Cobras precisam beber água?
Figura 1. Diferentes quadros (A e B) de um vídeo mostrando uma cobra da espécie Agkistrodon piscivorus bebendo água. Ref.2 |
Apesar de não ser uma visão comum, cobras também bebem água e esse hábito - suplementando água metabólica e alimentar - parece ser crítico para a boa saúde desses répteis.
Assim como outros vertebrados, cobras - incluindo espécies marinhas - utilizam, e podem requerer, várias fontes de água livre no ambiente para a manutenção do balanço hídrico. Apesar das cobras serem geralmente bem adaptadas para a conservação de água e beberem água de maneira infrequente, o consumo de água doce provavelmente é necessário para a homeostase hídrica na maioria das espécies, incluindo naquelas habitando ambientes muito secos. Aliás, enquanto cobras marinhas não bebem água do mar (salina), algumas espécies desse grupo bebem água fresca intensamente quando disponível seguindo períodos de seca. Além disso, mesmo com as presas desses répteis contendo 60-75% de água, cobras aumentam o consumo de água doce seguindo uma refeição, sugerindo que alimentação aumenta o requerimento de água corporal nesses animais.
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> Manter o balanço hídrico corporal em vertebrados carnívoros como cobras é essencial para digestão, excreção e defecação, e consumo e metabolismo de alimento pode aumentar o requerimento de água. Cobras podem ganhar água de fontes alimentares ou metabólicas (ex.: oxidação de gorduras) mas não o suficiente para manter o balanço hídrico em todas as condições climáticas e ambientais. Cobras terrestres geralmente resistem ao consumo de água doce em ambiente natural, exceto quando estão desidratadas por causa de secas, tempo muito quente ou outros fatores.
> Várias cobras marinhas ficam desidratadas na ausência de chuvas e não são capazes de hidratar o corpo com água do mar. Essas cobras dependem de água fresca no ambiente terrestre ou quando lentes de água doce ou pouco salina são formadas na superfície oceânica após chuva. Isso foi primeiro demonstrado por um estudo publicado em 2008 envolvendo experimentos com cobras marinhas do gênero Laticauda (Ref.4).
> Lente oceânica faz referência ao acúmulo de água doce ou água salina diluída flutuando sobre água marinha (com alta concentração de sais dissolvidos e mais densa). Pode ser formada durante intensa precipitação sobre o oceano.
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Um estudo experimental de 2021 publicado no periódico Journal of Experimental Biology (Ref.5), analisando cobras semi-aquáticas do gênero Nerodia, mostrou que indivíduos das espécies N. clarkii e N. fasciata, após moderada e prolongada desidratação, paravam de se alimentar, mesmo com ampla disponibilidade de alimento com teor de 71% de água (no caso, peixes). O estudo encontrou evidência de que alimentação nessas cobras cria um balanço hídrico negativo, exigindo consumo extra de água doce. As cobras prontamente bebiam água quando estavam desidratadas ou eram apresentadas a uma fonte de água. Segundo apontaram os autores desse estudo, o mesmo parece ser verdade para cobras cascavéis.
Nas cobras vivíparas, a vulnerabilidade à desidratação e a necessidade de uma fonte hidratante de água aumentam de forma significativa durante a gravidez (Ref.6).
Diferentes espécies de cobras diferem tanto na cinemática do consumo de água quanto nos padrões de influxo de água (Ref.2). Aparentemente, a ingestão de água na maioria desses répteis é realizada via sucção ou bombeamento bucal, envolvendo alternação de pressões negativa e positiva na cavidade orofaríngea mas através de mecanismos específicos variantes entre os táxons (ex.: ausência ou presença de movimentos cíclicos da língua). Por outro lado, certas espécies não selam as margens da boca durante o consumo de água e parecem usar um mecanismo de "esponja" envolvendo músculos e outras estruturas orofaríngeas e esofágicas (Ref.7). Diferente das aves, lagartos e mamíferos, todas as cobras possuem línguas bífidas e estreitas incapazes de carregar ou mover água.
Cobras cascavéis (subfamília Crotalinae, gêneros Crotalus e Sistrurus) vivendo em ambientes desérticos usam o corpo para coletar e beber gotas de chuva, com achatamento e recolhimento corporal comumente observado no processo (aparentemente para otimizar a coleta de água), como observado no vídeo abaixo. E as escamas dessas cobras - com base em experimentos conduzidos na espécie Crotalus atrox (Ref.8) - também contribuem para a coleta, fornecendo uma superfície altamente hidrofóbica e pegajosa que facilita a ingestão da água coletada e dificulta a perda dessa água. E um estudo recente mostrou que quando cascavéis da espécie Crotalus viridis estão agregadas durante coleta individual de água de chuva, essas cobras bebem água na pele uma das outras - e esse compartilhamento grupal de água pode ser uma estratégia de sobrevivência (Ref.9).
Curiosidade: A pequena cobra fossorial da espécie Myriopholis macrorhyncha, conhecida popularmente como cobra-verme-de-nariz-comprido e com massa corporal de apenas ~1 g, possui alta superfície corporal de contato e, nesse sentido, fica muito vulnerável à desidratação nos ambientes secos e desérticos onde habita. Para compensar a potencial alta perda evaporativa de água em ambiente aberto - quando saem dos túneis úmidos -, essa espécie é capaz de absorver água do ar atmosférico. Ref.10
Figura 4. Cobra-verme da espécie Myriopholis macrorhyncha. |
REFERÊNCIAS
- Claunch et al. (2023). Stress Ecology in Snakes. Snakes, Chapter 11. Link do PDF
- Cundall, D. (2000). Drinking in Snakes: Kinematic Cycling and Water Transport. Journal of Experimental Biology, 203 (14): 2171–2185. https://doi.org/10.1242/jeb.203.14.2171
- Tasnim et al. (2024). An Observation of Drinking Behavior by a Green Catsnake, Boiga cyanea (Dumeril, Bibron, and Dumeril 1854). Reptiles & Amphibians, 31: e21444. https://doi.org/10.17161/randa.v31i1.21444
- Lillywhite et al. (2008). Sea Snakes (Laticauda spp.) Require Fresh Drinking Water: Implication for the Distribution and Persistence of Populations. Physiological and Biochemical Zoology, Volume 81, Number 6. https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/588306
- Lillywhite et al. (2024). Thirst and drinking in North American watersnakes (Nerodia spp.). Journal of Experimental Biology, 224 (5): jeb241414. https://doi.org/10.1242/jeb.241414
- Isaza, D. F. G. (2022). Momma needs a drink: droughts are stressing out pregnant snakes, Conservation Physiology, Volume 10, Issue 1, 2022, coac007, https://doi.org/10.1093/conphys/coac007
- Cundall et al. (2012). Drinking in Snakes: Resolving a Biomechanical Puzzle. JEZ-A Ecological and Integrative Physiology, Volume 317, Issue 3, Pages 152-172. https://doi.org/10.1002/jez.1710
- Phadnis et al. (2019). Role of Scale Wettability on Rain-Harvesting Behavior in a Desert-Dwelling Rattlesnake. ACS Omega, Vol.4, Issue 25. https://doi.org/10.1021/acsomega.9b02557
- McIntyre et al. (2024). Emily N Taylor, Scott M Boback, Rain-harvesting behavior in free-ranging prairie rattlesnakes (Crotalus viridis), Current Zoology, zoae069. https://doi.org/10.1093/cz/zoae069
- Dubiner et al. (2024). Water uptake from air in a desert thread snake, Myriopholis macrorhyncha. Ecological and Evolutionary Physiology. https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/733794