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Transição evolutiva de unicelular para multicelular é facilmente demonstrável em laboratório


- Atualizado no dia 4 de junho de 2023 - 

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           Há bilhões de anos, um passo evolutivo crucial foi feito para permitir o surgimento de seres cada vez mais complexos até chegarmos às plantas e aos animais: a passagem da vida unicelular para a vida multicelular. Até poucas décadas atrás, os pesquisadores não sabiam ao certo como esse processo pôde ter ocorrido, e qual o grau de dificuldade e requisitos ambientais envolvidos. Mas estudos nos últimos anos vêm esclarecendo cada vez mais como a multicelularidade pode ter emergido, e mostrando que o processo evolutivo foi mais fácil do que antes suposto. Aliás, pesquisadores já conseguiram demonstrar múltiplas vezes evolução de seres unicelulares para multicelulares em laboratório, e via intervenções equivalentes àquelas encontradas no meio natural. 

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   MULTICELULARIDADE

          Em organismos multicelulares muito complexos, como os humanos, dezenas de bilhões ou trilhões de células estão unidas em prol do funcionamento de um único organismo, com cada uma delas possuindo uma função específica no corpo e limitando sua própria multiplicação em prol do bem comum. Em contraste, temos seres como bactérias e protozoários que possuem apenas uma célula, a qual fica responsável por todas as funções do espécime, cuja única preocupação é comer e se replicar, e sem exibir, no geral, qualquer coordenação ou cooperação com outras células da mesma espécie para sobreviver. Como, então, ocorreu a passagem de uma vida tão simples para uma tão complexa e organizada? Se os seres unicelulares mostram-se tão bem adaptados, por que se juntarem em massas celulares especializadas?

          Com a multicelularidade, novas habilidades foram conquistadas, como inovativas e eficientes formas de locomoção, busca e processamento de alimentos, e mecanismos de proteção, o que possibilitou o domínio de diversos habitats, abrindo inclusive uma porta de expansão para os organismos unicelulares. No geral, as transições para a multicelularidade estão associadas com uma rápida diversificação e aumento de oportunidade ecológica. Benefícios nós temos, mas e o gatilho inicial? Aliás, à primeira vista, seres multicelulares parecem diferir dramaticamente daqueles unicelulares - com exceção da estrutura celular individual -, sugerindo a necessidade de um grande salto evolutivo para tal transição ocorrer. Porém, evidências experimentais e observacionais acumuladas nas últimas décadas apontam que a linha divisória entre os mundos unicelular e multicelular é bem mais tênue do que antes suposto.


          Organismos unicelulares coanoflagelados, por exemplo, possuem centenas de famílias de genes antes pensados serem únicos dos seres multicelulares. Por exemplo, muitas espécies desse grupo possuem genes para a produção de enzimas tirosina cinases, as quais, em animais complexos, ajudam a controlar as funções de células especializadas, como a secreção de insulina no pâncreas. Esses organismos unicelulares também possuem reguladores de crescimento celular, como o p53, um gene fortemente ligado ao desenvolvimento de cânceres nos humanos, e genes para caderinas e lectinas do tipo-C, proteínas que ajudam as células a ficarem unidas e manterem um tecido intacto. Ainda não se sabe por que esses seres unicelulares possuem tais genes, mas eles são, sem sombra de dúvidas, ótimos modelos de ancestralidade dos multicelulares. Porém, os coanoflagelados não possuem genes cruciais para a multicelularidade, incluindo fatores de transcrição como o Pax e o Sox, importantes para o desenvolvimento de animais, ou seja, inovações genéticas que provavelmente surgiram ao longo da evolução dos multicelulares.



          No entanto, cientistas já encontraram, por exemplo, que o protista Capsapora possui sinalizadores de regulação genética sendo usados da mesma maneira que os animais desligam e ligam genes via mecanismos epigenéticos, incluindo a utilização de fatores de transcrição e longas cadeias de RNA que não codificam proteínas. Apesar de representarem estruturas bem mais simples de regulação - especialmente cadeias bem mais curtas -, esses seres unicelulares dão outra pista de como o início da multicelularidade ocorreu.

          Outro caso bastante interessante é o gênero de alga verde Volvox (multicelular) e de um parente evolutivo próximo, a alga verde Chlamydomonas (unicelular). As Volvox possuem uma estrutura esférica oca e flagelada, com indivíduos englobando entre 500 e 60000 células. Já as Chlamydomonas possuem uma única célula flagelada, e cuja reprodução ocorre por fissão binária longitudinal. Acontece que as Chlamydomonas possuem organelas chamadas de centríolos que possuem uma função dupla. Durante a maior parte da vida desses seres, os centríolos ancoram as duas estruturas flagelares que possibilitam a locomoção da célula através da água. Mas quando chega a época da reprodução - mitose celular -, a célula perde seu flagelo e os centríolos se movem na direção do núcleo, onde orientam a divisão dos cromossomos duplicados. Após a duplicação celular, cada célula-filha cresce novamente seus flagelos para recomeçar o ciclo. Em outras palavras, as Chlamydomonas não conseguem nadar e se reproduzir ao mesmo tempo.



          Por outro lado, os Volvox aproveitaram essas duas funções celulares das Chlamydomonas e as dividiram em células especializadas dentro do seu corpo multicelular. Enquanto células menores sempre possuem flagelo - ajudando na captura de nutrientes e na locomoção -, células maiores não possuem flagelo e utilizam os centríolos apenas para a reprodução e de forma contínua. Assim, elas conseguem nadar e se reproduzirem ao mesmo tempo, ganhando uma grande vantagem que as possibilitam explorar novos ambientes e desafios. Esse exemplo é outra situação mostrando que a multicelularidade parece ter ocorrido de forma gradual e facilitada, aproveitando genes já pré-existentes em células unicelulares.



   MODELOS DE TRANSIÇÃO

           E não são apenas 'genes' de multicelularidade compartilhados entre organismos unicelulares e multicelulares. Existem bactérias que representam modelos notáveis de evolução da multicelularidade, expressando unicelularidade ou multicelularidade dependendo dos fatores ambientais.

         O desenvolvimento de multicelularidade representa uma transição evolutiva chave permitindo a diferenciação de funções fisiológicas ao longo de uma população de células que confere benefícios de sobrevivência. Entre bactérias unicelulares, o instinto de sobrevivência pode levar a complexos comportamentos de desenvolvimento e a formação de estruturas comunitárias de maior ordem. Apesar de geralmente associarmos multicelularidade com fungos, plantas e animais, fisiologia multicelular também é expressa em bactérias, com os exemplos mais estudados sendo a formação de biofilmes e corpos frutíferos. 

           A expressão de multicelularidade nesses organismos unicelulares é outra forte evidência de como a transição evolutiva de unicelular para multicelular pode ter ocorrido. No caso, a secreção de polissacarídeos de cadeia longa são um importante mediador de multicelularidade entre as bactérias, porque servem para reter e organizar células assim como fisicamente e bioquimicamente proteger a comunidade dentro do contexto de uma matriz extracelular, aumentando portanto as chances de sobrevivência.

          Um dos casos mais notáveis e estudados é o da espécie Myxococcus xanthus, uma bactéria de solo capaz de alimentação saprofítica sobre produtos derivados da predação de outras bactérias (bacteriófaga) (Ref.9-11). Duas formas de motilidade são requeridas para essa complexa fisiologia: motilidade 'social' sobre superfícies macias e motilidade planar de célula-única sobre superfícies duras. Em um cenário de escassez de nutrientes, essas bactérias iniciam um ciclo de desenvolvimento resultando em agregação celular e formação de um corpo frutífero, envolvendo dezenas de milhares de indivíduos e gerando 3 subpopulações diferenciadas: (1) células que formam mixo-esporos resistentes a dissecação no centro do corpo frutífero, visando reprodução; (2) células que permanecem na base do corpo frutífero, chamadas de 'bastonetes periféricos'; e (3) células coletoras que continuam sua motilidade para longe do corpo corpo frutífero. Os corpos frutíferos, aliás, são possíveis de serem vistos a olho nu!




         Além de moléculas sinalizadores, o M. xanthus produz vários conhecidos polissacarídeos de cadeia longa que são centrais para esse complexo ciclo de vida e estabelecimento dos comportamentos coordenados associados à multicelularidade. O mais notável deles é o exopolissacarídeo (EPS), importante para a motilidade social e formação de biofilme, constituindo grande parte da matriz extracelular do agregado celular estático e conectando as células via uma rede de fibrilas (Ref.11).

           Aliás, em um estudo publicado recentemente no periódico Molecular Biology and Evolution (Ref.12), um time internacional de pesquisadores utilizou ferramentas evolucionárias para estudar o crescimento de biofilmes bacterianos e encontrou que o desenvolvimento dessas estruturas é comparável à embriogênese observada em animais. Ou seja, isso significa que bactérias são reais seres multicelulares como nós, e que os biofilmes deveriam ser vistos como indivíduos multicelulares. Ainda segundo os pesquisadores, considerando que os mais antigos fósseis conhecidos são biofilmes bacterianos e que a maioria das células existentes hoje no planeta vivem na forma de biofilme, é provável que a primeira forma de vida era também multicelular, e não seres unicelulares como tradicionalmente considerado.





          Para essa conclusão, os pesquisadores realizaram um sequenciamento transcriptômico e análise do perfil proteômico para estabelecer os níveis de expressão de proteínas e de transcritos para todos os genes da bactéria Bacillus subtilis durante o processo de crescimento dos biofilmes associados. Os resultados das análises identificaram a assinatura de desenvolvimento embrionário típico de eucariontes complexos, incluindo expressão de genes e progressão de estágios ontogênicos de organização estrutural similares aos observados nos embriões eucarióticos.
           

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   EVOLUÇÃO DA MULTICELULARIDADE AO VIVO

          Mas talvez nenhum dos exemplos citados de 'transição' se iguala ao que os pesquisadores William Ratcliff, da Georgia Tech, e Michael Travisano, da Universidade de Minnesota, conseguiram fazer de forma pioneira.

         Inicialmente, células solitárias podem formar grupos multicelulares através de dois mecanismos fundamentais e distintos: associação continuada de células-filhas seguindo uma divisão celular (ST) ou via agregação de células pré-existentes (CT). Muitos, se não a maioria, dos microrganismos são capazes de formar simples formas de multicelularidade - mas não necessariamente evoluindo ou formando um ser multicelular - usando um ou ambos os mecanismos. No entanto, todos os maiores e mais complexos organismos multicelulares confiam na ST seguindo o processo de mitose. Isso muito provavelmente se deve ao fato de que, na ST, as células se aglomerando são cópias umas das outras, enquanto que na CT temos diferentes células, agrupando múltiplas linhagens, o que aumenta as chances de inclusão de um membro não-cooperativo e perigoso.

          Nesse sentido, no final de 2009, Travisano e Tech resolveram iniciar experimentos que simulassem as condições para que vida multicelular surgisse a partir de culturas de seres unicelulares (Ref.2-4). A espécie de teste inicialmente escolhida foi a tão popular levedura Saccharomyces cerevisiae, aquele fungo responsável pela produção da cerveja.



          Como um pontapé inicial para que o possível processo evolutivo ocorresse, os pesquisadores selecionaram artificialmente as maiores células ou aglomerados de células de leveduras cultivadas em laboratório através de uma centrifugação de baixa velocidade em tubos de ensaio (onde 1% do fundo após a rotação era retirado, sob a premissa de que as maiores leveduras/aglomerados assentariam primeiro no fundo dos tubos).

          Depois de selecionadas, essas maiores leveduras foram transferidas para novas culturas, em um total de 10 sistemas de crescimento. O processo de centrifugação foi realizado diariamente, deixando um espaço de 24 horas para as leveduras selecionadas crescerem. Após 2 semanas, estruturas cada vez maiores semelhantes a flocos de neve começaram a ser depositadas no fundo dos tubos de ensaio durante as sucessivas centrifugações, primeiro em apenas 2 sistemas de cultura, depois em todos os 10 sistemas. Análises dessas estruturas mostraram que elas não eram apenas células de leveduras aglomeradas (CT), mas, sim, várias células de leveduras fusionadas umas com as outras porque elas tinham perdido a capacidade de se separarem completamente após a mitose (ST), ao produzirem menos da enzima que possibilita o processo de separação. Em outras palavras, elas tinham evoluído uma multicelularidade devido a mutação em um gene chave.

          Somando-se a isso, essas estruturas também começaram a se reproduzir como um organismo multicelular, com suas células dividindo-se mas não separando-se do complexo celular, e levando a um maior crescimento da estrutura. Quando um complexo de células alcançava um certo tamanho, ele acabava se fragmentando, liberando uma 'estrutura-filha'. Sim, surgiu um novo sistema reprodutivo. No começo, essas fragmentações produziam duas estruturas quase do mesmo tamanho, mas à medida que mais e mais gerações surgiam, os fragmentos formados passaram a ter uma diferença de tamanho cada vez maior, sugerindo uma estratégia evolutiva para a produção de um maior número de estruturas-filhas com o gasto de menos recursos.

          Outro processo evolutivo significativo também ocorreu. As novas leveduras multicelulares também evoluíram uma divisão de trabalho que facilitou sua fragmentação desigual. Primeiro, todas as células no complexo celular se dividiam, mas depois de centenas gerações, algumas células em cada complexo pararam de se dividir e eventualmente morriam. Essas células estavam se sacrificando para o benefício da levedura multicelular! Basicamente, as células inativas, e eventualmente mortas, se tornavam locais onde o complexo celular se fragmentava. Em outras palavras, isso sugere fortemente o início de uma especialização celular.


           Os complexos celulares ficaram maiores, as células de levedura se tornaram mais duráveis e mais elongadas, e um novo modo de reprodução evoluiu via uma rudimentar forma de especialização celular. Subsequentes análises genéticas realizadas pelos pesquisadores mostraram que os novos traços de multicelularidade nesses organismos unicelulares pareciam ser uma mistura de genes já existentes sendo aproveitados para outras funções, com genes se tornando desfuncionais (como um que ajuda as células das leveduras a se separarem completamente durante a mitose).

          Outro mecanismo que evoluiu na levedura multicelular foi uma forma de defesa contra células 'traiçoeiras', ou seja, contra aquelas células que sofriam mutações no sentido de torná-las muito diferente das outras e provavelmente menos cooperativas (o que poderia ameaçar o complexo celular como um todo). Enquanto nós humanos e outros animais temos o sistema imune para dar conta das células defeituosas, as leveduras multicelulares 'desenvolveram' um mecanismo bem simples e eficiente: como as mutações se acumulam com o tempo, as células defeituosas ou estranhas acabavam sendo encontradas nas pontas dos complexos celulares, e acabavam sendo eliminadas quando a levedura se fragmentava.

          E não para por aí! Esses fragmentos sendo liberados acabavam formando novas colônias (estruturas-filhas, lembram?), mas agora levando também novas mutações, e, consequentemente, desenvolvendo novas características únicas - tamanho e número de células, ou a frequência e localização das células suicidas, por exemplo -, e criando as condições para a seleção natural agir e fomentar ainda mais os processos evolutivos. Nesse ponto, eram os complexos celulares como um todo que estavam se adaptando, não células únicas em suas estruturas. Tínhamos, praticamente, um real ser multicelular surgindo, carregando um legítimo genótipo de multicelularidade.


          Mesmo existindo dúvidas quanto ao nível de multicelularidade alcançado pelas leveduras nesse processo evolutivo laboratorial, o fantástico e simples experimento deixou claro que a transição de unicelular para multicelular parece ter sido mais fácil do que antes especulado pelos cientistas e possivelmente ocorreu muito mais vezes do que era estimado durante as várias divergências nas linhagens evolucionárias.

          Para confirmar esse modelo de transição e descartarem a possibilidade de que a seleção artificial inicial via centrifugação estava sendo muito forçada (longe do "natural"), os pesquisadores, em 2014, repetiram o experimento com culturas de células da alga verde Chlamydomonas reinhardtii, e, seguindo os mesmos passos experimentais, eles presenciaram o mesmo processo evolutivo, com colônias de várias células unidas rapidamente emergindo. Em seguida, eles repetiram o experimento, ao invés das centrifugações, utilizaram uma pressão seletiva mais natural: uma população de protozoários ciliados da espécie Paramecium tetraurelia que comem Chlamydomonas, tendendo a se alimentar das menores. E, de novo, com a seleção de maiores tamanhos/aglomerados com o tempo, a multicelularidade emergiu rapidamente: dentro de ~750 gerações (~1 ano) duas de cinco populações (B1-B5) começaram a formar e se reproduzir como complexos multicelulares, não mais como células individuais, e adquirindo um genótipo de multicelularidade. Experimentos subsequentes mostraram que os traços evoluídos de multicelularidade forneciam efetiva proteção contra predação. Em conjunto, os achados - publicados em 2019 na Scientific American (Ref.13) - suportam a hipótese que pressão seletiva imposta por predadores pode ter atuado de forma importante na evolução da multicelularidade.


Micrografias de escaneamento eletrônico de colônias multicelulares representativas de populações evoluídas de Chlamydomonas reinhardtii. (A) Mostra um agrupamento amorfo da população B2. (B) Agrupamento de oito células de outra população B5 (comum entre as populações do experimento). Herron et al., 2019


          Em junho de 2017, Travisano e Tech publicaram um estudo na Nature (Ref.6) mostrando outra transição evolutiva de unicelular para multicelular dessa vez na espécie de levedura Kluyveromyces lactis, esta a qual é separada em termos de divergência evolutiva da S. cerevisiae por algo em torno de 100 milhões de anos, incluindo uma duplicação genômica (1) inteira a partir do ancestral no gênero Saccharomyces. Os dois pesquisadores seguiram o mesmo procedimento de seleção via centrifugação e sedimentação sobre 10 populações iniciais da cepa K. lactis Y-1140. A seleção de multicelularidade ocorreu a cada 24 horas (~6,7 gerações) por 60 dias (~400 gerações), transferindo-se sempre 6,7% do fundo dos tubos de ensaio para as culturas. Já pelo 10° dia (~70 gerações), todas as 10 populações de K. lactis tinham evoluído agrupamentos multicelulares.


           Porém, uma diferença marcante é que enquanto a S. cerevisiae evoluía complexos multicelulares isolados, o K. lactis evoluiu complexos que permitiam uma cooperação social (CT) com indivíduos ainda unicelulares no meio, fazendo com que estes também fossem selecionados durante os assentamentos via centrifugação. No entanto, os representantes multicelulares mostraram crescente prevalência e maior adaptabilidade.



          O novo experimento sugere que o mecanismo de CT pode ter papel crucial em certas transições evolutivas de unicelular para multicelular, complementando o mais importante mecanismo de ST. Dessa forma, mesmo biofilmes de bactérias ou colônias de microalgas, os quais apresentam somente o processo CT de formação, podem também representar modelos iniciais de transição evolutiva para a multicelularidade, não apenas um exemplo isolado de cooperação unicelular.

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   OXIGÊNIO E MULTICELURIDADE

          Pistas fósseis de multicelularidade datam de 3-2,5 bilhões de anos atrás, sendo que a vida pode ter surgido há mais de 4 bilhões de anos (2) e, no mínimo, há cerca de 3,8 bilhões de anos. No percurso evolucionário, a multicelularidade emergiu inúmeras vezes, tanto entre grupos procariotas quanto em grupos eucariotas (fungos, animais, plantas, alga vermelha e alga marrons). Nesse sentido, se os experimentos evolutivos mostram que a multicelularidade parece ocorrer de forma muito mais fácil do que antes suposto, por que essa demora para dar as caras?


          Historicamente, os cientistas acreditavam de forma quase unânime que a atmosfera primordial no nosso planeta, por possuir pouco oxigênio - afinal, a vida fotossintética não era ainda tão abundante -, dificultou que os organismos unicelulares crescessem muito ou se aglomerassem em grandes estruturas, ou seja, as condições naquela época favoreciam a maior área superficial possível nos seres vivos para melhor captura e transporte de oxigênio (células individuais). Por isso é que somente há 1 bilhão de anos grandes seres multicelulares teriam emergido para dominar o planeta.

          Porém, em 2015, Nicholas Butterfield, um paleontólogo na Universidade de Cambridge, Reino Unido, propôs, com base em várias evidências, que baixos níveis de oxigênio, na verdade, teriam favorecido a evolução da multicelularidade nos antigos ambientes marinhos. Organismos maiores e multicelulares - e com múltiplos flagelos - são melhores para movimentar a água ao redor e colher mais oxigênio por unidade de tempo, e a maior escassez de nutrientes nos mares há bilhões de ano teriam forçado a evolução de novos tipos especializados de células, já que organismos mais complexos conseguem coletar alimento de forma mais eficiente. E, para explicar a demora na ascensão da multicelularidade, Butterfield acredita que isso reflete o tempo para que genes mais sofisticados de regulação celular surgissem.

          E essa hipótese de Butterfield ganhou recente e robusto suporte.  

          Um estudo publicado na Nature (Ref.13) reportou os resultados de um experimento evolutivo de longo prazo demonstrando evolução de multicelularidade complexa e macroscópica a partir de culturas com agrupamentos microscópicos simples de leveduras unicelulares da espécie Saccharomyces cerevisiae. Diferentes culturas foram submetidas a três tratamentos metabólicos: anaeróbico, aeróbico obrigatório e uma mistura dos dois (mixotrófico) (!). Após 600 dias com seleção diária para agrupamentos de maior tamanho - englobando ~3 mil gerações - as leveduras no tratamento anaeróbico (incapazes de utilizar oxigênio molecular) evoluíram notável tamanho e complexidade macroscópica, com indivíduos se tornando 2000 vezes maiores - com escala aproximadamente milimétrica e visíveis a olho nu - e cerca de 1000 vezes mais fortes em termos biofísicos, enquanto retendo um ciclo de vida clonal multicelular (Fig.1). Enquanto isso, todas as populações aeróbicas permaneceram microscópicas ao longo de todo o experimento - evoluindo um tamanho apenas ~6 vezes maior.

Figura 1. Nas populações ancestrais anaeróbicas, os agrupamentos são microscópicos; após 600 dias de experimento, os agrupamentos (indivíduos multicelulares) evoluíram tamanhos macroscópicos. Agrupamentos ancestrais tinham um raio médio de 16 µm, e as populações evoluídas exibiam raio médio de 434 µm, cerca de 2000x de aumento no volume. Isso corresponde a um aumento de ~100 células para ~450 mil células por agrupamento. O maior agrupamento multicelular observado no experimento tinha >1 mm de diâmetro, comparável a uma mosca adulta do gênero Drosophila. Ref.13

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(!) Os pesquisadores primeiro modificaram leveduras unicelulares isoladas de S. cerevisiae (cepa Y55) através de edição do gene ACE2, produzindo leveduras com o fenótipo de "floco de neve", ou seja, leveduras que agrupavam - mas sem diferenciação celular, essencialmente células unicelulares agrupadas. Para o fenótipo 'anaeróbico', leveduras flocos de neve foram geneticamente editadas no sentido de ficarem incapazes de respirar de forma aeróbica.
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          Várias adaptações celulares e genéticas foram observadas nas populações aeróbicas macroscópicas. Primeiro houve alongamento das células em todas as populações exploradas no experimento (evolução paralela), um fenótipo que reduz fraturas causadas por tensão e colisões nos densos agrupamentos celulares cada vez maiores (Fig.2). Em seguida, houve evolução de ramificações entrelaçadas de células conectadas e de tal modo que uma única separação célula-célula não mais causava fratura multicelular. Juntas, essas adaptações - associadas à fixação de várias mutações genéticas - fizeram agrupamentos ancestrais que eram ~100 vezes mais fracos do que gelatina ficarem milhares de vezes maiores e com propriedades biofísicas (ex.: força e resistência) similares à madeira! Além disso, as células até mesmo evoluíram uma forma de mover fluído através do 'corpo', trazendo nutrientes para as células no interior dos agrupamentos.

Figura 2. Evolução de células cada vez mais alongadas, e de forma altamente paralela entre as populações anaeróbicas de leveduras (PA1-PA5) - incluindo a nível genético (mutações). Ref.13

Figura 3. Diferença no formato celular entre um agrupamento ancestral e um agrupamento evoluído (~3 mil gerações) com centenas de milhares de células clonais. As células nas camadas mais externas dos agrupamentos macroscópicos mantém o 'corpo' unido via intenso e complexo entrelaçamento com células no interior; essa inovação permite grupos multicelulares permanecerem fisicamente unidos mesmo quando conexões celulares individuais são dilaceradas (aumentando a resistência do agrupamento em mais de 10 mil vezes). Ref.13

           Ao invés de estimular a evolução da multicelularidade, a primeira oxigenação da atmosfera terrestre pode ter agido como um poderoso fator limitante da evolução de grande tamanho multicelular. Oxigênio pode aumentar crescimento celular ao aumentar a produção de APT a partir do metabolismo, e crescimento sobre carbono não-fermentável. Porém, quando a disponibilidade de oxigênio dentro de um organismo é limitada por difusão, um grande tamanho pode ser contra-adaptativo ao reduzir a habilidade das células no interior do corpo de utilizar esse valioso recurso - esse é um fator limitante que organismos anaeróbicos não encaram. O efeito positivo de oxigênio molecular no tamanho multicelular pode ocorrer apenas uma vez que atinja uma suficientemente alta quantidade na atmosfera, como ocorreu há cerca de 0,6 bilhão de anos.      


   ORIGEM DOS ANIMAIS

          É amplamente defendida - mas raramente testada - a hipótese de que os animais (Metazoa) evoluíram de um ancestral unicelular com cílios apicais cercados por um colar microvilar, estrutura que lembra os coanócitos de esponjas modernas e os coanoflagelados. Porém, um estudo recente publicado na Nature (Ref.7), ao comparar os transcriptomas, destinos e comportamentos de três tipos celulares primários de esponjas - coanócitos, arqueócitos mesenquimais pluripotentes e pinacócitos epiteliais - com coanoflagelados (Choanoflagellata) e outros organismos unicelulares do clado Holozoa (grupo de seres vivos que incluem os animais e seus parentes unicelulares mais próximos, com exceção dos fungos), encontrou que o transcriptoma* dos coanócitos das esponjas é o menos similar aos transcriptomas de coanoflagelados e é significativamente enriquecido em genes únicos ou aos animais ou às esponjas isoladas. Cerca de 43% dos genes significativamente up-regulados nos coanócitos mostraram ser esponja-específicos.

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*Conjunto de todas as moléculas de RNA - incluindo tRNA, rRNA, mRNA, assim como RNA não-codificante - criadas em uma ou mais populações de células
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         Em contraste, o estudo mostrou que arqueócitos pluripotentes up-regulam genes que controlam a proliferação celular e a expressão gênica, como em outras células-tronco de animais e nos estágios de proliferação de certos holozoanos, incluindo um coanoflagelado colonial. Em específico, 62% dos genes significativamente up-regulados nesses arqueócitos mostraram pertencer à categoria evolucionária mais antiga dos pré-metazoanos. Além disso, os pesquisadores mostraram que na esponja Amphimedon queenlandica os coanócitos existem em um estado metaestável transiente e prontamente se transdiferenciavam em arqueócitos, estes os quais podem se diferenciar em um espectro de outros tipos celulares.



          Juntos os achados argumentam contra a homologia entre animais e coanócitos de esponjas e coanoflagelados, e a visão de que os primeiros animais multicelulares eram simplesmente bolas de células com limitada capacidade de diferenciação. Ao contrário, os resultados são consistentes com a primeira célula animal sendo capaz de transicionar entre múltiplos estados de maneira similar às modernas células-tronco e de transdiferenciação (como os arqueócitos). A conclusão do estudo também corrobora estudos prévios questionando a homologia de coanócitos e de coanoflagelados baseando-se na estrutura celular.

          Nesse sentido, inovações genômicas únicas aos organismos Metazoa - incluindo a origem e expansão de cruciais caminhos de sinalização e famílias de fatores de transcrição, e classes regulatórias de DNA e de RNA - podem ter conferido a habilidade da célula ancestral pluripotente de evoluir um sistema regulatório possibilitando a co-existência em múltiplos estados de diferenciação, dando ascensão ao primeiro animal multicelular.


   ORIGEM EMBRIONÁRIA

           Corroborando que a origem dos primeiros animais celulares foi marcada por algo mais complexo do que um simples amontoado aleatório de células dentro do Holozoa, em um estudo publicado na Current Biology (Ref.8), pesquisadores utilizaram microtomografia de raios-X  de alta resolução e microscopia tomográfica de radiação síncrotron de raios-X (srXTM) para caracterizar curiosos fósseis de um organismo vivo multicelular que provavelmente representa uma transição evolutiva para os animais multicelulares e a embriologia animal.

          Os fósseis descobertos (233 espécimes no total) traziam vários estágios no ciclo de vida da espécie Caveasphaera costata, desde uma única célula até aglomerados similares aos estágios embrionários de animais, e foram datados em torno de 609 milhões de anos atrás. Descobertos na formação Ediacarana Weng'an Biota, no Sul da China, os pesquisadores mostraram que essa espécie iniciava sua vida como uma única célula e passava por várias fases de divisão celular do tipo gastrular, englobando ingressão, separação e agregação polar, e variando em morfologia de um lensoide a uma gaiola oca esférica até um esferoide sólido. O desenvolvimento mostrou ocorrer, inclusive, dentro de um envelope.




          Durante o ciclo de vida, o diâmetro celular no geral aumentava com as sucessivas divisões celulares, acompanhando o volume crescente da massa celular individual. Porém, após uma fase inicial de palinotomia, o volume das células individuais permanecia o mesmo ao longo do desenvolvimento. Somando à similaridade do processo com a gastrulação e desenvolvimento dentro de um envelope, os pesquisadores encontraram evidência de adesão celular funcional. Essas características - indicando os primeiros passos de desenvolvimento de distintas camadas de tecidos e órgãos - fortemente sugerem uma afinidade Holozoa, e mais próxima dos metazoanos do que de outros grupos incluindo os coanoflagelados e os filastereanos.



          No entanto, não houve indícios de que a C. costata se desenvolvia para algo mais complexo, o que reforça sua caracterização como uma transição evolutiva, não um animal multicelular de facto. Segundo a conclusão do estudo, o investimento parental no desenvolvimento embriônico no gênero Caveasphaera pode refletir uma adaptação à natureza heterogênea dos ambientes marinhos Ediacaranos próximo das praias, onde os primeiros animais evoluíram.

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   CONCLUSÃO

         A origem e a manutenção de cooperação entre organismos unicelulares são frequentemente vistas como uma forte barreira para a evolução de vida multicelular mais complexa, fomentando inclusive antievolucionistas de plantão. Porém, tanto evidências genéticas e fósseis quanto experimentos laboratoriais simples e modelos naturais de transição multicelular, vêm cada vez mais demonstrando essa transição evolutiva está longe de ser um "bicho de sete cabeças". Aliás, é mais do que válido mencionar que todos nós começamos a vida como uma única célula chamada zigoto.



REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://www.sciencemag.org/news/2018/06/momentous-transition-multicellular-life-may-not-have-been-so-hard-after-all 
  2. http://science.sciencemag.org/content/334/6058/893 
  3. https://www.biorxiv.org/content/biorxiv/early/2014/03/30/003673.full.pdf
  4. https://www.biorxiv.org/content/biorxiv/early/2016/08/05/067991.full.pdf
  5. https://www.biorxiv.org/content/biorxiv/early/2018/05/18/325670.full.pdf
  6. https://www.nature.com/articles/ncomms15707
  7. https://www.nature.com/articles/s41586-019-1290-4
  8. https://www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(19)31429-0
  9. https://www.mdpi.com/1999-4915/10/7/374/htm
  10. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/9780470015902.a0020391.pub2
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