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Afinal, o vidro é um líquido ou é um sólido?


- Atualizado no dia 22 de novembro de 2023 -

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         O vidro tem sido um material fundamental ao longo da história humana. Para muitos, o vidro é, sem sombra de dúvidas, um sólido, por causa da rigidez típica desse estado físico. Para outros que entendem um pouco mais da natureza estrutural desse material, a resposta tende a ser 'líquido', mais especificamente "um líquido muito viscoso". Neste último caso, é quase sempre citado o exemplo dos vitrais europeus de Igrejas da Idade Média, os quais, supostamente, teriam escorrido ao longo dos séculos por causa da sua natureza 'líquida', fazendo com que a parte de baixo desses vidros ficasse mais grossa, e mais fina na parte de cima. Mas será que isso corrobora o alegado estado líquido do vidro?
 
Os vitrais de Igreja da Idade Média apresentam suas partes inferiores mais grossas do que as superiores, em um formato que aparentam uma espécie de escorrimento; seria essa uma pista para a natureza fluída dos vidros?

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         Basicamente, os sólidos são estruturas bem ordenadas, rígidas, resistentes à mudança de forma e volume, e não são fluídos, como os cristais e metais. Mas os sólidos podem existir também na forma amorfa, ou seja, possuem todas as característica acima listadas, exceto uma estrutura ordenada. Por serem amorfos, seus átomos constituintes não estão dispostos em um padrão específico, podendo ocupar posições aleatórias dentro da estrutura. Já os líquidos são substâncias fluídas, podem ser facilmente moldados em forma e volume, e possuem seus átomos, moléculas ou íons fracamente ligados entre si. O vidro entra na categoria dos sólidos amorfos, junto com diversos outros materiais, a exemplo de vários tipos de polímeros e o tão popular algodão-doce. Sim, o vidro é um sólido, e não líquido.

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> Em um estudo publicado no periódico Communication Materials (Ref.5), pesquisadores revelaram regularidades estruturais no vidro, constituídas de anéis altamente simétricos - típicos de cristais - e, principalmente, de anéis distorcidos únicos ao vidro. Os anéis simétricos mostraram contribuir com o ordenamento estrutural local na sílica amorfa (vidro). Análises também revelaram anisotropia do ordenamento estrutural local ao redor dos anéis - ex.: a regulação da configuração atômica não é uniforme em todas as direções -, contribuindo na construção do ordenamento de alcance intermediário observado no vidro. No aspecto geral, vidros são materiais amorfos, mas que exibem algum grau de ordem ou regularidade dentro da sua estrutura.

Exemplos de anéis identificados no vidro exibindo diferentes graus de simetria. Ref.5
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        Para a fabricação do vidro, cristais de sílica (quartzo) são resfriados rapidamente para a formação de um líquido super resfriado, ou seja, um líquido que passou do seu ponto de solidificação sem se transformar em um sólido. Nesse ponto, o resfriamento é continuado, dando origem ao nosso sólido amorfo (vidro). Normalmente, para o super resfriamento, são adicionados outros sais, como o carbonato de sódio, para diminuir a temperatura de fusão dos cristais de sílica. Portanto, quando alguém diz que o vidro é um líquido 'super resfriado', isso é um engano, já que esse não é o ponto final do material. Como mencionado, um resfriamento adicional é efetuado, na sua fase de transição vítrea, característica dos sólidos amorfos.

          Caso a sílica fundida fosse lentamente resfriada, ao invés do super resfriamento e transição vítrea, ela apenas iria sofrer uma cristalização e voltar ao seu estado ordenado de quartzo. Em termos de incerteza quanto à exata natureza do estado físico do vidro, no máximo existe discordância entre os especialistas se os sólidos amorfos deveriam ser considerados um estado físico à parte, uma espécie de meio termo entre o líquido e o sólido. Mas dizer que o vidro é um líquido, não faz sentido. As forças de ligação entre suas ramificações intermoleculares (caráter covalente) são muito fortes, algo que faz o material ter as propriedades físicas de um sólido clássico, independentemente do seu desordenamento atômico. Nesse último ponto é onde as pessoas que entendem um pouco da estrutura desses materiais acabam distorcendo as coisas, por acharem que esse desordenamento sempre caracteriza um líquido.

Estrutura de um Quartzo e de um Vidro, onde podemos notar a diferença entre ambos quanto ao grau de organização dos seus átomos constituintes; no cristal, diferente do sólido amorfo, existe uma célula unitária que se propaga uniformemente pela estrutura do cristal, de forma muito bem ordenada e em uma geometria específica

         Aqui, então, voltamos para os vitrais de Igrejas. Devido à suposição de que os vidros são líquidos, muitos acham que esses materiais tenderiam a ter um valor de viscosidade dramaticamente menor do que os sólidos, se aproximando dos valores encontrados nos fluídos muito viscosos (1). Desse modo, com o passar dos séculos, seria mais do que natural que esses materiais começassem a escorrer lentamente, deixando a parte inferior dos vitrais nas Igrejas medievais mais grossa do que a parte superior, algo, de fato, observado nessas janelas. Porém, enquanto a água e o melaço, em condições ambientes, possuem uma viscosidade de 0,01 e 500 poises, respectivamente, é estimado que o vidro possua um valor de viscosidade entre 1010 e 1020 poises! Ou seja, para esses materiais fluírem como um líquido ao relento poderia demorar tanto tempo quanto a idade do nosso Universo! E outra: o chumbo metálico, um clássico sólido, possui viscosidade em torno de 1011, um valor até bem mais baixo do que a média encontrada nos vidros. Mas o que estaria acontecendo nos vidros dessas Igrejas então?

          Na verdade, a resposta para essa pergunta é dada por fatores que não dizem respeito especificamente aos princípios da físico-química. No passado, o método de produção dos vidros para esses vitrais deixavam deformidades nas peças finais, fazendo com que certas regiões nessas peças ficassem mais espessas do que outras. Por algum motivo, os trabalhadores nas Igrejas medievais preferiam deixar as regiões mais espessas na parte inferior dos vitrais, dando o aspecto de "escorrimento". Caso você não esteja convencido, basta trazermos peças de vidraria muito mais antigas, como aquelas recuperadas na Roma e no Egito produzidos há mais de 2000 anos, as quais não apresentam tais "escorrimentos".

À esquerda, peças de vidro da Roma Antiga e, à direita, peças de vidro do Egito Antigo; nenhuma delas apresentam os alegados "escorrimentos" observados em vitrais Medievais.

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        O que pode acontecer nos vidros com o passar do tempo é uma tendência desses materiais passarem para o estado cristalino a temperatura e pressão ambientes. Sim, porque os sólidos amorfos são formados a partir de um processo controlado majoritariamente pela cinética, e não pela termodinâmica, deixando-os relativamente instáveis. Mas apesar da forma amorfa não ser termodinamicamente mais favorável nas condições ambientes, o tempo que levaria para ocorrer, naturalmente, essa transição estrutural seria longo demais e dependeria muito da presença de impurezas em sua estrutura. Caso essas impurezas existam, formando locais de cristalização, você pode apostar em milhares de anos para isso ocorrer.

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(1) Viscosidade de um fluído é a sua resistência em sofrer uma gradual deformação por tensão de cisalhamento ou tensão de tração. Em termos mais simples, um líquido mais viscoso terá maior dificuldade em variar sua forma para ocupar um certo volume.


O líquido à esquerda possui menor viscosidade do que o líquido à direita


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://math.ucr.edu/home/baez/physics/General/Glass/glass.html
  2. http://www.cmog.org/article/does-glass-flow
  3. http://www.scientificamerican.com/article/fact-fiction-glass-liquid/
  4. http://pslc.ws/macrog/tg.htm 
  5. Shiga et al. (2023). Ring-originated anisotropy of local structural ordering in amorphous and crystalline silicon dioxide. Communication Materials 4, 91. https://doi.org/10.1038/s43246-023-00416-w