graves reações, mais frequentemente observados em asmáticos.

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          Em um relato de caso descrito em 2018 no periódico The American Journal of Emergency Medicine (Ref.14), uma mulher de 25 anos com um histórico médico de asma e de reações anafiláticas a múltiplos medicamentos, incluindo antibióticos sulforosos, apresentou-se com um vermelhidão facial, prurido (coceira) generalizado, inchaço da língua, dificuldade de engolir e dificuldade de respirar após beber água gaseificada. Após ser finalmente estabilizada na unidade de tratamento intensivo (UTI), os médicos a expuseram novamente à água gaseificada suspeita, o que precipitou uma nova reação anafilática. Os médicos eventualmente determinaram que o fator de disparo da reação anafilática eram os sulfitos presentes na água gaseificada.

          Agentes contendo enxofre (dióxido de enxofre e sais – sódio e potássio – de bissulfitos, sulfitos e metabissulfitos) são amplamente usados no setor industrial, principalmente por causa das suas propriedades desinfetantes e de limpeza. É também usado como preservativo em alimentos, bebidas alcoólicas como vinho e cerveja, e medicamentos. Na indústria alimentícia, sulfitos são usados para prevenir o crescimento de bactérias, manter a cor do alimento, e permitir uma mais longa validade. São sais considerados seguros para a população em geral.

          Um dos itens que contém sulfito é a água mineral (com ou sem gás). Enquanto algumas marcas declaram o que a água mineral contém, outras não o fazem, o que pode representar um perigo para aqueles com alergias ou sensibilidade a sulfitos. É incerto o mecanismo de intolerância a esse íon, mas é sugerido algum tipo de deficiência metabólica que impede o processamento ideal de sulfitos exógenos.

          A hipersensibilidade ao sulfito é geralmente, mas não exclusivamente, encontrada em asmáticos. Apesar dos dados variarem na literatura acadêmica, é estimado que 3-10% de todos os adultos asmáticos crônicos podem apresentar algum nível de sensibilidade aos sulfitos; essa taxa pode chegar a 35-65% em adultos com asma severa. Sulfitos podem levar a mudanças estruturas e funcionais em células musculares lisas aéreas, causando problemas para pacientes com asma. Além disso, broncoespasmo pode ser induzido por sulfitos pela estimulação do membro aferente do reflexo colinérgico.

           Por isso, é sempre bom pesquisar bem sobre os ingredientes de produtos alimentícios, mesmo quando é água mineral. Algo totalmente seguro para a maioria, pode ser tóxico para alguns indivíduos.

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   CONCLUSÃO

            Com base nas evidências acumuladas até o momento, o consumo moderado de água gaseificada pode fazer parte de uma dieta saudável, e é uma ótima fonte de hidratação. De fato, o Centro de Controle e de Doenças dos EUA (CDC) lista a água gaseificada como uma opção hidratante saudável (Ref.15). A única real preocupação que parece existir seria em relação à saúde dental, já que qualquer bebida ácida possui impacto erosivo sobre os dentes; mas estes são mínimos com água gaseificada e muito longe daqueles observados com bebidas mais ácidas e/ou açucaradas, como refrigerantes, água gaseificada com flavorizantes e sucos com frutas cítricas. Por fim, é importante reforçar que os estudos sobre o impacto do consumo de água gaseificada (mineral ou tratada) na saúde humana são ainda escassos e limitados na literatura acadêmica.

 

REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Johnson et al. (2010). Systematic review: the effects of carbonated beverages on gastro-oesophageal reflux disease. Alimentary Pharmacology and Therapeutics. Volume 31, Issue 6, Pages 607-614. https://doi.org/10.1111/j.1365-2036.2010.04232.x
  2. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/desmistificando_duvidas_sobre_alimenta%C3%A7%C3%A3o_nutricao.pdf
  3. https://www.mcgill.ca/oss/article/health-and-nutrition-quackery/carbonated-water-bad-your-teeth  
  4. Krefting, J. (2018). Seltzer or Sparkling Water: An Alternative to Flat Water. Journal of Renal Nutrition, 28(5), e33–e35. https://doi.org/10.1053/j.jrn.2018.07.001
  5.  O’Toole & Mullan (2018). The role of the diet in tooth wear. BDJ, 224(5), 379–383. https://doi.org/10.1038/sj.bdj.2018.12
  6. Marchan et al. (2020). The   long-term   effect   of   sparkling   flavored   water   on   human tooth  enamel  determined  by  gravimetric  analysis:  a  preliminary evaluation. Ciência Odontológica Brasileira, 23(1). https://doi.org/10.14295/bds.2020.v23i1.1877
  7. https://www.mouthhealthy.org/en/nutrition/food-tips/the-truth-about-sparkling-water-and-your-teeth 
  8. Momeni et al. (2015). The pH of beverages in the United States. The Journal of the American Dental Association. Volume 147, Issue 4, P255-263. https://doi.org/10.1016/j.adaj.2015.10.019 
  9. https://www.nytimes.com/2021/09/14/well/eat/seltzer-water-benefits.html
  10. Momeni et al. (2015). The pH of beverages in the United States. The Journal of the American Dental Association. Volume 147, Issue 4, P255-263. https://doi.org/10.1016/j.adaj.2015.10.019 
  11. Guido et al. (2018). Men and Women Differ in Gastric Fluid Retention and Neural Activation after Consumption of Carbonated Beverages, The Journal of Nutrition, Volume 148, Issue 12, Pages 1976–1983. https://doi.org/10.1093/jn/nxy230 
  12. Wakisaka et al. (2012). The Effects of Carbonated Water upon Gastric and Cardiac Activities and Fullness in Healthy Young Women. Journal of Nutritional Science and Vitaminology, 58(5), 333–338. https://doi.org/10.3177/jnsv.58.33 
  13. Cuomo et al. (2009). Carbonated beverages and gastrointestinal system: Between myth and reality. Nutrition, Metabolism and Cardiovascular Diseases, 19(10), 683–689. https://doi.org/10.1016/j.numecd.2009.03.020
  14. Dean et al. (2018). More than a drink: A rare anaphylactic reaction to sparkling water. The American Journal of Emergency Medicine, 36(1), 170.e1–170.e2. https://doi.org/10.1016/j.ajem.2017.10.019 
  15. https://www.cdc.gov/healthyweight/healthy_eating/water-and-healthier-drinks.html
  16. https://www.uchicagomedicine.org/forefront/health-and-wellness-articles/is-carbonated-water-healthy