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Por que temos dois olhos paralelos, dois ouvidos laterais e... dois buracos no nariz?

                                                      
- Atualizado no dia 4 de fevereiro de 2024 -

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           Mais do que uma questão de simples simetria corporal, a duplicata dessas três partes do corpo desempenham um importante papel  no processo de percepção espacial. E, pasmem!, até o nariz entra nesse esquema de navegação.


   DOIS OLHOS PARALELOS  

          Cada um dos nossos olhos é uma câmera proverbial, produzindo uma imagem bidimensional do mundo exterior a partir da luz projetada na retina. A extensão angular do campo visual nos humanos é em torno de 150° caso ficássemos com a cabeça fixa, sem movimentá-la com o pescoço. Nesse sentido, caso tivéssemos um olho em cada lado da cabeça, teríamos praticamente uma visão panorâmica do mundo, e é, de fato, o que frequentemente observamos no mundo animal, incluindo vários pássaros e roedores. Porém, nos primatas, incluindo humanos, ambos os olhos apontam para frente e de forma paralela, com quase sobreposição dos campos de visão. Assim, vemos apenas parcialmente o que está ao nosso lado e nada do que está atrás.

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          Então fica a pergunta: durante o processo evolutivo conservamos esse traço anatômico aparentemente redundante em troca de outras características mais vantajosas, ou a presença de dois olhos na frente do rosto nos dá alguma vantagem? A última opção é a correta.

         É bem estabelecido na literatura acadêmica que uma melhor noção de profundidade é fornecida por diferenças mínimas de recepção da luz exterior nas retinas. Nesse sentido, a luz de uma parte do campo de visão que atinge uma das retinas possui uma base de horizonte levemente diferente daquela que atinge a outra (algo conhecido como 'disparidade binocular'). O cérebro, então, integra as duas imagens sobrepostas e calcula as distâncias aproximadas dos elementos em cena com as informações dessa integração [É bom reforçar que um olho apenas consegue ter uma normal noção de profundidade, mas de forma menos intensa àquela observada com a percepção estereoscópica de profundidade].

          Essa tarefa de extrair profundidade de duas imagens retinais levemente dissimilares entre si ocorre no sistema nervoso central, e o mecanismo neural é tão efetivo que um bom observador pode detectar, apenas via estereopse, diferenças de profundidade tão pequenas quanto 10 micrômetros a distâncias de 25 cm (Ref.2). 

          Além disso, existem experimentos demonstrando que uma visão binocular é mais eficiente para a performance em várias tarefas visual-motoras e exteroceptivas, mesmo descontando fatores estereoscópicos (Ref.3).

           Essas observações reforçam o porquê de olhos na frente do rosto terem evoluído e persistido múltiplas vezes entre várias linhagens de vertebrados, incluindo primatas, felinos e canídeos. Apesar da redução em termos de visão espacial, ganha-se com profundidade e outras habilidades visuais.           

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> Aliás, você sabe o que acontece quando cada olho é exposto a duas imagens distintas ao mesmo tempo? Fica a sugestão de leitura: O que é a Rivalidade Binocular?
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          É interessante mencionar que um mecanismo similar à disparidade binocular também baseia o funcionamento das sessões 3D nos cinemas. Através de truques de imagem, e com a ajuda de um óculos especial, um olho capta um certo tipo de imagem e o outro outra bem diferente. A diferença de recebimento de imagens, neste caso, é tão mais intensa que os objetos parecem estar saltando da tela ou o cenário exibido passa a possuir uma profundidade gritante, apesar da projeção bidimensional (2D).




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   DOIS OUVIDOS LATERAIS

            A existência de dois ouvidos, um de cada lado da cabeça, possibilita que a audição passe a ser algo mais do que um simples sentido de recepção sonora. Em uma lógica parecida com aquela que explica a vantagem dos nossos dois olhos, as diferentes posições do ouvido possibilitam que os sons oriundos de uma específica localização cheguem com tempos diferentes aos tímpanos, fornecendo ao cérebro informação suficiente para o indivíduo detectar a fonte de emissão sonora com extrema eficiência. Caso o som venha de uma posição simétrica aos dois ouvidos, não existe diferença temporal na recepção sonora, mas o tom do som ainda dará uma ideia da distância da fonte, mesmo que o sentido fique incerto.

             Essa distância de um lado para o outro da cabeça também ajuda a otimizar o sistema de "sonar".  Se as ondas de som são limitadas em um comprimento de onda de 30 centímetros ou menos, a cabeça passa a funcionar como uma barreira extra, aumentando a diferença temporal de chegada das ondas sonoras em um tímpano em relação ao outro. Ou seja, se o som possui um comprimento de onda muito pequeno (agudo), e vem da direita, sua onda associada encontra dificuldade de atravessar o seu crânio para chegar ao ouvido esquerdo, e vice-versa, fazendo com que fique mais claro a localização da fonte sonora para o cérebro. Mas se o som for grave, com ondas maiores, estas chegarão no dois ouvidos sem dificuldade, sobrando diferenças mínimas de tom e de tempo para o funcionamento do 'radar'. 

          Esse sistema de radar nos outros animais ainda possui frequentemente uma vantagem extra: quando as orelhas são móveis - como em cães e gatos -,  a capacidade de localização da fonte sonora fica ainda mais eficiente.




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    DUAS NARINAS

             E agora vem o último, e mais curioso: a razão para termos duas narinas, ou seja, dois buracos no nariz ao invés de um único. Alguns mecanismos propostos compartilham características e fins acima explorados para os olhos e ouvidos. 

          O nariz humano, a mais protuberante parte do nosso rosto, possui dois canais separados pelo septo nasal, e puxam ar de duas regiões distintas regiões separadas por cerca de 3,5 cm no espaço. Quando o ar passa pelos dois canais nasais, o fluxo não possui a mesma velocidade de arraste em cada um deles. E isso pode fazer um grande diferença no processo de sentir odores. Evidências acumuladas sugerem que algumas substâncias, para serem detectadas pelo nariz, precisam passar bem devagar pelas células olfativas, enquanto outras precisam passar depressa. Se você fizer um teste de tampar cada um dos lados do nariz e puxar o ar, perceberá que um deles puxará esse ar mais facilmente do que o outro. E o mais interessante é que durante o decorrer do dia, os canais esquerdo e direito "trocam de função", com um agora puxando mais do que antes e o oposto ocorrendo para o outro, em um revezamento de "descanso" (1). Se os dois buracos se fundissem em uma única via, não haveria como controlar as velocidades de passagem do ar de forma diferenciada a um mesmo instante, possivelmente fazendo com que muitos odores do ambiente passassem quase despercebidos. 

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(1) Uma narina puxa um mesmo volume de ar mais rápido do que a outra, e vice-versa ao longo de um ciclo alternado, porque ocorre um inchaço periódico nas estruturas internas do nariz. Esse inchaço afeta ambos os lados em um revezamento ativado a cada 4 horas, em média.
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           Interessante também apontar que substâncias de odor que entram em cada narina ativam diferentes lados (direito e esquerdo) do córtex piriforme, segundo revelou um recente estudo publicado no periódico Current Biology (Ref.14). No estudo, os pesquisadores analisaram pacientes com epilepsia que estavam sendo submetidos a cirurgias cerebrais; durante os procedimentos cirúrgicos, os pacientes estavam acordados e pequenos tubos liberando substâncias odoríferas foram colocados ~1 cm dentro de cada narina. O lado do cérebro mais próximo da narina exposta a um odor liberado mostrou reagir primeiro (~480 milissegundos mais rápido na média), seguindo de uma reação no lado oposto do cérebro. E mais interessante: quando ambas as narinas eram expostas a odores simultaneamente, ambos os lados do cérebro reconheciam o sinal odorífero mais rápido do que quando odores eram apresentados a apenas uma das narinas. Os resultados do estudo sugeriram que os dois lados do cérebro envolvidos no olfato agiam de forma sinérgica, integrando dois distintos sinais no córtex durante inalações com ambas as narinas.

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            Na segunda função proposta para a existência ou conservação evolutiva de duas narinas, começamos com um estudo publicado na Science, em 2006 (Ref.8). No estudo, foi mostrado que ratos conseguiam saber com boa precisão a localização de fontes odoríferas diversas, devido ao fato das moléculas de odor estarem chegando pelo ar em diferentes tempos em cada um dos buracos do nariz. Ou seja, um cheiro vindo da direita chega mais rapidamente no buraco da direita, criando uma sensibilização olfativa diferenciada entre os dois lados, e enviando duas mensagens ao cérebro. Quando os dois sinais olfativos são integrados no sistema nervoso central desses roedores, a localização da fonte onde o odor está sendo exalado é revelada sem a necessidade de outros sentidos. Os pesquisadores mostraram que as diferenças de tempo de chegada dos odores conseguiam ser percebidas em intervalos tão curtos quanto 50 milissegundos! 

          Estudos prévios já tinham demonstrado essa habilidade em toupeiras, e o achado nesse último estudo sugeriu que vários outros mamíferos, incluindo humanos, também poderiam ter esse mecanismo de percepção espacial via olfato. 

          Aliás, isso parece ser válido até para baleias. Todos os cetáceos possuem passagens nasais ósseas pareadas sob o orifício respiratório (narina) - associado a tecido mole. Porém, enquanto as baleias dentadas (subordem Odontoceti; ex.: cachalotes) exibem apenas uma narina, as baleias verdadeiras (subordem Mysticeti) exibem duas narinas e bulbos olfativos funcionais. Evidência acumulada aponta que as baleias verdadeiras (ex.: baleias-jubartes) usam olfato para detectar substâncias no ar quando emergem na superfície e usam esse sentido no modo estéreo - com o auxílio das duas narinas - para localizar zooplâncton marinho [alimento], através de gás dimetil sulfeto (DMS) liberado por esses organismos (Ref.16). Por exemplo, baleias-francas (Eubalaena australis, E. glacialis, E. japonica) e baleias-da-Groenlândia (Balaena mysticetus) se alimentam predominantemente de zooplâncton. Aves marinhas são conhecidas de usar DMS como uma pista para a disponibilidade de zooplâncton. Soma-se como evidência o fato da abertura e fechamento das narinas serem bilateralmente controlados em pelo menos duas espécies: baleia-jubarte (Megaptera novaeangliae) e Baleia-franca-do-atlântico-norte (E. glacialis). Controle bilateral das narinas (em estéreo) pode aumentar a eficiência da localização de fontes odoríferas.

Narinas de uma baleia-da-Groenlândia.

         Mas estudos têm sido historicamente conflitantes nesse aspecto para humanos. Nesse sentido, um estudo publicado em 2020 no periódico Proceedings of National Academy of Sciences (Ref.12) trouxe clara evidência comportamental de que os humanos também conseguem navegar com o olfato, ao utilizarem o subconsciente para detectar sutis diferenças na razão inter-narinas de moléculas odoríferas. Esse uso do subconsciente explica os resultados conflitantes dos estudos experimentais prévios devido à limitação do auto-reporte. 

          Para contornar essa limitação, os pesquisadores no novo estudo resolveram controlar precisamente o padrão de expansão do fluxo óptico para analisar disparidades binárias de concentração a um paradigma de julgamentos de movimentação da cabeça após a exposição de voluntários a dois odores: álcool feniletil e vanilina, ambos representando cheiros conhecidos de ativarem apenas o nervo olfatório. O paradigma em questão representa um tipo de estímulo visual que captura o padrão de aparente movimentação de elementos superficiais em uma cena visual e induz a sensação ilusória de auto-movimento nos observadores estacionários.

          Resultados de um rigoroso teste psicofísico em quatro experimentos envolvendo 180 participantes consistentemente mostrou que uma moderada disparidade binária tendenciosa levava à percepção de auto-movimento na direção do lado de maior concentração do odor específico de forma similar ao visto no efeito estereoscópico de profundidade da visão, apesar dos participantes não conseguirem verbalizar qual narina (direita ou esquerda) sentia um mais forte odor. E o efeito de disparidade mostrou depender da razão das concentrações de moléculas odoríferas entre as narinas, não às diferenças puramente numéricas de concentração das moléculas odoríferas.

           Essa função de navegação espacial do nariz pode dar suporte à hipótese que o sentido do olfato nos animais primeiro evoluiu para o propósito primário de navegação em um mundo químico (!).

          Por outro lado, o estudo mais recente na Ref.14, analisando os pacientes com epilepsia, não encontrou evidência de que a presença de duas narinas em humanos ajuda na localização do cheiro. Quando os pesquisadores apresentaram os odores apenas na narina direita ou esquerda dos participantes e perguntavam de qual sentido o cheiro estava vindo (direita ou esquerda), as respostas no geral não indicaram melhor acuracidade do que simples "chute". Com base nesse resultado e no achado de que o cérebro identifica mais rapidamente um odor quando as substâncias odoríferas alcançam ambas as narinas ao invés de apenas um, os autores do estudo sugeriram que a presença de duas narinas pode fornecer um mecanismo de "checagem de erro": com dois sinais nervosos chegando em tempos separados no cérebro e criando duas distintas atividades no córtex piriforme, e ambos apontando a mesma identificação, a correta identificação de uma substância e a natureza da sua fonte se tornaria mais provável.

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> Uma rivalidade binária também é gerada - similar à visão (rivalidade binocular) - quando dois odores distintos são apresentados a cada uma das narinas (alternância na percepção dos odores). Para mais informações, acesse: O que é a Rivalidade Binocular?

(!)  Um estudo de 2022, conduzido por Rabell et al. (Ref.13), demonstrou uma ativação assimétrica do núcleo olfatório anterior (AON) através de sinais químicos diferenciados gerados em cada uma das narinas de ratos em resposta a odores no ambiente. Essa ativação em circuitos neurais mostrou ser suficiente e necessária para prontamente elicitar respostas de orientação espacial nesses roedores, reforçando a hipótese de que a separação do nariz em duas narinas é importante para a navegação dos animais no ambiente.
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CURIOSIDADE:
Por causa da sua anatomia diferenciada, o Louva-a-Deus é o único representante conhecido dentro do reino animal que possui um único órgão auditivo, ou seja, apenas uma entrada de captação sonora. Muitos pesquisadores até o apelidaram de 'Ciclope Auditivo'.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.nature.com/articles/371700a0
  2. https://royalsocietypublishing.org/doi/abs/10.1098/rspb.1994.0117
  3. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/6452501/
  4. http://www.healthguidance.org/entry/17381/1/Why-Do-We-Have-Two-Nostrils.html
  5. http://news.stanford.edu/news/1999/november10/smell-1110.html
  6. http://www.nature.com/nature/journal/v402/n6757/full/402035a0.html
  7. http://www.scientificamerican.com/article/two-eyes-two-views/
  8. http://www.berkeley.edu/news/media/releases/2006/12/18_scents.shtml
  9. http://www.scientificamerican.com/article/bring-science-home-two-ears-sound/
  10. http://academicworks.cuny.edu/gc_etds/647/
  11. http://science.sciencemag.org/content/311/5761/666
  12. https://www.pnas.org/content/early/2020/06/17/2004642117
  13. Rabell et al. (2022). Identifying a direct olfactory pathway for rapid orienting. (Tese de Doutorado). https://lirias.kuleuven.be/3666032
  14. Dikeçligil et al. (2023). Odor representations from the two nostrils are temporally segregated in human piriform cortex. Current Biology. https://doi.org/10.1016/j.cub.2023.10.021
  15. https://www.nature.com/articles/d41586-023-03386-8
  16. Ryan et al. (2024). Morphology of nares associated with stereo-olfaction in baleen whales. Biology Letters. https://doi.org/10.1098/rsbl.2023.0479