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Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?

- Atualizado no dia 1 de março de 2023 -

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         Essa, sem sombra de dúvidas, é uma das mais clássica questões já feitas, a qual, aliás, encontra suas origens na Antiguidade. Filosoficamente, a pergunta é uma metáfora descrevendo situações onde não é claro qual entre dois eventos deveria ser considerado a 'causa' e qual deveria ser considerado o 'efeito'. Aristóteles na Grécia Antiga alegava que a galinha e o ovo sempre existiram, em um ciclo infinito atravessando o passado até o presente. Plutarco, um escritor Grego e marcante filósofo, famosamente questionou - em uma interpretação mais moderna e literal da pergunta - quem tinha vindo primeiro, o ovo ou a galinha, na sua obra Morália (século I) (Ref.4).   
                                                   
         Mas explorando a questão em termos exclusivamente biológicos, qual seria a resposta para essa pergunta? Para existir o primeiro ovo teríamos primeiro a galinha, ou para primeiro existir a galinha teríamos primeiro o ovo?

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   O OVO VEIO PRIMEIRO

         Seguindo a evolução biológica Darwiniana (1), a resposta mais óbvia para a pergunta seria que o ovo - em termos gerais - foi o primeiro a surgir de uma ave que ainda não era uma galinha, mas que deu origem a uma galinha (ou seja, durante o processo de evolução).

(1) Para mais informações, acesse: A Evolução Biológica é um FATO

          De acordo com as mais recentes evidências genéticas e arqueológicas, a linhagem evolutiva dando origem à galinha doméstica (Gallus gallus domesticus) evoluiu a partir de uma subespécie (G. g. spadiceus) do Galo-Banquiva (Gallus gallus), a qual se encontra distribuída hoje predominantemente no sudoeste da China, norte da Tailândia e Myanmar. Aliás, Charles Darwin foi o primeiro a propor que as galinhas evoluíram a partir do galo-banquiva. Em específico, evidências arqueológicas sugerem que as galinhas emergiram há cerca de 3450 anos na região central da Tailândia, um processo evolutivo de domesticação associado às plantações de arroz e de outros cereais cultiváveis na região (2). Atualmente, as galinhas modernas somam mais de 80 bilhões de indivíduos, representando o mais numeroso animal doméstico do mundo, visados primariamente para a produção de carne e de ovos (3).        

           
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(3) Aliás, evidência recente aponta intensa hibridização ocorrendo entre galinhas selvagens e domésticas. Um estudo genômico publicado na PLOS Genetics (Ref.13) estimou que as populações de galo-banquiva herdaram 20% a 50% do genoma das galinhas domésticas nos últimos 100 anos. Esse é um sério alerta segundo os autores do estudo, porque os galos-banquivas representam um importante reservatório de diversidade genética para uso na agropecuária (ex.: potenciais genes que tornam essas aves mais resistentes a infecções). 
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         Apesar de não existir uma clara linha separando o ancestral direto da galinha doméstica - a 'galinha selvagem' - infere-se logicamente que as primeiras galinhas domésticas emergiram a partir dos ovos do ancestral selvagem. Ou seja, novidades genéticas foram se acumulando no contínuo de ancestrais diretos selvagens - via seleção artificial por humanos - até culminar em ovos dando vida às galinhas domésticas. Mas podemos ir além.

        Em um sentido mais amplo, os ovos típicos das aves - incluindo as galinhas - já existiam desde os dinossauros, onde os representantes terópodes aviários desses répteis representam os ancestrais diretos de todas as aves modernas (aliás, as aves comumente são englobadas na classe Reptilia por muitos cientistas).

        A ideia de que as aves são descendentes dos dinossauros foi primeiro proposta por Thomas Henry Huxley, em 1869, e uma das evidências mais fortes que ajudaram a moldar essa ideia foi a descoberta em 1861 do famoso dinossauro com penas conhecido como Archaeopteryx. Porém, essa hipótese recebeu relativa pouca importância até a descoberta dos dinossauros do gênero Deinonychus (os famosos 'Velociraptores' da franquia Jurassic Park - apesar deles serem retratados no filme como dinossauros terópodes sem penas por motivos de licença artística) - por Jonh Ostrom na década de 1960. Hoje, depois da descoberta de inúmeras mais espécies e gêneros de dinossauros terópodes em óbvia transição - entre diferentes estágios - para as aves, isso já é um fato martelado no meio acadêmico: as aves são descendentes evolucionários dos dinossauros. Melhor dizendo, as aves modernas são descendentes diretos de dinossauros aviários.



          Aliás, várias características morfológicas, e até mesmo comportamentais, antes pensadas serem únicas das aves são compartilhadas por vários dinossauros (1), como os ossos pneumáticos preenchidos com ar que primeiro apareceram nos dinossauros do Jurássico Superior, cerca de 200 milhões de anos atrás e eram comuns em Saurischians, como Tyrannosaurus rex e Diplodocus. Nesse sentido, o ovo entra também como ligação direta entre as aves e os dinossauros. Os ovos das aves possuem um número de características únicas não encontradas em outros ovos dos atuais répteis: possuem formatos longos, não-esféricos, e apontam para um dos lados ao invés de serem simétricos. Além disso, as aves encubam seus ovos usando diretamente o calor corporal, e depositam ovos um por vez (onde crocodilos e outros répteis possuem dois ovidutos funcionais para a passagem dos ovos). Dinossauros bípedes, pequenos (1-3 metros, ou menores) e predadores, como o gênero Citipati e o Troodon, compartilham diversas dessas características e ainda existem várias evidências fósseis de que eles usavam o corpo para aquecê-los.

         Claro, e se formos ainda mais fundo, encontraremos que os primeiros ovos com casca dura surgiram na transição final entre anfíbios e répteis, há cerca de 312 milhões de anos.

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   A GALINHA VEIO PRIMEIRO

        Porém, contudo, todavia, podemos encarar essa questão sob um outro ângulo de visão, onde o ovo específico da galinha é levado em conta. Pesquisadores há muito tempo sabem que a casca do ovo das galinhas contém uma proteína chamada de ovocleidina-17 (OC-17) - mais especificamente na região mineral do ovo (a parte dura da casca) - e que ela deveria ter algum papel na formação desse material protetor. E um estudo sobre o assunto acabou também quebrando o reinado do ovo como sendo, necessariamente, o antecessor da galinha no processo evolutivo.

        Nesse caso, pesquisadores da Universidade de Warwick e da Universidade de Sheffield, ambas do Reino Unido, utilizaram um supercomputador, em Edinburgh, para descobrir a função dessa proteína via processos metadinâmicos de simulação molecular. As simulações - detalhadas em um estudo publicado em 2010 na Angewandte Chemie International Editio (Ref.4-5) - mostraram exatamente como a proteína se ligava à superfície amorfa do carbonato de cálcio (CaCO3) utilizando dois aglutinados de resíduos de arginina, localizados em dois laços da estrutura proteica, e criando uma espécie de "grampo" químico para nano-partículas de CaCO3. Nisso, a OC-17 induzia as nanopartículas de CaCO3 a se transformarem em cristalitos de calcita que formam pequenos núcleos para o crescimento de cristais. Quando os cristais desse mineral chegam a um certo tamanho, a proteína se desanexa, é reciclada e inicia novamente a catálise dos cristais.

        Esse processo de cristalização mediado pela OC-17 permite o rápido crescimento das cascas de ovos das galinhas, explicando o porquê das galinhas formarem essas cascas com uma velocidade muito maior do que das outras espécies de aves (6 gramas a cada 24 horas).

        Em outras palavras, o trabalho desses cientistas mostrou que o ovo das galinhas é único entre as aves, por causa da presença desse processo de formação através da ajuda da OC-17. Assim, para o ovo das galinhas como hoje conhecemos ter surgido, as galinhas precisavam já existirem. Esse processo pode ter se iniciado logo depois do surgimento da galinha (Gallus gallus domesticus) ou bem mais tarde via contínuo processo de seleção artificial ou fluxo genético.    

          Nesse último caso, um recente estudo genético publicado na Cell Research (Ref.11) encontrou que após serem domesticadas, as galinhas foram translocadas ao longo do do Sudeste e Sul Asiáticos onde foram cruzadas localmente com outras espécies e subespécies do gênero Gallus. Esse fluxo genético extra contribuiu também para novas características comportamentais, morfológicas e reprodutivas, incluindo provavelmente genes associados à produção de ovos. O estudo envolveu a análise comparativa entre 627 galinhas domésticas, 142 espécimes representativos de todas as cinco subespécies da espécie G. gallus, e 18 espécimes de 4 outras espécies do gênero Gallus. O genoma hoje das galinhas é constituído por até 22,4% de sequências genéticas híbridas derivadas de outras subespécies (3). Ou seja, mesmo após o surgimento da galinha doméstica (G. g. domesticus), essa subespécie continuou sendo substancialmente modificada, resultando em um distinto ovo nas galinhas domésticas modernas em relação ao ovo das galinhas domésticas antigas.

        Existe também a possibilidade de que na fase final de transição do Gallus gallus - ou híbrido com o Gallus sonneratii - espécimes ainda não-galinhas tivessem sofrido processos evolutivos mediados pela epigenética (Neo-Lamarckismo) - regulação de genes para a transferência hereditária de fenótipos não-geneticamente determinados - marcando o ponto final de transição para o Gallus gallus domesticus sem a necessidade de mudanças genéticas ocorrendo antes, fazendo, com isso, que tenhamos uma galinha antes do ovo (Ref.10). Para isso, duas barreiras teriam que ser quebradas: a epigenética para a genética e a somática para as células reprodutores (espermatozoides e óvulos, por exemplo) - ou seja, essas mudanças devem alterar definitivamente o material genético e serem transferíveis via células reprodutoras. E esse tipo processo evolutivo, de fato, vem sendo cada vez mais suportado pelas evidências científicas (4). 

          E, de fato, forte evidência para esse último cenário existe, com um robusto estudo publicado recentemente no periódico Nature Ecology & Evolution (Ref.12) demonstrando um importante papel da metilação do DNA no processo de domesticação das galinhas.

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(3) Para citar um exemplo, a pele amarela é um abundante fenótipo entre as galinhas domésticas e é causada por um alelo recessivo (W*Y) que permite a deposição de carotenoides amarelos na pele. Essa característica genética não se originou do Galo-Banquiva, mas provavelmente do Bengal (Ref.3), uma espécie com próxima relação evolucionária e capaz de hibridização com o Galo-Banquiva.

(4) Para mais detalhes, acesse o artigo: Plasticidade Fenotípica, Epigenética e Evolução Biológica
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   CONCLUSÃO

        No final, temos que, em termos biológicos, ambas as respostas possíveis para a clássica questão "Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?" estão corretas! Tanto o ovo quanto a galinha podem ter surgido primeiro sob diferentes perspectivas da evolução biológica. De qualquer forma, a questão é melhor explorada em termos metafóricos, para a discussão de questões filosóficas de causa e efeito, do que apenas de forma literal - apesar de render uma boa desculpa para se discutir evolução biológica, especialmente em sala de aula!


Artigo Relacionado: Os Pterossauros eram dinossauros?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20163644
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/7809067
  3. https://archive.is/oDxa
  4. https://ebooks.adelaide.edu.au/p/plutarch/symposiacs/complete.html#section15
  5. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/anie.201000679
  6. https://warwick.ac.uk/newsandevents/pressreleases/researchers_apply_computing/
  7. https://blogs.unimelb.edu.au/sciencecommunication/2017/08/28/which-came-first-the-chicken-or-the-egg/
  8. http://www.cam.ac.uk/research/news/egg-cetera-2-the-answer-to-the-riddle-of-which-came-first
  9. http://www.jstor.org/stable/40267330?seq=1#page_scan_tab_contents
  10. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4486432/
  11. Wang et al. (2020). 863 genomes reveal the origin and domestication of chicken. Cell Research 30, 693–701. https://doi.org/10.1038/s41422-020-0349-y
  12. Höglund et al. (2020). The methylation landscape and its role in domestication and gene regulation in the chicken. Nature Ecology & Evolution 4, 1713–1724. https://doi.org/10.1038/s41559-020-01310-1
  13. Wu MY et al. (2023) Historic samples reveal loss of wild genotype through domestic chicken introgression during the Anthropocene. PLoS Genetics 19(1): e1010551. https://doi.org/10.1371/journal.pgen.1010551