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Vermes com cabeça de martelo são perigosos?

Figura 1. Verme platelminto da espécie Bipalium kewense. É uma planária terrestre predadora, invasiva e pode crescer até 30 cm de comprimento. A invasão dessa espécie ao redor do mundo parece ocorrer através de reprodução assexuada (clonagem). Ref.1

          Você está no seu jardim e, de repente, se depara com um verme gosmento se arrastando e buscando um refúgio longe do sol. Primeiro você pensa que é uma minhoca ou uma estranha lesma, mas logo percebe que a criatura possui um corpo achatado e uma cabeça triangular. Popularmente conhecidos como "vermes cabeça de martelo" (hammerhead flatworms), múltiplos platelmintos terrestres da subfamília Bipallinae são considerados invasivos em vários países e alguns possuem distribuição global. Mas esses vermes representam real perigo para humanos e o meio ambiente?


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   Platelmintos Terrestres

           Platelmintos representam um vasto filo de animais com corpo alongado e achatado dorsoventralmente. Esse filo inclui animais de vida livre (planárias) encontrados no mar, em água doce e ambientes terrestres. Nesse último nicho, temos os tricládidos da família Geoplanidae, representados por aproximadamente 910 espécies descritas com distribuição global e, principalmente, pan-tropical (Ref.2). Evidência filogenética sugere que platelmintos dessa família estão entre os primeiros grupos de animais na Terra que se adaptaram ao ambiente terrestre.

Figura 2. Platelminto terrestre da espécie Polycladus gayi, encontrada na América do Sul. Exibindo grande diversidade de cores, tamanhos e formas, os platelmintos ou planárias terrestres foram objeto de grande admiração do naturalista Charles Darwin, no século XIX. Ref.1

          As planárias ou platelmintos terrestres não toleram calor e luz solar direta, caso contrário, desidratam rapidamente. Devido a essas limitações, tendem a permanecer escondidos durante o dia em refúgios úmidos (ex.: debaixo de pedras, folhagem e troncos apodrecidos), mas não encharcados, emergindo apenas à noite, quando a umidade relativa do ar está alta. Além disso, são totalmente independentes do ambiente aquático, incluindo para fins de reprodução. 

          Os platelmintos terrestres são predadores e fazem parte do ecossistema do solo, onde suas presas são encontradas. Caçam outros invertebrados, como caracóis, lesmas, minhocas, isópodes, larvas de insetos e colêmbolos. Esses vermes são raramente predados por outros animais, mas enfrentam predadores como besouros, caracóis e outras planárias terrestres.


Figura 3. Duas espécies de platelmintos terrestres encontrados na Mata Atlântica, Brasil: (A) Imbira marcusi e (B) Cephaloflexa bergi. A dieta da espécie I. marcusi parece ser restrita a minhocas, enquanto a C. bergi preda aranhas, opiliões, gafanhotos, himenópteros, lepidópteros e possivelmente outros platelmintos terrestres. Ref.3

          Durante a predação, os platelmintos terrestres procuram, atacam e capturam presas muito maiores do que elas próprias, empregando diversas técnicas, como força física, muco adesivo, ação faríngea e o derramamento de secreção digestiva sobre a superfície da presa viva, ou dentro dela, através da faringe protrátil. Em pelo menos duas espécies, a neurotoxina TTX parece ser usada para caça (!). 

          A maioria dos platelmintos terrestres possuem pequeno porte, mas alguns podem ultrapassar 20 cm de comprimento e alcançar ~1 m.

          Planárias em geral são famosas pela capacidade de regeneração, usando inclusive fissão corporal para reprodução assexuada. Aliás, algumas espécies se reproduzem apenas via cissiparidade, através de pedaços desprendidos do corpo. Esses animais possuem um tipo especial de células-tronco (neoblastos), mesmo em indivíduos adultos, que são totipotentes, ou seja, são capazes de diferenciação em qualquer tipo de célula do corpo (Ref.4). Nos platelmintos terrestres, a capacidade de regeneração varia entre as diferentes espécies, com algumas exibindo capacidade de regeneração completa mesmo quando cortadas em vários pedaços e outras sendo incapazes de regeneração completa ou com baixa ou lenta capacidade regenerativa (Ref.4).

Figura 4. Processo de regeneração da espécie Issoca rezendei após ser cortada em duas partes (linha branca). A espécie é facilmente encontrada em jardins e áreas urbanas no sudeste do Brasil. Quando esse verme perde uma parte do corpo ou sofre fissão, os neoblastos se organizam em cada parte amputada e reconstituem o corpo inteiro. A regeneração nos tricládidos ocorre com a formação de novos tecidos na área da amputação, por proliferação celular, dando origem a uma estrutura especializada, primariamente sem pigmentação, o blastema, onde os neoblastos se diferenciarão. Barra de escala: ~10 mm. Ref.4

          Ávidos predadores e trazendo características adaptativas únicas, um número de espécies de platelmintos terrestres se tornaram invasivos e uma preocupação em vários países, especialmente devido ao hábito comum de predarem minhocas - anelídeos importantes para a regulação de vários processos ecológicos e físicos em solos diversos (Ref.5-7). Além disso, várias espécies de platelmintos terrestres exibem plasticidade alimentar e são capazes de se alimentar tanto de presas nativas quanto exóticas e mudar a dieta em resposta à disponibilidade de presas (Ref.7).

Figura 5. Platelminto terrestre adulto da espécie Obama nungara. Nativo da América do Sul, é uma das espécies invasivas mais abundantes na França. Pode predar lesmas, minhocas, caracóis e outros platelmintos. Pode viver até 10 meses, é capaz de encolher para sobreviver a períodos de fome e pode produzir cápsulas de ovos após várias semanas em isolamento, características que podem influenciar positivamente no sucesso de invasão da espécie. Ref.7

          Porém, ainda é incerto se esses predadores realmente podem causar danos ecológicos ou agrícolas em significativa extensão e reduzir a biodiversidade nas novas áreas de ocupação. Por exemplo, um estudo recente publicado no periódico Biological Invasions (Ref.8) apontou que a comunidade biótica em solos da Europa Ocidental é resiliente à invasão da espécie Obama nungara (Fig.5), incluindo as minhocas nativas.


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   Verme Cabeça de Martelo

          Entre os platelmintos terrestres, os vermes-cabeça-de-martelo - espécies pertencentes à subfamília Bipaliinae - possuem origem da Ásia e de Madagascar, mas eventualmente alcançaram várias regiões ao redor do mundo, incluindo o Brasil. A espécie Bipalium kewense, por exemplo, a qual é nativa do sudeste Asiático, é encontrada em todos os continentes com exceção da Antártica (Ref.9). Essa e outras espécies do grupo têm sido introduzidas em novas regiões principalmente pelo transporte internacional de plantas ornamentais exóticas carregando solo nativo. As atuais mudanças climáticas podem aumentar ou reduzir a distribuição global desses vermes ao influenciar nos padrões de precipitação (Ref.9).

Figura 6. Platelminto terrestre da espécie Bipalium nobile. O espécime em questão (A) foi encontrado no Japão, onde a espécie foi introduzida após a Segunda Guerra Mundial. Em (B), destaque para a cabeça triangular ou com forma de "martelo", típica da subfamília Bipaliinae. Essa espécie pode alcançar 1 metro de comprimento. Ref.11

Figura 7. Em (A), morfologia geral da porção anterior final da espécie Bipalium kewense. Essa espécie possui uma grande capacidade regenerativa, mesmo quando cortada em vários pedaços e sendo capaz de completa regeneração em cerca de 30 dias. Em (B), visão lateral da espécie. O B. kewense caça minhocas usando receptores mecânicos e químicos localizados ao longo das margens frontais da "cabeça de martelo". A superfície sob a cabeça possui uma variedade de glândulas que produzem secreções com funções adesivas, lubrificantes e provavelmente tóxicas. Ref.11
 
Figura 7. Superfície ventral de um verme da espécie Bipalium kewense. A localização da boca é indicada pelo asterisco (*) e a posição aproximada da faringe protrusiva é evidente pela área longitudinal pálida associada à região bucal. Ref.11

Figura 8. Platelminto da subfamília Bipaliinae, espécie Bipalium vagum.


Figura 9. Platelminto da subfamília Bipaliinae, pertencente ao gênero Diversibipalium.


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    (!Vermes Tóxicos?

           Pelo menos duas espécies do gênero Bipalium carregam a toxina tetrodotoxina (TTX), a qual parece ser usada para fins de caça e de defesa por esses vermes (Ref.12). A tetrodotoxina (TTX) é uma poderosa neurotoxina de baixo peso molecular que age bloqueando canais de sódio nos tecidos musculares e nervosos de animais diversos, impedindo o início e a propagação dos potenciais de ação, resultando em paralisia. Por exemplo, em doses letais, pode provocar asfixia em mamíferos ao paralisar o diafragma.

          As espécies em questão - Bipalium adventitium e Bipalium kewense - são predadoras de minhocas e parecem usar o TTX para paralisá-las durante o processo de captura (Fig.11).

Figura 10. Estrutura molecular da tetrodotoxina. Existe uma quantidade relativamente grande dessa neurotoxina na cabeça dos vermes B. kewense e B. adventitium.

Figura 11. Espécime de Bipalium kewense predando uma minhoca. Esse parece ser o estágio onde o platelminto secreta a neurotoxina TTX para reduzir a mobilidade da presa. O verme também produz secreções que aderem seu corpo à presa, facilitando a predação.

           Quando esses vermes encontram uma minhoca como presa, eles rastejam pelo corpo da minhoca em direção à cabeça. O verme, então, realiza um comportamento conhecido como "encapsulamento" (capping), no qual a cabeça e corpo são usados para cobrir a extremidade anterior da minhoca. Esse comportamento reduz significativamente a quantidade de movimento e o comportamento de fuga exibido pela presa. Logo após o encapsulamento, a faringe se expande para fora da boca do verme e se fixa à minhoca, liberando enzimas para digerir externamente a presa. Após a digestão externa, o verme ingere a refeição. 

          As minhocas frequentemente se debatem violentamente para escapar assim que a faringe da platelminto se expande e se fixa. No entanto, frequentemente após o encapsulamento, e dentro de um minuto da expansão da faringe, os movimentos da minhoca diminuem e ela parece ficar paralisada. Essa paralisia parece ser causada pela ação do TTX.

          O TTX também está espalhado ao longo de todo o corpo desses vermes e evidência experimental sugere um papel anti-predação dessa neurotoxina (ex.: repulsa após ou durante tentativa de ingestão por predadores). Nesse mesmo sentido, a espécie B. adventitium cobre seus ovos com uma quantidade relativamente grande de TTX.

          É ainda incerta a fonte - endógena ou exógena - do TTX que é acumulado no corpo desses vermes.

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> A tetrodotoxina é encontrada em vários animais marinhos e alguns táxons terrestres. Talvez o exemplo mais famoso nesse sentido seja os peixes baiacus. Acredita-se que essa neurotoxina é acumulada nesses animais a partir de certas bactérias. Para mais informações: Por que alguns peixes inflam o corpo?

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   Perigo para Humanos?

          Embora espécies invasivas sejam uma potencial ameaça para espécies nativas (ex.: minhocas e moluscos terrestres), os platelmintos terrestres em geral não são uma ameaça direta para humanos. Mesmo as espécies do gênero Bipalium que acumulam a neurotoxina TTX no corpo não oferecem perigo para humanos ou animais de estimação como gatos ou cães. 

          Muitas desinformações têm se espalhado pela internet sobre os vermes-cabeça-de-martelo, primariamente a espécie Bipalium kewense (Ref.13). Aliás, essa espécie já é documentada no Brasil desde o final do século XIX, sem nunca ter sido um real problema no país em termos de saúde pública e ecológicos.

          As desinformações são baseadas principalmente na toxicidade associada ao B. kewense. Porém, a quantidade absoluta de TTX no corpo desses animais é extremamente pequena: <200 ng por verme adulto. Para conseguir envenenar mamíferos como cães e humanos, seria necessária a ingestão de centenas de vermes, algo mais do que improvável mesmo para animais de estimação no ambiente doméstico ou natural. Nesse mesmo sentido, contato desses vermes na pele não é preocupante. Caso você tenha pegado em um deles acidentalmente, basta lavar as mãos.

           Alegações de disrupção ecológica, desbalanço ambiental e danos na agricultura sendo causados por esses vermes também não são suportadas por evidência científica conclusiva na literatura acadêmica. Existe apenas preocupação de cientistas com potenciais prejuízos ecológicos ligados aos processos de invasão de certas espécies.


REFERÊNCIAS

  1. Gastineau et al. (2019). Complete mitogenome of the giant invasive hammerhead flatworm Bipalium kewense. Mitochondrial DNA Part B, Volume 4, Issue 1. https://doi.org/10.1080/23802359.2019.1596768
  2.  Sluys, R. (2019). The evolutionary terrestrialization of planarian flatworms (Platyhelminthes, Tricladida, Geoplanidae): a review and research programme. Zoosystematics and Evolution, 95(2): 543-556. https://doi.org/10.3897/zse.95.38727
  3. Cuevas-Caballé et al. (2019). Diet assessment of two land planarian species using high-throughput sequencing data. Scientific Reports 9, 8679. https://doi.org/10.1038/s41598-019-44952-3
  4. Milanese et al. (2024). "Do Geoplaninae (Platyhelminthes: Tricladida), a neotropical subfamily of land planarians, regenerate well?" Zoologia (Curitiba), 41. https://doi.org/10.1590/S1984-4689.v41.e23094
  5. Gastineau et al. (2024). The invasive land flatworm Arthurdendyus triangulatus has repeated sequences in the mitogenome, extra-long cox2 gene and paralogous nuclear rRNA clusters. Sci Rep 14, 7840. https://doi.org/10.1038/s41598-024-58600-y
  6. Gastineau et al. (2025). An Irish cocktail of flatworm, earthworm and parasite DNAs: genomics of invasive land flatworms (Geoplanidae) reveal infestations by two new Mitosporidium species (Microsporidia). Parasite, 32:67. https://doi.org/10.1051/parasite/2025060
  7. Noël et al. (2025). Experimental assessment of the predation pressure by the exotic flatworm Obama nungara in its introduced range, Current Zoology, zoaf025. https://doi.org/10.1093/cz/zoaf025
  8. Fourcade et al. (2025). A qualitative model suggests that the soil ecosystem is resilient to the invasion by the land flatworm Obama nungara. Biol Invasions 27, 96. https://doi.org/10.1007/s10530-025-03557-w 
  9. Fourcade et al. (2022). Hammerhead worms everywhere? Modelling the invasion of bipaliin flatworms in a changing climate. Diversity and Distributions, Volume 28, Issue 4, Pages 844-858. https://doi.org/10.1111/ddi.13489
  10. Morffe et al. (2020). First record of Bipalium nobile Kawakatsu & Makino, 1982 (Tricladida: Geoplanidae: Bipaliinae) for Aichi Prefecture, Japan. Poeyana - Revista Cubana de Zoologia, 510: 72 - 78. 
  11. Justine et al. (2018). Giant worms chez moi! Hammerhead flatworms (Platyhelminthes, Geoplanidae, Bipalium spp., Diversibipalium spp.) in metropolitan France and overseas French territories. PeerJ, 6:e4672. https://doi.org/10.7717/peerj.4672
  12. Stokes et al. (2014). Confirmation and Distribution of Tetrodotoxin for the First Time in Terrestrial Invertebrates: Two Terrestrial Flatworm Species (Bipalium adventitium and Bipalium kewense). PLoS ONE 9(6): e100718. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0100718
  13. Pinto et al. (2025). Crossing the health misinformation crisis: Lessons from the giant hammerhead flatworm. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. https://doi.org/10.1590/0037-8682-0212-2025