Vermes com cabeça de martelo são perigosos?
Você está no seu jardim e, de repente, se depara com um verme gosmento se arrastando e buscando um refúgio longe do sol. Primeiro você pensa que é uma minhoca ou uma estranha lesma, mas logo percebe que a criatura possui um corpo achatado e uma cabeça triangular. Popularmente conhecidos como "vermes cabeça de martelo" (hammerhead flatworms), múltiplos platelmintos terrestres da subfamília Bipallinae são considerados invasivos em vários países e alguns possuem distribuição global. Mas esses vermes representam real perigo para humanos e o meio ambiente?
Platelmintos Terrestres
Platelmintos representam um vasto filo de animais com corpo alongado e achatado dorsoventralmente. Esse filo inclui animais de vida livre (planárias) encontrados no mar, em água doce e ambientes terrestres. Nesse último nicho, temos os tricládidos da família Geoplanidae, representados por aproximadamente 910 espécies descritas com distribuição global e, principalmente, pan-tropical (Ref.2). Evidência filogenética sugere que platelmintos dessa família estão entre os primeiros grupos de animais na Terra que se adaptaram ao ambiente terrestre.
Os platelmintos terrestres são predadores e fazem parte do ecossistema do solo, onde suas presas são encontradas. Caçam outros invertebrados, como caracóis, lesmas, minhocas, isópodes, larvas de insetos e colêmbolos. Esses vermes são raramente predados por outros animais, mas enfrentam predadores como besouros, caracóis e outras planárias terrestres.
Durante a predação, os platelmintos terrestres procuram, atacam e capturam presas muito maiores do que elas próprias, empregando diversas técnicas, como força física, muco adesivo, ação faríngea e o derramamento de secreção digestiva sobre a superfície da presa viva, ou dentro dela, através da faringe protrátil. Em pelo menos duas espécies, a neurotoxina TTX parece ser usada para caça (!).
A maioria dos platelmintos terrestres possuem pequeno porte, mas alguns podem ultrapassar 20 cm de comprimento e alcançar ~1 m.
Planárias em geral são famosas pela capacidade de regeneração, usando inclusive fissão corporal para reprodução assexuada. Aliás, algumas espécies se reproduzem apenas via cissiparidade, através de pedaços desprendidos do corpo. Esses animais possuem um tipo especial de células-tronco (neoblastos), mesmo em indivíduos adultos, que são totipotentes, ou seja, são capazes de diferenciação em qualquer tipo de célula do corpo (Ref.4). Nos platelmintos terrestres, a capacidade de regeneração varia entre as diferentes espécies, com algumas exibindo capacidade de regeneração completa mesmo quando cortadas em vários pedaços e outras sendo incapazes de regeneração completa ou com baixa ou lenta capacidade regenerativa (Ref.4).
Ávidos predadores e trazendo características adaptativas únicas, um número de espécies de platelmintos terrestres se tornaram invasivos e uma preocupação em vários países, especialmente devido ao hábito comum de predarem minhocas - anelídeos importantes para a regulação de vários processos ecológicos e físicos em solos diversos (Ref.5-7). Além disso, várias espécies de platelmintos terrestres exibem plasticidade alimentar e são capazes de se alimentar tanto de presas nativas quanto exóticas e mudar a dieta em resposta à disponibilidade de presas (Ref.7).
Porém, ainda é incerto se esses predadores realmente podem causar danos ecológicos ou agrícolas em significativa extensão e reduzir a biodiversidade nas novas áreas de ocupação. Por exemplo, um estudo recente publicado no periódico Biological Invasions (Ref.8) apontou que a comunidade biótica em solos da Europa Ocidental é resiliente à invasão da espécie Obama nungara (Fig.5), incluindo as minhocas nativas.
Verme Cabeça de Martelo
Entre os platelmintos terrestres, os vermes-cabeça-de-martelo - espécies pertencentes à subfamília Bipaliinae - possuem origem da Ásia e de Madagascar, mas eventualmente alcançaram várias regiões ao redor do mundo, incluindo o Brasil. A espécie Bipalium kewense, por exemplo, a qual é nativa do sudeste Asiático, é encontrada em todos os continentes com exceção da Antártica (Ref.9). Essa e outras espécies do grupo têm sido introduzidas em novas regiões principalmente pelo transporte internacional de plantas ornamentais exóticas carregando solo nativo. As atuais mudanças climáticas podem aumentar ou reduzir a distribuição global desses vermes ao influenciar nos padrões de precipitação (Ref.9).
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| Figura 8. Platelminto da subfamília Bipaliinae, espécie Bipalium vagum. |
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| Figura 9. Platelminto da subfamília Bipaliinae, pertencente ao gênero Diversibipalium. |
(!) Vermes Tóxicos?
Pelo menos duas espécies do gênero Bipalium carregam a toxina tetrodotoxina (TTX), a qual parece ser usada para fins de caça e de defesa por esses vermes (Ref.12). A tetrodotoxina (TTX) é uma poderosa neurotoxina de baixo peso molecular que age bloqueando canais de sódio nos tecidos musculares e nervosos de animais diversos, impedindo o início e a propagação dos potenciais de ação, resultando em paralisia. Por exemplo, em doses letais, pode provocar asfixia em mamíferos ao paralisar o diafragma.
As espécies em questão - Bipalium adventitium e Bipalium kewense - são predadoras de minhocas e parecem usar o TTX para paralisá-las durante o processo de captura (Fig.11).
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| Figura 10. Estrutura molecular da tetrodotoxina. Existe uma quantidade relativamente grande dessa neurotoxina na cabeça dos vermes B. kewense e B. adventitium. |
Quando esses vermes encontram uma minhoca como presa, eles rastejam pelo corpo da minhoca em direção à cabeça. O verme, então, realiza um comportamento conhecido como "encapsulamento" (capping), no qual a cabeça e corpo são usados para cobrir a extremidade anterior da minhoca. Esse comportamento reduz significativamente a quantidade de movimento e o comportamento de fuga exibido pela presa. Logo após o encapsulamento, a faringe se expande para fora da boca do verme e se fixa à minhoca, liberando enzimas para digerir externamente a presa. Após a digestão externa, o verme ingere a refeição.
As minhocas frequentemente se debatem violentamente para escapar assim que a faringe da platelminto se expande e se fixa. No entanto, frequentemente após o encapsulamento, e dentro de um minuto da expansão da faringe, os movimentos da minhoca diminuem e ela parece ficar paralisada. Essa paralisia parece ser causada pela ação do TTX.
O TTX também está espalhado ao longo de todo o corpo desses vermes e evidência experimental sugere um papel anti-predação dessa neurotoxina (ex.: repulsa após ou durante tentativa de ingestão por predadores). Nesse mesmo sentido, a espécie B. adventitium cobre seus ovos com uma quantidade relativamente grande de TTX.
É ainda incerta a fonte - endógena ou exógena - do TTX que é acumulado no corpo desses vermes.
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> A tetrodotoxina é encontrada em vários animais marinhos e alguns táxons terrestres. Talvez o exemplo mais famoso nesse sentido seja os peixes baiacus. Acredita-se que essa neurotoxina é acumulada nesses animais a partir de certas bactérias. Para mais informações: Por que alguns peixes inflam o corpo?
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Perigo para Humanos?
Embora espécies invasivas sejam uma potencial ameaça para espécies nativas (ex.: minhocas e moluscos terrestres), os platelmintos terrestres em geral não são uma ameaça direta para humanos. Mesmo as espécies do gênero Bipalium que acumulam a neurotoxina TTX no corpo não oferecem perigo para humanos ou animais de estimação como gatos ou cães.
Muitas desinformações têm se espalhado pela internet sobre os vermes-cabeça-de-martelo, primariamente a espécie Bipalium kewense (Ref.13). Aliás, essa espécie já é documentada no Brasil desde o final do século XIX, sem nunca ter sido um real problema no país em termos de saúde pública e ecológicos.
As desinformações são baseadas principalmente na toxicidade associada ao B. kewense. Porém, a quantidade absoluta de TTX no corpo desses animais é extremamente pequena: <200 ng por verme adulto. Para conseguir envenenar mamíferos como cães e humanos, seria necessária a ingestão de centenas de vermes, algo mais do que improvável mesmo para animais de estimação no ambiente doméstico ou natural. Nesse mesmo sentido, contato desses vermes na pele não é preocupante. Caso você tenha pegado em um deles acidentalmente, basta lavar as mãos.
Alegações de disrupção ecológica, desbalanço ambiental e danos na agricultura sendo causados por esses vermes também não são suportadas por evidência científica conclusiva na literatura acadêmica. Existe apenas preocupação de cientistas com potenciais prejuízos ecológicos ligados aos processos de invasão de certas espécies.
REFERÊNCIAS
- Gastineau et al. (2019). Complete mitogenome of the giant invasive hammerhead flatworm Bipalium kewense. Mitochondrial DNA Part B, Volume 4, Issue 1. https://doi.org/10.1080/23802359.2019.1596768
- Sluys, R. (2019). The evolutionary terrestrialization of planarian flatworms (Platyhelminthes, Tricladida, Geoplanidae): a review and research programme. Zoosystematics and Evolution, 95(2): 543-556. https://doi.org/10.3897/zse.95.38727
- Cuevas-Caballé et al. (2019). Diet assessment of two land planarian species using high-throughput sequencing data. Scientific Reports 9, 8679. https://doi.org/10.1038/s41598-019-44952-3
- Milanese et al. (2024). "Do Geoplaninae (Platyhelminthes: Tricladida), a neotropical subfamily of land planarians, regenerate well?" Zoologia (Curitiba), 41. https://doi.org/10.1590/S1984-4689.v41.e23094
- Gastineau et al. (2024). The invasive land flatworm Arthurdendyus triangulatus has repeated sequences in the mitogenome, extra-long cox2 gene and paralogous nuclear rRNA clusters. Sci Rep 14, 7840. https://doi.org/10.1038/s41598-024-58600-y
- Gastineau et al. (2025). An Irish cocktail of flatworm, earthworm and parasite DNAs: genomics of invasive land flatworms (Geoplanidae) reveal infestations by two new Mitosporidium species (Microsporidia). Parasite, 32:67. https://doi.org/10.1051/parasite/2025060
- Noël et al. (2025). Experimental assessment of the predation pressure by the exotic flatworm Obama nungara in its introduced range, Current Zoology, zoaf025. https://doi.org/10.1093/cz/zoaf025
- Fourcade et al. (2025). A qualitative model suggests that the soil ecosystem is resilient to the invasion by the land flatworm Obama nungara. Biol Invasions 27, 96. https://doi.org/10.1007/s10530-025-03557-w
- Fourcade et al. (2022). Hammerhead worms everywhere? Modelling the invasion of bipaliin flatworms in a changing climate. Diversity and Distributions, Volume 28, Issue 4, Pages 844-858. https://doi.org/10.1111/ddi.13489
- Morffe et al. (2020). First record of Bipalium nobile Kawakatsu & Makino, 1982 (Tricladida: Geoplanidae: Bipaliinae) for Aichi Prefecture, Japan. Poeyana - Revista Cubana de Zoologia, 510: 72 - 78.
- Justine et al. (2018). Giant worms chez moi! Hammerhead flatworms (Platyhelminthes, Geoplanidae, Bipalium spp., Diversibipalium spp.) in metropolitan France and overseas French territories. PeerJ, 6:e4672. https://doi.org/10.7717/peerj.4672
- Stokes et al. (2014). Confirmation and Distribution of Tetrodotoxin for the First Time in Terrestrial Invertebrates: Two Terrestrial Flatworm Species (Bipalium adventitium and Bipalium kewense). PLoS ONE 9(6): e100718. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0100718
- Pinto et al. (2025). Crossing the health misinformation crisis: Lessons from the giant hammerhead flatworm. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. https://doi.org/10.1590/0037-8682-0212-2025












