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O que é o Útero Didelfo?

Figura 1. Útero didelfo observado aqui em um exame de ultrassom 2D, com um feto em cada cavidade uterina na 32° semana de gestação. Ref.1

- Atualizado no dia 1 de maio de 2024 -

            Uma mulher de 35 anos de idade, com problema de infertilidade primária, foi diagnosticada com uma anomalia no ducto Mülleriano. Imagem por ressonância magnética (MRI) mostrou que a paciente possuía útero didelfo com dois úteros e dois cérvix, assim como ausência do rim esquerdo. Porém, apenas um cérvix foi identificado no exame pélvico. Para tratar a infertilidade, a paciente foi submetida a vários ciclos de hiperestimulação ovariana controlada e inseminação intrauterina através do único cérvix identificável. Eventualmente a paciente alcançou uma gravidez efetiva. Porém, na 8° semana de gestação, ultrassom revelou a presença de gêmeos dicavitários, ou seja, um feto situado em cada útero (Fig.1).

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           A gravidez progrediu sem significativos problemas, mas com o gêmeo no útero à direita desenvolvendo restrição de crescimento na 37° semana. Devido à restrição de crescimento, parto foi recomendado na 38-39° semana. Um ultrassom multiplanar 3D detalhado foi realizado e confirmou a presença de dois cérvix na paciente; porém, o canal cervical esquerdo parecia ser incompleto sem qualquer comunicação com a vagina. Nesse sentido, parto vaginal tornou-se arriscado, escolhendo-se o parto via cesárea. Perda de sangue foi de 1,6 L - a maior parte atribuída ao sangramento associado com as histerotomias laterais (incisão nos úteros) -, mas sem necessidade de transfusão sanguínea.

> Para fotos da remoção cirúrgica das estruturas uterinas durante a cesárea, acesse aqui.

          Um dos gêmeos exibia uma massa corporal de 3195 g, enquanto aquele que desenvolveu restrição de crescimento acumulou uma massa corporal de 2705 g (60% para a idade gestacional). Dois dias após o parto, a mãe com os gêmeos foram liberados do hospital.

          O caso foi descrito e reportado em 2019 no periódico Case Reports in Women's Health (Ref.1).


   ÚTERO DIDELFO

          O útero é o maior órgão do trato genital feminino e tem função associada ao recebimento do embrião e do seu desenvolvimento até o momento do nascimento (1).

(1) Leitura recomendada: Qual é o tamanho do canal vaginal e do útero?

          As malformações uterinas são secundárias a falhas de desenvolvimento, reabsorção ou fusão dos ductos Müllerianos, ocorrendo em ~4-5% das mulheres férteis e em até 8% das mulheres inférteis (Ref.2-3). Essas malformações ocorrem durante o desenvolvimento fetal e têm origem na 6° semana de gestação, na qual há a invaginação e fusão do epitélo de revestimento celômico, que formam os ductos Müllerianos laterais, também chamados de paramesonéfricos (Ref.4). No desenvolvimento normal, os ductos müllerianos crescem no sentido caudal e penetram a pelve, sofrendo uma fusão dos ductos direito e esquerdo na linha média. As porções mais cefálicas dos ductos dão origem às tubas uterinas, enquanto as porções caudais se fundem e promovem a formação do útero e do terço superior da vagina. Posteriormente inicia-se o processo de apoptose (autodestruição celular), a fim de formar a cavidade uterina e a cavidade vaginal. Qualquer pertubação da embriogênese associada ao desenvolvimento, fusão e apoptose dos ductos Müllerianos geram anomalias do trato genital feminino.

          Quando ocorre falha completa da fusão dos ductos Müllerianos (8-10% dos casos de malformação uterina) entre a 12° e 16° semana de gestação, temos a anomalia conhecida como útero didelfo - previamente conhecida como 'útero duplo completo com duplo colo'. Nessa condição, cada útero recebe apenas uma tuba uterina, e temos a formação de dois colos uterinos, dois corpos uterinos e geralmente uma vagina dupla. Em caso de fusão parcial do fundo uterino com o colo, temos uma condição mais comum de malformação uterina (~25% dos casos) conhecida como útero bicorno. No útero bicorno, temos dois fundos uterinos (cornos) com diferentes graus de fusão, simétricos ou não, unidos ao nível do istmo e, portanto, apresentando frequentemente um único colo (Fig.2). 


Figura 2. Esquemas das falhas de fusão completa (útero didelfo) e parcial (útero bicorno) dos dutos de Müller. Geralmente existe uma vagina duplicada no útero didelfo, separada internamente por um septo vaginal longitudinal. Ref.5

          Estima-se uma prevalência de útero didelfo de 0,03% até 0,1% na população feminina, e em 75% dos casos forma-se um septo longitudinal localizado nos dois terços proximais da vagina ou duas vaginas são formadas (Ref.9-12). A sua causa não é bem estabelecida, porém, fatores como hipóxia fetal, mutações genéticas e fatores ambientais como exposição a drogas teratogênicas, radiação e infecções congênitas podem potencialmente alterar a embriogênese uterina. Nesse sentido, duplicações em outros órgãos (ex.: vulva, bexiga, ânus e uretra) ou mesmo ausência de órgãos podem ser também observadas co-ocorrendo com o útero didelfo.

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> O septo vaginal pode ser visto como uma estrutura fibrosa dividindo a vagina em duas. São os famosos casos de "mulheres com duas vaginas". Geralmente a condição está associada a anomalias uterinas, e um septo longitudinal na vagina (vagina duplicada) ocorre comumente junto com útero septado ou útero Didelfo. Porém, o septo vaginal pode também muito raramente ocorrer sem outras anomalias no trato reprodutivo. Pacientes com septo vaginal podem ter  sangramento persistente, rasgo septal durante o uso de tampão ou atividade sexual com coito, e/ou dispareunia. É possível ocorrer obstrução unilateral de um dos canais vaginais duplicados, entre outras potenciais complicações. Ref.13

Foto de um septo vaginal observado na abertura da vagina: clique aqui

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          O quadro clínico é variável e seu curso é assintomático na maioria dos casos, contribuindo para o diagnóstico feito tipicamente na idade reprodutiva (através de técnicas de imagem, incluindo ultrassom, HSG e MRI) (Fig.3). Dor pélvica cíclica, dismenorreia (dor na menstruação) e aumento do volume abdominal, se houver obstrução, podem ser compatíveis com útero didelfo. Queixas como amenorreia, polimenorreia, menometrorragia e dispareunia podem estar presentes na anamnese ginecológica da paciente. 


Figura 3. Útero didelfo revelado por ultrassom no modo 3D. Ref.3

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           A condição de útero didelfo aumenta o risco de aborto espontâneo, parto prematuro e de um reduzido número de nascimentos vivos comparado a um útero normal. Parto prematuro ocorre em até 33% das mulheres com a condição. Útero didelfo com gestação gêmea dicavitária  - um gêmeo em cada uma das cavidades uterinas - é extremamente raro, sendo reportada uma incidência populacional de 1 para cada 1 milhão (Ref.6). É relevante mencionar que mesmo gêmeos dicavitários podem ser paridos pela via vaginal caso as estruturas cervicais e vaginal não estejam comprometidas; cesárea não é uma regra nesse cenário (Ref.1). Existe inclusive um caso reportado em 2003 onde um dos gêmeos dicavitários foi removido via cesárea com 25 semanas de gestação e o outro foi mantido no outro útero até a 35° semana e parido pela via vaginal  (Ref.7).


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Post et al. (2019). Twin gestation in a uterus didelphys with only one functional cervix: A case report. Case Reports in Women's Health, Volume 22, e00118. https://doi.org/10.1016/j.crwh.2019.e00118
  2. Slavchev et al. (2020). Pregnancy and Childbirth in Uterus Didelphys: A Report of Three Cases. Medicina, 56(4), 198. https://doi.org/10.3390/medicina56040198
  3. Ćwiertnia et al. (2022). The Impact of Uterus Didelphys on Fertility and Pregnancy. International Journal of Environmental Research and Public Health, 19(17), 10571. https://doi.org/10.3390/ijerph191710571
  4. Costa et al. (2018). Útero didelfo: relato de caso - uma anomalia de fusão dos ductos müllerianos. Revista de Medicina e Saúde de Brasília, vol.7, n.3. https://portalrevistas.ucb.br/index.php/rmsbr/article/view/9686
  5. Ferreira et al. (2007). Ultra-sonografia tridimensional em ginecologia: malformações uterinas. Radiologia Brasileira, 40(2). https://doi.org/10.1590/S0100-39842007000200013
  6. King et al. (2020). Uterine didelphys with dicavitary twin gestation: A case report. Case Reports in Women's Health, Volume 27, e00199. https://doi.org/10.1016/j.crwh.2020.e00199
  7. Nohara et al. (2003). Twin pregnancy in each half of a uterus didelphys with a delivery interval of 66 days. BJOG: An International Journal of Obstetrics and Gynaecology, Volume 110, Issue 3, Pages 331-332. https://doi.org/10.1016/S1470-0328(02)01173-4
  8. Yayna et al. (2023). A rare case report of uterine didelphys, in which one uterus carried a pregnancy while the other prolapsed, with a successful pregnancy outcome resulting in an alive-term delivery. SAGE Open Medical Case Reports. https://doi.org/10.1177/2050313X231159505 
  9. Chen et al. (2022). Uterus didelphys complicated with endometrial carcinoma A case report of uterus didelphys with endometrial carcinoma. Medicine 101(18):p e29183. https://doi.org/10.1097/MD.0000000000029183
  10. Dorji et al. (2022). Uterus didelphys with double vagina diagnosed during third cesarean section: A case report. SAGE Open Medical Case Reports, Volume 10: 1–4. https://doi.org/10.1177/2050313X211072967
  11. Matylevich et al. (2022). High-grade cervical dysplasia in a woman with uterine didelphys: A case report. Gynecologic Oncology Reports, Volume 42, 101027. https://doi.org/10.1016/j.gore.2022.101027
  12. Yayna et al. (2023). A rare case report of uterine didelphys, in which one uterus carried a pregnancy while the other prolapsed, with a successful pregnancy outcome resulting in an alive-term delivery. SAGE Open Medical Case Reports. https://doi.org/10.1177/2050313X231159505
  13. Hakim et al. (2024). Longitudinal vaginal septum with normal uterus and cervix – A case report. International Journal of Surgery Case Reports, Volume 117, 109536. https://doi.org/10.1016/j.ijscr.2024.109536
  14. Pratama & Wicaksono (2024). Pregnancy with uterine didelphys and history of recurrent pregnancy loss: Case report. Bali Medical Journal, Volume 13, Number 1: 154-156. E-ISSN: 2302-2914.