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Enrolar a língua é uma habilidade determinada apenas pela genética?


- Atualizado no dia 23 de dezembro de 2022 -

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         Mesmo que essa ideia ainda persista no ensino escolar de genética básica, a capacidade de enrolar as laterais da língua - formando um "tubo" com esse órgão - não depende exclusivamente de fatores genéticos, ou seja, não é um simples traço hereditário. E isso já é sabido desde 1940, com estudos envolvendo gêmeos idênticos e realizados nas décadas de 1950 e 1970 esclarecendo de forma conclusiva a questão (Ref.2, 6).

        Para início de conversa, estima-se que entre 60% e 84% das pessoas - dependendo da população analisada (Ref.11-12) - possuem a capacidade de enrolar a língua. Porém, algumas pessoas, especialmente crianças, não conseguem enrolar a língua quando são pedidas para fazê-lo em um primeiro momento, mas com o tempo acabam aprendendo essa habilidade. Por exemplo, se você pedir uma criança de 6 anos, que tenha o potencial genético e neuromuscular de enrolar a língua, para fazê-lo, ela pode não conseguir enrolá-la na primeira tentativa. Ao longo do tempo, a criança pode acabar aprendendo por conta própria, mas é possível a pessoa passar a vida toda não sabendo como fazer isso ou conseguir apenas enrolar timidamente as bordas da língua. É sugerido que mais de 20% da população  aprende naturalmente a enrolar a língua até os 12 anos de idade (Ref.6).

        Em outras palavras, não é possível afirmar que uma pessoa que não consegue enrolar a língua em um dado momento exibe deficiência de um "traço genético" para enrolar a língua. A pessoa pode ter o potencial para essa habilidade, mas talvez precise treinar para efetivamente exibi-la - ou naturalmente aprender com o avanço da idade. Fatores ambientais diversos podem também estar envolvidos no processo. Aliás, estudos mostram que em ~30% dos pares de gêmeos idênticos (monozigóticos) um dos irmãos não possui a habilidade de enrolar a língua enquanto o outro irmão a possui, mesmo ambos compartilhando essencialmente o mesmo genótipo (!). Se enrolar a língua fosse determinado apenas por simples presença genética, 100% dos gêmeos idênticos deveriam compartilhar o traço, e não apenas ~70%.

Figura 1. Além da capacidade de enrolar a língua (primeira foto), existem várias formas de "deformar" a língua. Evidência científica recente sugere que a habilidade de modificar a forma da língua não depende da habilidade ou da base genética para se enrolar a língua. Indivíduos com a base genética e neuromuscular para realizar complexos movimentos com a língua podem aprender a habilidade dentro de duas semanas de treino. Ref.11 

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> Cerca de 95% das pessoas que conseguem realizar um movimento complexo com a língua além de enrolá-la também serão capazes de enrolá-la. É sugerido que esse movimento é frequentemente - mas não necessariamente - um pré-requisito para a realização de outros movimentos. Padrões diferenciados de inervação na musculatura da língua parecem explicar por que algumas pessoas conseguem e outras não conseguem enrolar e/ou dobrar a língua.

> Um estudo publicado em 2021, analisando 387 Holandeses adultos saudáveis sobre a habilidade de realizar cinco distintos movimentos com a língua (Fig.2), encontrou que: 83,7% conseguiam enrolar a língua; 14,7% conseguiam transformá-la em "folha de trevo"; 27,5% conseguiam dobrá-la; 36,1% torcê-la para a esquerda; e 35,6% torcê-la para a direita. Habilidade de enrolar a língua não mostrou ser um pré-requisito para dobrar a língua. A habilidade de dobrar a língua mostrou ser muito maior do que a média estimada para a população em geral em estudos prévios (entre 1,5 e 3%). Ref.12


Figura 2. Fotos com cinco movimentos distintos da língua: (I) enrolar, (II) "folha de trevo", (III) dobrar, (IV) torcer para a esquerda, (V) torcer para a direita.

> A topologia muscular da língua é, no geral, a mesma entre humanos, mas a inervação é sabida de diferir entre os indivíduos, o que pode contribuir para a versatilidade individual desse órgão.
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          Enquanto é possível para muitos aprenderem a enrolar ou dobrar a língua com treino, isso não significa que não exista "influência" genética para tal. Um ou mais genes podem contribuir com essa habilidade, talvez os mesmos genes que determinam o comprimento e/ou o tônus muscular da língua podem estar envolvidos. 

          Tradicionalmente é sugerido que existe um gene dominante (T) responsável pela habilidade enrolar a língua, de tal modo que quem possui a forma homozigótica (TT) é capaz de enrolar a língua e aqueles com o alelo recessivo desse gene (t) na forma homozigótica (tt) não conseguem. Quem possui ambos (alelo dominante e alelo recessivo), ou seja, são heterozigóticos para esse gene (Tt), seriam aqueles que podem ou não podem exibir a habilidade, sendo sugerido que ~75% nesse grupo são capazes de enrolar a língua (Ref.13). Nesse último caso, teríamos o conceito aplicado de penetrância incompleta, no qual um gene não determina completamente um traço; isso pode acontecer por causa de peculiaridades genéticas ou ambientais, ou por causa da interação entre esses dois fatores.

          Por outro lado, alguns estudos suportam a ideia de que múltiplos genes ou alelos - junto ou não com influências ambientais - podem ser responsáveis pela habilidade ou potencial de enrolar a língua, e não apenas uma relação simples de gene dominante e dois alelos (Ref.6, 14-15). O mesmo seria válido para outros movimentos complexos com a língua. Portanto, talvez não seja uma boa ideia usar a ausência ou presença da habilidade de enrolar a língua para ensinar genética básica (Mendeliana).
           
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        E, por falar em língua, existe outro problema, também devido a vários fatores (1), incluindo genética, que incomoda e confunde muita gente.

        Língua Fissurada é uma condição fisiológica normal que afeta entre 2 e 5% da população mundial. É caracterizada por profundas fissuras na língua, as quais podem ultrapassar 6 mm. À medida que a idade avança, as fissuras tendem a se tornar mais acentuadas.

         Não existem sintomas ou prejuízos para a saúde devido às fissuras. Raramente, pessoas que exibem essa condição podem experienciar esporádicas sensações de ardência. Porém, devido à natureza das fissuras, restos de comida podem ficar agarradas nos espaços fissurados com facilidade, especialmente se não existir um hábito diário e adequado de limpeza bucal, e isso pode produzir mau hálito. Para evitar esse inconveniente, basta melhorar a limpeza mecânica da boca (ex.: escovação).

Típica língua fissurada

        O mais importante são as pessoas com língua fissurada entenderem que essa condição é normal, não existindo motivo para séria preocupação.

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(1) Não se sabe ao certo as causas para todos os casos de língua fissurada, mas o fator genético é, provavelmente, o principal.
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Artigo relacionado: Por que temos dois olhos, dois ouvidos e dois buracos no nariz?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://learn.genetics.utah.edu/content/basics/observable/
  2. http://jhered.oxfordjournals.org/content/62/2/125.extract
  3. http://europepmc.org/abstract/med/6230562
  4. http://www.jstor.org/stable/29540011
  5. http://jhered.oxfordjournals.org/content/43/1/24.extract
  6. http://udel.edu/~mcdonald/mythtongueroll.html
  7. http://journals.cambridge.org/action/displayAbstract
  8. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15316160
  9. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4592719/
  10. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/3166201
  11. https://link.springer.com/article/10.1007/s12565-012-0141-2
  12. Kappert et al. (2021). Five Specific Tongue Movements in a Healthy Population. Dysphagia, 36(4): 736–742. https://doi.org/10.1007%2Fs00455-020-10195-y
  13. https://revistapesquisa.fapesp.br/en/ask-the-researchers-6/
  14. Tahir et al. (2014). "Some Interesting Facts About Tongue Rolling Trait in Humans." Pakistan Journal of Zoology, vol. 46, no. 4. Gale Academic. 
  15. Igbeneghu et al. (2016). Association between tongue rolling and tongue folding in Osogbo, Southwestern Nigeria. International Journal of Morphology, 34(3):866-869.