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Hafgufa: Criatura Mitológica ou atípica tática de caça de baleias rorquais?

Figura 1. Criatura marinha de um bestiário medieval (1200 d.C.) que parece fazer referência ao Hafgufa ou Aspidochelone. Peixes aparecem sendo atraídos e entrando na boca da criatura. Ref.1

 
           Animais marinhos diversos historicamente inspiraram várias criaturas mitológicas na Escandinávia e outras partes do mundo, incluindo famosos personagens como sereias e o Kraken. No mesmo sentido, existe uma criatura na mitologia Nórdica, descrita em manuscritos do Antigo Nórdico desde o século XIII e conhecida como Hafgufa, que parece ser inspirada em baleias, especificamente em um curioso e atípico comportamento alimentar desses cetáceos (Ref.1). Essa criatura permaneceu parte dos mitos na Islândia até o século XVIII. A tradição do hafgufa possui ancestralidade comum com o termo Aspidochelone, usado para descrever um tipo de baleia frequentemente retratada em bestiários medievais, e parece também ser referenciada  na Antiguidade, particularmente em um manuscrito Alexandriano do século II d.C. conhecido como Physiologus.  

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          O comportamento de alimentação mencionado - apelidado de trap feeding ("armadilha de alimentação") - têm sido reportado pela comunidade científica desde 2011, e descrito cientificamente em 2017 (Ref.2) e 2018 (Ref.3) para duas espécies de baleias rorquais: baleia-jubarte (Megaptera novaeangliae) e baleia-de-bryde (Balaenoptera brydei). No caso, é uma peculiar estratégia de alimentação passiva muito efetiva em cenários de baixa densidade de peixes e que aparentemente visa economizar energia, onde a baleia se posiciona verticalmente na água com o maxilar e a mandíbula acima da superfície do mar; após abertura da boca, vários peixes são atraídos para dentro dela - direcionados pelo fluxo de água e talvez também buscando refúgio - e então presos quando a mandíbula é fechada (Fig.2). Aves marinhas (ex.: espécies de alcídeos, como a Cerorhinca monocerata e a Uria aalge) ficam sobrevoando ao redor da boca durante o processo, talvez contribuindo para os peixes ativamente procurarem abrigo dentro da cavidade bucal da baleia (Fig.2vídeo abaixo). Algumas vezes as baleias movimentam suas nadadeiras ou giram o corpo durante o trap feeding para aparentemente direcionar as presas para a boca.


Figura 2. Na sequência de fotos, uma baleia-de-Bryde adulta - junto com um filhote (à direita) - realizando trap feeding. (A) A baleia sobe verticalmente e expõe a cabeça para fora da água, com a boca fechada. (B-C) A boca é aberta e a mandíbula abaixa até a superfície marinha, permitindo fluxo de água para dentro da cavidade bucal. (D) A baleia segura essa posição por vários segundos e permite fluxos de água entrarem nos cantos da boca, como destacado pelo círculo vermelho na imagem ampliada em (F), trazendo também peixes desorientados ou buscando abrigo. (E) A boca é fechada e a baleia mergulha. Ref.2
Figura 3. Ilustração de uma baleia-jubarte se alimentando via trap feeding. A jubarte possui distribuição quase global, incluindo presença ocasional no Mediterrâneo. A tática mais comum de caça das jubartes é a estocada (lunge feeding), onde a baleia avança com a boca aberta contra um cardume de peixes, fechando a boca em seguida e expulsando o enorme volume de água engolida através das cerdas bucais (retendo os peixes capturados). Devido ao grande arraste gerado na água, a estocada envolve alto custo energético, mesmo com a anatomia das rorquais sendo altamente especializada para essa estratégia de caça. Ref.1-3

Figura 4. A jubarte pode também realizar trap feeding em uma posição mais horizontal, permanecendo estacionária na superfície ou pouco abaixo da superfície com a boca aberta por no mínimo 4 segundos. Durante essa estratégia de caça, a baleia não exibe aceleração antes da abertura da boca. Nadadeiras e/ou movimento de giro são frequentemente usados para direcionar presas para a "armadilha". Ref.3 

   

            O registro escrito no Antigo Nórdico que traz a mais detalhada descrição relacionando o hafgufa e baleias realizando trap feeding está presente no texto Konungs skuggsjá ("Espelho do Rei"), um manuscrito feito para o Rei Norueguês Hákon Hákonarson (reinado durante o período de 1217-1263). No manuscrito, podemos destacar o trecho:

"Mas o grande peixe [hafgufa] mantém sua boca aberta por um tempo, não mais ou menos larga do que um grande som ou fiorde, e, sem conhecimento e sem atenção, os peixes correm em grande número. E quando sua barriga e sua boca estão cheias, [o hafgufa] fecha sua boca, portanto capturando e prendendo todas as presas que vieram buscando alimento."

          O hafgufa aparece em outros manuscritos do Velho Nórdico, incluindo a saga Ǫrvar-Odds, a saga lendária fornaldarsaga e o poema pula produzidos no século XIII d.C.. E criaturas similares são também referidas com outros nomes em registros mais antigos. O mais antigo desses registros é o texto Grego Physiologus ("O Naturalista"), compilado na Alexandria em 150-200 d.C. e preservando informações zoológicas trazidas para o Egito da Índia e do Oriente Médio por antigos historiadores naturais como Heródoto, Ctésias, Aristóteles e Plutarco, assim como por mercadores e outros viajantes. A partir do ano de 300 d.C., o Physilogus foi traduzido para o Árabe, Armênio, Cóptico, Etiópio, Latim e Siríaco e, então, na Idade Média, foi traduzido em vários vernáculos Europeus, incluindo Inglês Antigo (pré-975 d.C.) e Islandês em 1200 d.C. Embora a versão original do texto não tenha sobrevivido, na versão Latina de 400 d.C., temos o seguinte trecho descrevendo uma baleia similar ao hafgufa e a qual era chamada pelos Gregos de aspidochelone:

"Quando estava com fome, abria sua boca e exalava um certo tipo de agradável odor, um cheiro que, uma vez percebido por peixes menores, estes se reuniam na boca. Mas quando a boca ficava cheia com diversos pequenos peixes, [o aspidochelone] subitamente fechava sua boca e os engolia."


Figura 5. No Physiologus de Berna, provavelmente produzido em 825-850 d.C. e especulado ser uma cópia do manuscrito em Latim do século V d.C., temos uma ilustração do aspidocheloneRef.1


Figura 6. No Physiologus Islandês, de 1200 d.C., o texto inclui uma ilustração da criatura, referida como Apsido e similar a uma baleia, com um ou dois peixes na sua boca e outros tentando pular dentro da boca. Ref.1


Figura 7. Mapa da Islândia de 1658, mostrando várias criaturas marinas mitológicas. Abaixo, imagem ampliada de uma criatura marinha chamada de H, "a maior das baleias", descrita como incapaz de perseguir peixes mas capturando-os através de perspicácia. Ref.1

           Um estudo recente publicado no periódico Natural History Sciences (Ref.4) reportou outra descrição histórica de um "monstro marinho", no século XIX, que também parece espelhar uma rorqual realizando trap feeding. No caso, a descrição é baseada em uma observação no Golfo de Suez, Egito, e publicada em 1879 no jornal Britânico The Graphic. A descrição é muito similar ao trap feeding de rorquais: "[...] emergiu na superfície novamente, e repetiu a ação de elevar a cabeça e abrir a boca várias vezes, virando lentamente de lado a lado [...] a altura do focinho elevado acima da superfície da água era de pelo menos 15 pés e os maxilares abertos cerca de 25 pés". A ilustração junto à publicação também lembra muito a representação de uma rorqual durante o trap feeding, incluindo presença de várias aves marinhas e jatos [fluxos] de água sendo forçados dentro da boca.

Figura 8. "Monstro marinho" ilustrado no jornal The Graphic em 1879 que claramente remete a uma baleia verdadeira (Mysticeti), abrindo e fechando a boca para capturar peixes durante a tática estacionária de caça. O evento foi testemunhado e reportado por tripulantes da embarcação H.M.S. Philomel (ilustrada ao fundo). Ref.4

           A tradição descrevendo o hafgufa e criaturas similares em registros históricos é coerente e consistente ao longo de pelo menos 1500 anos. Se essas criaturas estiverem de fato refletindo o comportamento de trap feeding, isso significa que essa estratégia de caça é muito antiga entre baleias rorquais, e provavelmente comum no passado. O fato desse comportamento ter sido descrito cientificamente apenas na segunda década do século XXI pode ter relação com o dramático declínio das populações de baleias causado pelas intensas atividades da indústria baleeira que emergiu no século XVII e persistiu até o século XX. 

           É estimado que antes do século XVII, a população de jubartes no Atlântico Norte totalizava ~112 mil indivíduos, despencando para menos de 1 mil indivíduos até o ano de 1955. A partir de leis internacionais, campanhas de conservação e programas de recuperação, a população total hoje estimada é de >20 mil.

           Com populações muito maiores de baleias rorquais antes do século XVII e maior competição desses cetáceos por peixes, estratégias de caça e de sobrevivência hoje consideradas atípicas e raras podem ter sido muito mais comuns e parte do repertório normal de comportamento de jubartes, baleias-de-Bryde e outros misticetos, sendo observadas de forma relativamente frequente por humanos durante atividades no mar.

           Essa questão é relevante por que o trap feeding tem sido descrito na literatura acadêmica como uma tática de caça inovadora, recente - com "súbita" emergência no século XXI - e que está sendo culturalmente transmitida entre baleias rorquais. Dezenas de baleias rorquais [indivíduos] têm sido observadas desde 2011 adotando essa estratégia de caça, sem aparente observação científica desse comportamento especializado antes de 2011. É plausível que o trap feeding está sendo notado e ficando "mais frequente" nos últimos anos por causa simplesmente do aumento populacional das baleias rorquais nos oceanos.


REFERÊNCIAS

  1. McCarthy et al. (2023). Parallels for cetacean trap feeding and tread-water feeding in the historical record across two millennia. Marine Mammal Science, Volume 39, Issue 3, Pages 830-841. https://doi.org/10.1111/mms.13009
  2. Iwata et al. (2017). Tread-water feeding of Bryde’s whales. Current Biology, Volume 27, Issue 21, Pages R1154-R1155. https://doi.org/10.1016/j.cub.2017.09.045
  3. McMillan et al. (2018). The innovation and diffusion of “trap-feeding,” a novel humpback whale foraging strategy. Marine Mammal Science, Volume 35, Issue 3, Pages 779-796. https://doi.org/10.1111/mms.12557
  4. France, R. L. (2024). Antecedent description and depiction of the recently described cetacean behaviour of trap/tread-water feeding inferred from a nineteenth-century sighting of a ‘sea monster’ in the Gulf of Suez, Egypt. Natural History Sciences, Vol. 11, No. 1. https://doi.org/10.4081/nhs.2024.741