Demolidor e as compensações sensoriais
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É de conhecimento amplo que a perda de um sentido corporal (visão, audição, paladar, tato ou olfato) leva ao melhoramento de uso dos outros sentidos restantes. Mas qual é a extensão dessa alegada otimização? Essa regra pode ser aplicada para todos os sentidos e no mesmo grau de significância? Como essa otimização sensorial é processada?
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COMPENSAÇÕES SENSORIAIS
O Demolidor é um personagem de quadrinhos bem famoso, especialmente depois da recente e excelente adaptação no formato de websérie exibida na Netflix. Quando o pequeno Matt Murdock perde a visão após um acidente fazer um líquido tóxico cair em seus olhos, ele ganha uma super compensação em seus outros sentidos, principalmente na audição. A partir daí, ele passa a lutar contra o crime quando adulto, aproveitando as vantagens físicas ganhas associadas às suas novas habilidades sensoriais. A inspiração do personagem, claro, veio da observação prática de que perdas sensoriais podem levar à melhora de outros sentidos do corpo.
No entanto, esse fenômeno compensatório, no mundo real, possui diversas limitações. Para a perda visual, de fato, temos uma substancial compensação sensorial em termos auditivos, mas que só possui real importância para quem nasceu cego ou ficou cego muito cedo na infância. Porém, no caso da perda auditiva, o saldo positivo das compensações é controverso, e, para outras perdas sensoriais, são pouquíssimos os estudos realizados que as analisam, já que são eventos mais raros de ocorrerem. Além disso, apesar de ser muito disseminado que a otimização dos outros sentidos é devido ao maior foco de concentração durante o uso sensorial (por exemplo, "escutar com mais atenção quando cego"), existem evidências cada vez crescentes e conclusivas de que existe uma mudança física no cérebro, em um processo chamado de plasticidade neural (neuroplasticity, no inglês).
Querendo, ou não, nossa sociedade é, basicamente, moldada e planejada pelo sentido da visão. Somos muito dependentes dela para tudo e, quando a comparamos com os outros sentidos, ela é, sem dúvida, o mais importante guia da nossa espécie (Homo sapiens). Sim, os outros sentidos são também muito importantes, mas não tão essenciais quanto a visão em termos comparativos. Provavelmente por esse motivo é que ocorre uma compensação tão grande quando perdemos ou danificamos ela, especialmente através da audição e do tato. Passamos a escutar com mais precisão e a adivinhar melhor os objetos com o tato, e isso fica bem notável caso a cegueira ocorra desde o nascimento. Já quando vamos analisar a perda auditiva, é altamente controverso se existe uma real melhora nos outros sentidos. Bem, se eu perco a visão e a audição melhora, se eu perder a audição minha visão também melhoraria, certo? Não, pelo menos se analisarmos o quadro geral.
Os outros primatas também dependem muito da visão e, quando a perdem, também desenvolvem compensações sensoriais |
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Diversos estudos que analisam a surdez chegam ao consenso de que enquanto a visão central não sofre otimização quando comparamos um indivíduo surdo com outro normal, a visão periférica parece melhorar consideravelmente. Em vários testes clínicos, indivíduos com perda auditiva parecem conseguir descrever melhor o que ocorre na periferia do campo visual, percebendo mínimas variações não notadas por pessoas com a audição saudável. Só que isso pode não fazer diferença, ou até resultar em uma desvantagem, quando a visão central é analisada. Enquanto um indivíduo surdo consegue se concentrar melhor na sua visão periférica, a central acaba sendo prejudicada pelas constantes distrações da periferia, algo que pode dificultar diversas tarefas no final da contas. Por isso é incerto dizer se existe uma real melhora visual. Algo parecido ocorre com o Demolidor, quando este não consegue se concentrar, e acaba ficando meio pirado com tantas distrações sensoriais no ambiente ao redor (apesar disso não parecer ocorrer com pessoas cegas normais). Já no caso da perda do tato, olfato e paladar as evidências de que algo do tipo ocorra em alguma extensão palpável é quase inexistente.
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DESENVOLVIMENTO DAS COMPENSAÇÕES
Vamos analisar agora como é construído essas compensações sensoriais no cérebro. Obviamente, sem a visão, por exemplo, começamos a nos concentrar e confiar mais na audição e tato para nos localizarmos no espaço, ou seja, prestamos mais atenção e treinamos mais esses sentidos, incluindo o olfato. Por causa da visão, nossos outros sentidos acabam sendo muito subvalorizados e quando ela desaparece, um grande potencial sensorial começa a ser acordado. Em um exemplo, foi descoberto há alguns anos atrás que o nosso olfato consegue identificar cerca de 10 mil odores, algo nunca pensado como possível antes. Esse valor é algo comparado com o sistema olfativo dos cães, mas como eles usam infinitamente mais o olfato como guia, eles conseguem aproveitar todo o potencial desse sentido. Sem a visão para mascarar o potencial, otimizamos o resto dos sentidos. Só que isso não parece ser o único processo ocorrendo. Segundo vários trabalhos científicos nesses últimos anos, o sistema neural nas áreas cerebrais responsáveis pelos sentidos passam por transformações, podendo até reciclar áreas inutilizadas.
Essas mudanças no cérebro, chamadas de plasticidade neural (1), modificam as redes de processamento e transmissão de dados, e o mais impressionante: recrutam áreas não mais sendo usados por um sentido deficiente! Por exemplo, o córtex occipital é normalmente associado com o processamento visual mas, nos cegos, ele é recrutado para processar informações táteis, sonoras e tarefas verbais de memória. Com isso o cérebro pode até mesmo ultrapassar o potencial de cada um dos sentidos isolados, no melhor estilo ´Demolidor´! Para indivíduos que perderam a visão e audição, por exemplo, pode-se pensar que o aprendizado de linguagens torna-se algo quase impossível, mas essas adaptações e reciclagem de áreas neurais podem garantir uma super compensação em cima do tato, o qual pode gerar, reter e analisar bem mais informações através de uma expansão de circuitos nervosos.
Imagens construídas por ressonâncias magnéticas de deficientes visuais e/ou auditivos, mostram a ativação dessas áreas recicladas em vários experimentos. A maior acuidade da visão periférica nos surdos pode vir dessa plástica neural. E, no caso da perda visual, esta gera impactos tão fortes que mesmo um indivíduo que passa um breve período de tempo sem utilizá-la começam a mostrar sinais dessa adaptação cerebral, como mostrado em alguns estudos recentes. E, mesmo em perdas parciais da visão, já foi registrado transformações parecidas. Mas, claro, esse processo pode não elevar o potencial de toda a área sensorial, mas apenas algumas partes específicas, como ocorre nos surdos. O grau de plasticidade provavelmente depende do dano ocular e tempo de deficiência, além da genética diferenciada de cada um.
Um estudo publicado na Journal of Neuroscience (Ref.17), ao medir a resposta neural de participantes cegos e com visão normal a sequências de tons do tipo código Morse, mostrou que os indivíduos que nasceram cegos ou que perderam a visão muito cedo na infância possuem um córtex auditório com uma "afinação" neural mais estreita do que indivíduos com visão em relação ao discernimento de pequenas diferenças na frequência sonora. Já um estudo publicado na Proceeding of the National Academy of Sciences (Ref.18), analisou como os indivíduos que nasceram cegos - ou ficaram cegos bem cedo na infância - representam objetos em movimento no espaço. Nas pessoas com visão normal, essa representação de movimento - pela via visual - é realizada em uma área chamada de hMT+. Nos indivíduos cegos analisados, os pesquisadores mostraram que essa mesma área reflete tanto a movimentação quanto a frequência de sinais auditivos, sugerindo que o hMT+ é recrutado para realizar similar papel de acompanhamento de movimento de forma a aumentar o poder de processamento sonoro no cérebro. Ambos os estudos utilizaram imagem por ressonância magnética funcional para as análises de atividade neural e forneceram evidências de que as plasticidades observadas no córtex auditivo e no hMT+ podem explicar a maior capacidade auditiva desses indivíduos cegos.
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REVÉS DA PLASTICIDADE
Apesar das claras vantagens proporcionadas pela plasticidade cerebral, esse processo de modificação neural pode ter efeitos negativos quando analisamos um outro lado da questão: tecnologias de suporte. Na natureza, esse remodelamento no cérebro pode ser de grande utilidade, permitindo um upgrade sensorial maior do que o programado pelo cérebro em condições normais e, consequentemente, aumentando as chances de sobrevivência. Só que dispositivos tecnológicos que tentam ajudar os deficientes sensoriais a conseguirem parte, ou total, dos sentidos perdidos, podem não obter o sucesso esperado devido ao fato do cérebro não estar mais trabalhando aquele sentido como deveria.
Em outras palavras, a área visual no cérebro de um cego pode ter sido modificada para assessorar outros processamentos sensoriais e, caso um olho biônico fosse implantado, o sistema neural não mais seria capaz de interpretar e/ou receber as informações nervosas da visão como antes, especialmente se o indivíduo já tiver nascido cego. Isso explicaria porque alguns pacientes respondem bem à implantação de uma cóclea artificial (para restaurar a audição) enquanto outros não conseguem obter benefícios desses dispositivos. E isso faz com que o planejamento dessas próteses, futuramente, tenha que levar em conta essas mudanças no cérebro, algo que pode se mostrar bem complicado de decifrar.
CONCLUSÃO
As compensações sensoriais não parecem ocorrer na mesma extensão para todos os sentidos. De fato, reais vantagens compensatórias parecem vir apenas da perda de visão. E, ao contrário do que se pensava no passado, as capacidades sensoriais, especialmente na cegueira, parecem aumentar o potencial sensorial no cérebro, não sendo apenas uma questão de ´maior concentração´. Mas essa otimização sensorial pode trazer benefícios relativos, como no caso da audição, onde as distrações periféricas, mencionadas acima, podem ajudar em algumas tarefas mas prejudicar outras.
(1) A plasticidade neural não ocorre apenas quando uma deficiência sensorial é estabelecida. Danos cerebrais, causados por isquemias, infartos e traumatismo craniano também podem induzir uma modificação nas redes nervosas. Por exemplo, se uma área no cérebro é lesionada e não consegue se recuperar com um fator de regeneração, o sistema neural pode começar a recrutar outras áreas no órgão para executar as atividades que antes eram desenvolvidas pela área perdida. Como muitas lesões no cérebro não podem ser curadas com a atual medicina, pesquisas hoje também focam em conseguir métodos para induzir o cérebro a buscar essa plasticidade neural de forma mais rápida, algo que pode ajudar a recuperar habilidades motoras perdidas após uma isquemia cerebral, por exemplo. Certos tipos de exercícios mentais/motores já mostraram ser eficazes em ativar esse processo de adaptação neural. (Ref.16)
Artigo relacionado: Física Relativística e Dragon Ball Z
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- http://journal.frontiersin.org/article/10.3389/neuro.09.060.2009/full
- http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0005640
- http://www.mitpressjournals.org/doi/abs/10.1162/089892999563616#.V3ho_teGP-U
- http://www.nature.com/nrn/journal/v6/n1/abs/nrn1586.html
- http://www.nature.com/nrn/journal/v11/n1/abs/nrn2758.html
- http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0006899307007391
- http://link.springer.com/article/10.1007/s00441-014-2004-8#/page-1
- http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1364661306002439
- http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0028393207000048
- http://www.peertechz.com/Clinical-Research-Ophthalmology/pdf/JCRO-2-121.pdf
- http://www.hindawi.com/journals/np/2016/5260671/abs/
- http://scholar.harvard.edu/striemamit/publications/neuroplasticity-blind-and-sensory-substitution-vision
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4705765/
- http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0928425704000828
- http://www.jneurosci.org/content/32/28/9626.abstract?sid=554f9c9c-ec7e-4c33-87a0-3f2416e52e24
- https://bmcneurosci.biomedcentral.com/articles/10.1186/1471-2202-15-57
- http://www.jneurosci.org/content/early/2019/04/24/JNEUROSCI.2896-18.2019
- https://www.pnas.org/content/early/2019/04/26/1815376116