Existem marsupiais apenas na Austrália?
Figura 1. Gambá-de-Orelha-Branca (Didelphis albiventris), uma espécie silvestre de marsupial comum no território Brasileiro. |
Apesar de muitas pessoas associarem os marsupiais (clado Metatheria) com a Austrália e seu famosos cangurus, existem também muitos marsupiais nas Américas, e talvez os mais conhecidos sejam os gambás (gênero Didelphis) (1). Os filhotes recém-nascidos dos gambás, muito pequenos e subdesenvolvidos, logo migram para a bolsa típica dos marsupiais - localizada na região ventral e chamada de marsúpio - onde ficam ali sendo amamentados até 80 dias antes de saírem e ficarem mais um tempo sendo transportados no dorso da mãe.
Formando um grupo diverso na Laurásia (supercontinente no norte do planeta, que emergiu após a divisão da Pangeia) durante o Cretáceo Tardio, hoje existe um único grupo de marsupiais, o Marsupialia, o qual é taxonomicamente e morfologicamente diverso na Austrália, América do Sul e América Central. Temos atualmente >400 espécies descritas de marsupiais (~6% da diversidade de mamíferos modernos). Nas Américas, temos um total de >130 espécies descritas de marsupiais, constituindo cerca de 10% da diversidade de mamíferos terrestres na América do Sul e distribuídos em três ordens: Didelphimorphia, Paucituberculata e Microbiotheria. A maioria dessas espécies vivem em florestas tropicais e/ou subtropicais, possuem porte pequeno-a-médio, hábitos noturnos ou crepusculares, e são arborícolas.
É importante ressaltar que apenas os marsupiais de médio a grande porte na América do Sul carregam os filhotes no marsúpio, como os gambás (!) - esses últimos englobados pela ordem Didelphimorphia e família Didelphidae, a mais diversificada família de marsupiais viventes do Novo Mundo, ocorrendo do sul do Canadá à Patagônia Argentina. Os marsupiais da Ordem Didelphimorphia ocorrem em todo o território nacional e os representantes desse clado atuam na dispersão de sementes, polinização e servem de alimento para outros animais, contribuindo para o funcionamento do ecossistema em todos os estratos vegetais. Entre 55 e 60 espécies de didelfiídeos ocorrem no Brasil, sendo popularmente referidos como gambás, cuícas e catitas.
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> A palavra "gambá" é derivada do termo guaambá, que significa seio oco, saco vazio, como uma referência ao marsúpio. No Brasil o seu principal representante é a espécie Didelphis albiventris, o qual possui aproximadamente 23 cm de comprimento, cauda parcialmente glabra, e é plantígrado, sendo que o primeiro dígito do membro pélvico é desprovido de unha. Com importante papel ecológico, possuem hábito noturno, são onívoros e tendem a ter proles pequenas.
> Muitas pessoas no Brasil erroneamente acreditam que os gambás (família Didelphidae) têm a mesma habilidade que os cangambás da família Mephitidae de pulverizar um odor pungente insuportável quando atacado ou perturbado. A origem desse equívoco pode estar no fato de que, em português, o nome genérico para gambás e cangambás é o mesmo (gambá) e o mito de pulverização de mau cheiro foi reforçado no Brasil pelo personagem de desenho animado Pepé Le Pew (Warner Bros©) (Fig.2). E válido lembrar que a principal estratégia de defesa dos gambás é se fingir de morto. Ref.6-7
> Em 2020, pesquisadores Brasileiros reportaram que o gambá-de-orelha-preta (Didelphis aurita) é o responsável pela polinização de uma das plantas mais estranhas da flora Brasileira, reforçando a importância ecológica dos gambás nos biomas do país. Para quem estiver interessado em mais informações: Cientistas Brasileira finalmente descobriram quem poliniza essa estranha flor
> Registro fóssil do clado Metatheria é abundante na América do Norte no final do Cretáceo. É provável que os marsupiais foram extintos na América do Norte durante o evento de extinção do Cretáceo-Paleógeno (K-Pg). Após os marsupiais alcançarem a América do Sul nesse período, houve grande diversificação evolutiva na Amazônia dando origem à família Didelphidae.
(!) MARSÚPIO NÃO É REGRA
Essa é outra errônea crença popular. Nem todos os marsupiais possuem marsúpio. Podemos citar como exemplo o marsupial da espécie Marmosa demerarae, popularmente chamado aqui no Brasil de cuíca-branca. Como observado na Fig.3, as crias subdesenvolvidas da cuíca-branca ficam grudadas nas mamas da mãe (a cuíca-branca possui 7 mamas com uma mama central sempre presente), expostas ao ambiente devido à ausência de um marsúpio (onde tipicamente outros marsupiais migram após o parto). Existem significativas variações relativas ao número de mamas e à ausência ou presença de marsúpio entre os marsupiais. Todas as espécies do gênero Marmosa - e outros grupos próximo-relacionados (ex.: subgênero Micoureus) - são representadas por marsupiais sem bolsa (Ref.16).
O marsúpio ou bolsa fornece proteção física, química e contra predadores para os filhotes, além de mantê-los aquecidos e com suficiente umidade que favorece trocas gasosas através da pele. Recém-nascidos saem da abertura urogenital da fêmea e começam a se locomover agarrando nos pelos da mãe até a bolsa (Ref.17). Essa bolsa está ausente em vários gêneros de marsupiais: a maioria dos didelfídeos (ex.: Marmosa), todos os caenolestídeos vivos e alguns dasiurídeos não possuem bolsa ou exibem uma bolsa intermediária. Nos marsupiais sem bolsa, filhotes recém-nascidos e subdesenvolvidos ficam anexados aos mamilos da mãe no abdômen inferior - com anexação auxiliada por tecidos de suporte associados às tetas (ex.: músculo ilio marsupialis) (Ref.18).
Evidência filogenética aponta que o marsupial ancestral provavelmente não possuía bolsa ou tinha uma bolsa intermediária, com essa estrutura emergindo de forma independentemente múltiplas vezes durante a evolução dos marsupiais (Ref.19). O aumento do tamanho do corpo, o tamanho da ninhada pequena e a filogenia estão associados à presença de bolsas em marsupiais, com cada fator exibindo efeitos diferentes ou adicionais ao longo de clados diversos.
É curioso também apontar que a bolsa não é uma característica exclusiva das fêmeas de marsupiais ou com função exclusivamente reprodutiva. Emergiu de forma independente em alguns machos de marsupiais, como uma bolsa protetora do escroto (ex.: na cuíca-d'água, espécie Chironectes minimus, e nos notorictemorfos), em outras linhagens de vertebrados (ex.: anuros do gênero Gastrotheca, onde fêmeas exibem um tipo de bolsa nas costas, usada para carregar ovos) e em outros mamíferos como equidnas.
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- Castro et al. (2021). Amazonia as the Origin and Diversification Area of Didelphidae (Mammalia: Metatheria), and a Review of the Fossil Record of the Clade. Journal of Mammalian Evolution 28, 583–598. https://doi.org/10.1007/s10914-021-09548-7
- Beck et al. (2022). Craniodental Morphology and Phylogeny of Marsupials. BioOne, Bulletin of the American Museum of Natural History, 457(1):1-352. https://doi.org/10.1206/0003-0090.457.1.1
- https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/11605
- https://parqueecologicoimigrantes.org.br/pei-e-lar-de-gambas-cuicas-e-catitas/
- https://waita.org/blog-waita/2020/08/13/importancia-ecologica-dos-gambas
- Souza et al. (2012). The welfare of an unwanted guest in an urban environment: the case of the white-eared opossum (Didelphis albiventris). Animal Welfare, 21(2), 177–183. https://doi.org/10.7120/09627286.21.2.177
- HARA MOTTA, Mariana Carolina (2019). Percepción de estudiantes de la Universidad Federal de Integración Latinoamericana (UNILA) sobre zarigüeyas de orejas blancas (Didelphis albiventris), 56 páginas.
- https://animaldiversity.org/accounts/Mephitis_mephitis/
- https://www.ultimosrefugios.org.br/single-post/2019/06/26/voce-sabe-o-que-e-um-gamba-e-um-cangamba
- https://ipm.ucanr.edu/home-and-landscape/opossum/pest-notes/
- Morfologia da glândula mamária de gambás da espécie Didelphis sp associada ao modelo marsupial. (2006). Biota Neotropica, 6 (2). https://doi.org/10.1590/S1676-06032006000200014
- https://www.degruyter.com/document/doi/10.1515/mammalia-2021-0083/html
- https://ri.ufs.br/handle/riufs/10291
- Faria et al. (2019). Marsupiais do Brasil - Guia de identificação com base em caracteres morfológicos externos e cranianos, 1. ed, 84 p. [ISBN 978-85-53082-14-8]. Link do PDF
- Cavalcanti et al. (2013). Avaliação do risco de extinção da Jaritataca Conepatus semistriatus (Boddaert, 1785) no Brasil. Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade.
- Voss et al. (2020). A Revision of the Didelphid Marsupial Genus Marmosa Part 2. Species of the Rapposa Group (Subgenus Micoureus). Bulletin of the American Museum of Natural History, 439(1):1-62. https://doi.org/10.1206/0003-0090.439.1.1
- Gemmell et al. (2002). Birth in marsupials. Comparative Biochemistry and Physiology Part B: Biochemistry and Molecular Biology, Volume 131, Issue 4, Pages 621-630. https://doi.org/10.1016/S1096-4959(02)00016-7
- Edwards & Deakin (2013). The marsupial pouch: Implications for reproductive success and mammalian evolution. Australian Journal of Zoology 61, 41–47 Review. http://dx.doi.org/10.1071/ZO12088
- Yoshikawa, M. Milly (2022). Associação entre tamanho corporal e bolsa em marsupiais. UFMG (Dissertação de Mestrado). http://hdl.handle.net/1843/72736
- Barthowska et al. (2022). Postnatal and Adult Neurogenesis in Mammals, Including Marsupials. Cells 11(17), 2735. https://doi.org/10.3390/cells11172735