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Por que os povos antigos deformavam a cabeça?


- Atualizado no dia 16 de setembro de 2023 -

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          Da Austrália até a Patagônia, há milhares de anos era muito comum a prática de modificação artificial do crânio em humanos modernos (Homo sapiens). Sabe aquele crânio cilíndrico mostrado no filme "Indiana Jones e a Lenda da Caveira de Cristal" (2008)? De fato, quando as pessoas encontraram pela primeira vez esses crânios com formatos estranhos, alguns começaram a acreditar que eram de alienígenas que conviviam entre os povos antigos. Depois que descobriram a existência de povos contemporâneos que faziam modificação craniana (até hoje existem grupos que fazem o procedimento, especialmente na África), a narrativa "extraterrestre" perdeu a força virou mito (Fig.1). Mas qual o motivo para esse tipo de modificação corporal e como ela é feita?
 
Figura 1. Deformações cranianas de grupos modernos; na foto do centro, podemos ver uma criança no processo de deformação

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           As deformações cranianas artificiais representam um campo muito investigado na antropologia e esse procedimento é uma das práticas mais antigas de modificação corporal conhecidas no gênero Homo (humanos), com os exemplos mais antigos documentados associados a dois indivíduos Neandertais (H. neanderthalensis) datados de aproximadamente 45 mil atrás (Ref.8). Para começar, é preciso entender que modificar um crânio não é algo que pode ocorrer em qualquer momento da vida. O crânio de um adolescente ou de um adulto é muito rígido para ser deformado. Esse processo precisa ocorrer bem cedo na infância, quando o osso craniano está ainda bem macio - mais especificamente quando a calvária está maleável (Fig.2). Tipicamente a deformação é iniciada nos primeiros dias de vida do bebê continuando até 2-3 anos de idade. Essa modificação craniana possui apenas pequeno efeito no desenvolvimento da parte facial do crânio e no desenvolvimento mandibular, e não parece ter impacto notável na inteligência ou outros aspectos cognitivos e não parece aumentar o risco de doenças neurológicas - apesar de evidência arqueológica de várias mortes resultantes do processo (talvez envolvendo pressões excessivas sobre o crânio do bebê).

Figura 2. Ilustração de 1543 ["De humani corporis", Vesalius] mostrando a calvária removida de uma pessoa. A calvária é a parte superior do crânio, a qual encapsula o cérebro e é separada dos ossos da face e da mandíbula inferior. Essa parte do crânio consiste de uma grande parte do osso frontal, a maior parte dos dois ossos parietais e geralmente pequenas partes dos ossos temporal e occipital. Ref.9

            Aplicando pressões na superfície da calvária a longo prazo (parecido com o processo de correção dos dentes feito pelos aparelhos dentários), através de faixas firmemente amarradas ou outras ferramentas, a parte de cima da cabeça pode assumir variadas formas no decorrer do desenvolvimento da criança (Fig.2). Mas como isso foi primeiro descoberto pelos povos pré-históricos e antigos, fica apenas na especulação. Alguns pesquisadores acreditam que, por acidente, muitas crianças tinham o crânio deformado devido às estruturas usadas para amarrá-las às costas das mães, as quais permitiam que essas últimas se locomovessem sem ter que ficar carregando os filhos (mãos livres para outras tarefas). Observando o fenômeno, diversos grupos humanos teriam começado a deformar o crânio de maneira intencional. 


Figura 2. Alguns métodos de deformação craniana. O método mais disseminado ao longo da história é o uso de tecidos e bandagens firmemente apertadas ao redor da calvária (Fig.1), possivelmente a técnica usada por Neandertais. Outros métodos incluem massagens manuais, o uso de "tábuas de berço" por alguns Nativos Americanos, e a fita especial de cabeça usada na França Medieval.


Figura 3. Uso de tábuas e almofadas para a modelação do crânio. Visões superior (a), lateral (b) e frontal (c).  Ref.10

Figura 4. Ilustração retratando uma pessoa usando um "berço de tábuas" para a modificação craniana de um bebê. Ref.10
 
Figura 5. (a) Deformação artificial de um crânio pertencente a um indivíduo do povo Aimarás, na região de Humahuaca, Argentina. (b) Reconstrução plástica do indivíduo a partir do crânio. Ref.10

          A deformação craniana artificial pode ser agrupada em duas categorias gerais. A primeira, modificação anular, produz um crânio circunferencial através de constrição da cabeça com bandagens de pressão. O resultado é uma distinta abóbada craniana cônica que pode ser subdividida em formas oblíqua e ereta. O segundo tipo, modificação fronto-occipital tabular, é estabelecido através de compressões anterior e posterior que produzem achatamento na parte de trás e da frente da cabeça. Esse último tipo requer o uso de equipamento mais especializado, como "tábuas de berço" historicamente utilizadas pelas tribos Chinook no Noroeste do Pacífico.

Figura 6. Tipos de modificações cranianas: à esquerda, modificação tabular e, à direita, modificação anular. Crânios associados à região Pré-Hispânica de Cuzco, no Peru. Ref.11
    
Figura 7. Dois subtipos de modificação craniana anular: à esquerda, subtipo oblíquo e, à direita, subtipo ereto. Esses crânios foram encontrados na região Andina. Ref.12

            Deformações cranianas artificiais têm sido observadas frequentemente desde a antiguidade em variadas culturas e regiões ao redor do mundo, atravessando civilizações Sul-Americanas até povos na Sibéria e no Japão (Ref.13-14). Mas qual seria o propósito dessa prática?

          Decifrar as motivações por trás das modificações cranianas intencionais é algo complexo e especulativo. Existem várias  propostas acadêmicas nesse sentido que incluem identidade cultural e étnica, distinção entre classes, desejo de tornar as crianças mais obedientes, e até mesmo como um fator promovendo percebida maior beleza, saúde e inteligência ou uma aparência mais agressiva (ex.: futuros guerreiros). Na região hoje associada ao Peru, povos ali residentes exibiam uma forte hierarquia social e mantinham a prática de modelação craniana. Já foi sugerido que, para diferenciar o nível social de importância entre os membros da sociedade (ricos, pobres, líderes, curandeiros, etc.), as cabeças era modeladas em formas distintas. Como é um procedimento impossível de ser desfeito, não teria como alguém deixar de diferenciar o status social entre as pessoas, já que se torna óbvia a sinalização visual. Corroborando essa hipótese, múltiplos tipos de modificações cranianas já foram identificados dentro de um mesmo grupo.

           Nas populações Andinas, as modificações cranianas têm sido interpretadas como um marcador de origem geográfica, afiliação étnica, parentesco, sexo e identidade social - incluindo identidade de grupos com base nas atividades econômicas, como agricultores e pescadores. Significativa variabilidade nos formatos cranianos são observados na região Andina, e as modificações cranianas mais famosas e impactantes estão associadas à cultura Paracas (800 até 200 anos atrás).
 
Figura 8. Crânios modificados associados à cultura Paracas e expostos no Museo Regional de Ica, no Peru. Modificação tabular ereta era o tipo mais frequente de modificação craniana na cultura Paracas, e variações no formato craniano final estão em parte associadas ao sexo do indivíduo. Ref.15

           Na civilização Maia, alguns pesquisadores têm interpretado as modificações cranianas como parte de um ritual visando proteger os recém-nascidos contra perda da alma e contra danos de "ventos maus" (Ref.16)

             Na região conhecida hoje como Patagônia, aqui na América do Sul, a grande maioria dos povos que ali viviam não possuíam uma organização social avançada ou uma área geográfica fixa de desenvolvimento. Eles eram, basicamente, grupos nômades e expansionistas. Como um mesmo povo costumava se dividir em grupos para facilitar a conquista de novas áreas, adotar formatos diferenciados de cabeça pode ter sido um fator decisivo de reconhecimento entre indivíduos, evitando confrontos desnecessários e mantendo os inimigos bem discriminados.

Figura 9. Moeda contemporânea retratando Khingila, o rei fundador da dinastia Hunnic Alkhan, na Ásia Central, que viveu há mais de 1800 anos. Referenciado também como "Deus-Rei Khingila", é sugerido que o status de divindade desse governante foi resultante de uma deformação craniana artificial - como retratado na moeda (modificação anular ereta). Ref.8

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> Enquanto a deformação craniana artificial era relativamente comum no Antigo Oriente Médio, não existe convincente evidência da prática no Antigo Egito - apesar de várias artes retratando antigos egípcios sugestivas de cabeças alongadas.

> Importante esclarecer uma alegação muito disseminada: NÃO existe evidência de que a elite Inca modificava a cabeça. Ref.15
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   CRÂNIOS DA EUROPA MEDIEVAL

         Um estudo publicado em 2019 na Proceedings of the National Academy of Sciences (Ref.5) trouxe uma hipótese bastante curiosa para explicar crânios alongados encontrados na Bulgária e na Romênia durante a época conhecida como o Período das Migrações, a qual se expandiu do final da Antiguidade até o início da Idade Média, marcando uma profunda transformação cultural. Nesse período, o Império Romano gradualmente se dissolveu e massivas migrações principalmente de povos Germânicos, como os Goths, Alamanni, Gepids e Longobards, passaram a ser bem comuns.

         Datadas em 500 d.C - na sua maioria -., ossadas humanas foram desenterradas de 41 cemitérios de locais arqueológicos do início do período medieval, em uma região próxima de seis modernas cidades ao sul da atual Alemanha (Bavária), ao longo do Rio Danúbio. As escavações ocorreram no final da década de 1960. Até pouco tempo atrás, poucas pistas existiam sobre suas identidades e o porquê da presença de misteriosos crânios alongados entre as ossadas - apesar de existir evidências de crânios artificialmente alongados na Europa datando do século II, a quantidade encontrada nesses cemitérios era maior do que o normal.

         Nisso, uma equipe de pesquisadores resolveu sequenciar o DNA de ossos oriundos de seis desses cemitérios. Para isso, houve uma comparação do material genético de pequenos fragmentos ósseos entre si e aquele das populações modernas ao longo da Europa e da Ásia. Os resultados mostraram que o DNA de 9 homens e de 11 mulheres dos 22 indivíduos com crânios normais tinha uma grande similaridade com o material genético das populações modernas da Europa central e do norte, onde a maioria tinha genes para cabelos loiros e olhos azuis - as exceções eram 2 mulheres com ancestralidade Grega/Anatoliana . Porém, o DNA de 9 mulheres que apresentavam crânio alongado e de 1 mulher dos 5 crânios com apenas suspeita de deformação (4 mulheres e 1 homem) diferia mais do que substancialmente. O material genético dessas mulheres era mais próximo do DNA das populações no sudeste da Europa, mais especificamente da Bulgária e da Romênia, carregando genes para cabelos pretos e olhos escuros.


          De acordo com os autores do novo estudo, isso sugere que essas mulheres tinham seus crânios alongados por motivo de alianças políticas, ou seja, criadas de forma especial para chamar ainda mais a atenção dos indivíduos de povos distantes - somando-se aos diferenciados cabelos e olhos escuros - e terminando por serem oferecidas em casamentos arranjados.

          A hipótese ainda não é bem aceita pela comunidade acadêmica. Alguns citam inclusive que os crânios deformados poderiam ser um acidente na infância - com os crânios dos bebês sendo alongados acidentalmente quando esses ficavam descansando em superfície duras de madeira ou quando eram amarrados para transporte (como já mencionado). Porém, como contra-argumento, os pesquisadores citam que seria muita coincidência, já que quase todas as mulheres com crânio alongados são do sudeste Europeu e em meio a diversos outros crânios normais de indivíduos comuns do centro e norte Europeu - e mais: apenas mulheres.

          Mais recentemente, crânios intencionalmente deformados com diferentes graus de alongamento foram encontrados enterrados em um cemitério (Mözs-Icsei dűlő) datando do século V d.C., na Panônia, uma antiga província Romana na atual parte ocidental da Hungria (Ref.7). No total, foram recuperados 96 crânios de mulheres, crianças e homens, dos quais 51 traziam as deformações. Análises de isótopos de estrôncio indicaram que 23 dos crânios pertenciam a pessoas não-locais (estrangeiros), e todos tinham crânios deformados. Isso sugere que a prática de alongamento de crânio foi introduzida no povo Panoniano local por estrangeiros.



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CURIOSIDADE: Alguns acadêmicos acreditam que o termo em inglês "head of the state" (chefe de estado) é oriundo da prática de deformação craniana artificial praticada entre a nobreza medieval Europeia. Ref.8
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   PERÍODO DA GRANDE MIGRAÇÃO

          A prática das deformações cranianas artificiais possui antigas raízes na Eurásia, parecendo ter emergido de forma independente em múltiplas localizações. Evidências arqueológicas sugerem que a prática foi introduzida na Europa Central em larga escala a partir da migração dos Hunos (antiga confederação Eurasiática de nômades ou seminômades equestres) a partir do século IV. Nesse sentido, segundo um estudo publicado no periódico PLOS ONE (Ref.6), pesquisadores encontraram evidências de que as pessoas na Croácia durante os séculos V e VI, e possivelmente associadas aos Hunos, podem ter usado modificações cranianas para indicar afiliações culturais.

          A conclusão veio depois da análise de três esqueletos humanos datados em 415-560 d.C. - durante o Período da Grande Migração (um tempo de significativo movimento e interação de várias culturas Europeias) - e escavados em 2013 na região Croata de Osijek. Dois dos esqueletos mostraram dramáticas deformações no crânio, onde um deles foi alongado obliquamente e o outro foi comprimido e elevado. É a mais antiga evidência arqueológica de uma Deformação Craniana Artificial na Croácia.



          Todos os esqueletos eram de indivíduos do sexo masculino com idades entre 12 e 16 anos no momento da morte, todos eles estavam sofrendo de má nutrição e aparentemente estavam associados aos Hunos ou a tribos Germânicas. Análises genéticas sugerem os indivíduos com crânios modificados possuíam ancestralidade de diferentes regiões Asiáticas, um do Oriente Próximo e o outro da Ásia Oriental. O esqueleto sem deformações cranianas possuía ancestralidade de Europeus Ocidentais. Nesse sentido, os pesquisadores suspeitam que durante a maior interação inter-cultural na Grande Migração, essas deformidades cranianas tinham o propósito de distinguir diferentes grupos pertencentes a diferentes culturas e regiões.

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   CONCLUSÃO

            Deformações cranianas artificiais requeriam bastante esforço e tempo, com o resultado final impossível de ser desfeito ou escondido pelo indivíduo deformado. Isso fortemente sugere uma importante função (ou funções) dessa prática, especialmente em termos de identidade social. Se pararmos para pensar, modificações corporais são procedimentos comuns até hoje para diferenciar os grupos, tanto na nossa sociedade moderna, quanto em tribos nativas ainda existentes. Piercings, tatuagens, tingimento de cabelos, entre diversas outras alterações do corpo servem para mostrar quem nós somos, e a qual grupo pertencemos. Deformar a cabeça pode ser algo até estranho e agressivo para muitos de nós hoje, mas provavelmente os povos antigos achariam muitas figuras da sociedade moderna também bem estranhas. Imagina apresentar um Marilyn Manson da vida para os Antigos. Ou eles fugiam desesperados ou tomavam Manson como um Deus... (Risos).


Artigo Relacionado: Existem raças humanas?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://www.bbc.com/earth/story/20151119-the-people-who-reshaped-their-skulls
  2. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/aman.12332/full
  3. http://dx.doi.org/10.1002/ajpa.22832
  4. http://dx.doi.org/10.4067/S0717-73562008000100005
  5. http://www.pnas.org/content/early/2018/03/06/1719880115
  6. https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0216366
  7. https://www.archaeology.org/issues/409-2101/digs/9277-digs-hungary-head-modification
  8. Turner, M. D. (2023). Two God-Kings, Two Skulls: Artificial Cranial Deformation in Akhenaten of Egypt and Khingila of the Huns. Cureus, 15(3): e36751. https://doi.org/10.7759/cureus.36751
  9. Tubbs et al. (2011). The human calvaria: a review of embryology, anatomy, pathology, and molecular development. Child’s Nervous System, 28(1), 23–31. https://doi.org/10.1007/s00381-011-1637-0
  10. Schijman, E. (2005). Artificial cranial deformation in newborns in the pre-Columbian Andes. Child’s Nervous System, 21(11), 945–950. https://doi.org/10.1007/s00381-004-1127-8
  11. Mori et al. (2022). Cranial modification and trepanation in pre-Hispanic collections from Peru in the Museum of Anthropology and Ethnology, Florence, Italy. Medicina Historica, Vol. 6, N. 1: e2022002.
  12. Torres-Rouff, C. (2020). Cranial modification and the shapes of heads across the Andes. International Journal of Paleopathology, Volume 29, June 2020, Pages 94-101. https://doi.org/10.1016/j.ijpp.2019.06.007
  13. Kazarnitsky et al. (2022). Cranial deformation in the northwestern Caspian Sea region in the Bronze Age: Siberian parallels. International Journal of Osteorchaelogy, Volume 33, Issue 1, Pages 26-38. https://doi.org/10.1002/oa.3171
  14. Seguchi et al. (2023) Investigating intentional cranial modification: A hybridized two-dimensional/three-dimensional study of the Hirota site, Tanegashima, Japan. PLoS ONE 18(8): e0289219. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0289219
  15. Gómez-Mejía et al. (2022). Intentional cranial modification as a marker of identity in Paracas Cavernas, South-Central Coast of Peru. Journal of Archaeological Science: Reports, Volume 41, 103264. https://doi.org/10.1016/j.jasrep.2021.103264
  16. Duncan & Hofling (2011). WHY THE HEAD? CRANIAL MODIFICATION AS PROTECTION AND ENSOULMENT AMONG THE MAYA. Ancient Mesoamerica, 22(1), 199-210. https://doi.org/10.1017/S0956536111000162