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Qual o segredo da poderosa coluna vertebral desses estranhos musaranhos?

Figura 1. Musaranho da espécie Scutisorex thori.

 
          Musaranhos são mamíferos representando a maior família do clado Soricomorpha, a Soricidae, a qual engloba >300 espécies descritas (Ref.1). Devido ao pequeno tamanho desses animais (a vasta maioria não ultrapassa 13 cm de comprimento e 40 gramas de massa) são facilmente despercebidos nos ambiente natural, e várias novas espécies continuam sendo descobertas e descritas nos últimos anos (Ref.2-3). A menor espécie de musaranho conhecida - e de mamíferos no geral - é o musaranho-pigmeu (Suncus etruscus), com 2-5 cm de comprimento e menos de 3 gramas de massa corporal (1). Entre os musaranhos de maior porte, temos notavelmente o gênero Scutisorex, com duas espécies descritas (S. somereni e S. thori) exibindo comprimento de até 15 cm e massa corporal de até 115 g (mas tipicamente entre 30 e 80 g). 

(1) Leitura recomendadaRegistrado pela primeira vez uma falsa viúva-negra predando um musaranho

          Mas os musaranhos Scutisorex não se destacam apenas pelo tamanho. Esses animais possuem uma coluna vertebral única e altamente modificada, tornando-os os mais fortes vertebrados conhecidos, pelo menos em termos de resistência a cargas.

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          A morfologia espinhal única do musaranho-herói do Leste Africano (Scutisorex somereni) foi primeiro descrita em 1917, representando a mais modificada coluna vertebral conhecida (Ref.4). Em 2013, uma segunda espécie do gênero Scutisorex foi descrita no periódico Biology Letters (Ref.5). Grande parte das vértebras dessas duas espécie são estranhamente interligadas, com tubérculos ósseos na massiva estrutura espinhal entrelaçados (Fig.3), fortificando imensamente a região lombar e caracterizando o único tipo de articulação "osso-sobre-osso" conhecida entre mamíferos. Esses processos de entrelaçamento ósseo tornam a coluna vertebral desses musaranhos 4 vezes mais robusta (relativa à massa corporal) do que qualquer outro vertebrado conhecido.

 

Figura 2. Espécime de Scutisorex somereni empalhado junto ao seu esqueleto (partes craniana e vertebral), exposto no Museu Zoológico de Zurique, Suíça. A espécie foi primeiro descoberta na África equatorial em 1910. Estudos genéticos estimam uma divergência evolutiva há ~4 milhões de anos entre o S. somereni e o S. thori, e há ~14 milhões de anos em relação a outros musaranhos da subfamília Crocidurinae.

Figura 3. Visão lateral da (a) região lombar e (b) costelas das espécies (i) Crocidura oliveira (uma típica espécie de musaranho servindo como comparação), (ii) Scutisorex somereni e (iii) Scutisorex thori. Stanley et al., 2013

           No gênero Scutisorex, a maior parte das vértebras dorsais, incluindo pelo menos metade das vértebras torácicas e todas as vértebras lombares, possuem processos laterais dorso-ventralmente expandidos cujas faces cranianas e caudais são cobertas em tubérculos (ou protuberâncias) similares a dedos. Esses tubérculos ósseos articulam com aqueles de vértebras vizinhas, de tal modo que a espinha dorsal forma uma densa coluna de processos ósseos estreitamente entrelaçados (Fig.4). Essa conformação torna a coluna vertebral desses musaranhos 5 vezes mais resiliente a torção axial em comparação com a coluna vertebral de um típico mamífero e reduz dramaticamente a compressão ao longo do corpo pós-craniano - se comportando como uma barra muito rígida (Ref.6).  

 

Figura 4. Visão dorsal (acima) e lateral (abaixo)das vértebras lombar e torácica para três espécies de musaranhos. Além do anômalo entrelaçamento entre as vértebras, o gênero Scutisorex também possui mais vértebras lombares do que qualquer outro musaranho; a maioria dos musaranhos possuem 5 vértebras lombares, enquanto o S. thori possui 8 e o S. somereni possui 10-12. Smith & Angielczyk, 2020

            Para dimensionar a força da coluna vertebral desses musaranhos, é reportado que homens adultos com ~70 kg ficam de pé sobres espécimes de Scutisorex (massa corporal de ~50-70 g) por vários minutos, com os animais caminhando normalmente após serem liberados, aparentemente sem danos (Ref.5)! Isso é comparável a um adulto humano suportar o peso de um ônibus espacial (Ref.7). Essa incrível força levou o povo Mangbetu do Congo a usá-los como talismãs, acreditando que usar partes do animal como acessório de vestuário garante 'invencibilidade' (incluindo imunidade contra feridas) e bravura  - isso também rendeu o nome popular do S. somereni, "musaranho-herói" (Ref.8). O nome da espécie S. thori é uma homenagem ao deus Thor da mitologia Nórdica, uma divindade associada a força física. 

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          A evolução da coluna vertebral desses bizarros musaranhos parece ter sido dramática, caracterizando possivelmente um evento de equilíbrio pontuado. De fato, nenhuma estrutura vertebral intermediária é conhecida em outras espécies, extintas ou não - apesar de evidências sugerirem que a morfologia do S. thori é relativamente intermediária entre as espécies C. goliath e S. somereni (Ref.6). Nesse sentido, a função adaptativa da poderosa coluna vertebral é ainda enigmática e alvo de especulações. Sob carga compressiva, a morfologia vertebral do Scutisorex é adaptada para uma curvatura amplamente restrita ao plano sagital (flexão) (Ref.6).

          É comumente especulado que esses musaranhos usam a super-coluna para acessar alimento em locais tipicamente não-acessíveis a outros animais. O Scutisorex parece se alimentar predominantemente de minhocas (Oligochaeta) e também de larvas de insetos diversos. Todas essas presas são tipicamente encontradas em grande concentração sob itens que fornecem proteção física contra predação, como pesados troncos e pedras. Com o torso reforçado e musculatura associada, é possível que o Scutisorex tenha maior facilidade de alcançar grande fartura de minhocas e vermes e ao mesmo tempo prevenindo sérios danos no corpo.

          Porém, nenhum experimento tem sido conduzido para testar essa e outras hipóteses, e a questão sobre a real funcionalidade in vivo da exótica coluna vertebral do Scutisorex continua em aberto (Ref.9). É possível também que a estrutura vertebral no Scutisorex tenha evoluído como efeito colateral de outros traços adaptativos, ou seja, no final das contas pode não ter fins adaptativos.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://animaldiversity.org/accounts/Soricomorpha/ 
  2. https://www.nature.com/articles/s41598-021-88859-4 
  3. https://doi.org/10.25225/jvb.20064 
  4. Cullinane et al. (1998). The functional and biomechanical modifications of the spine of Scutisorex somereni, the hero shrew: skeletal scaling relationships. Journal of Zoology, 244(3), 447–452. https://doi.org/10.1111/j.1469-7998.1998.tb00049.x
  5. Stanley et al. (2013). A new hero emerges: another exceptional mammalian spine and its potential adaptive significance. Biology Letters, 9(5): 20130486. https://doi.org/10.1098%2Frsbl.2013.0486
  6. Smith & Angielczyk (2020). Deciphering an extreme morphology: bone microarchitecture of the hero shrew backbone (Soricidae: Scutisorex). Proceedings of the Royal Society B, Volume 287, Issue 1926. https://doi.org/10.1098/rspb.2020.0457 
  7. https://www.nature.com/articles/nature.2013.13440
  8. https://animaldiversity.org/accounts/Scutisorex_somereni/
  9. Smith & Angielczyk (2022). A Shrewd Inspection of Vertebral Regionalization in Large Shrews (Soricidae: Crocidurinae), Integrative Organismal Biology, Volume 4, Issue 1, obac006. https://doi.org/10.1093/iob/obac006