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Iguanas marinhas param de bater o coração para escapar de tubarões?


            Circula pelas redes sociais e em sites diversos a alegação que iguanas marinhas, com o objetivo de "evitar serem ouvidas por tubarões", podem interromper os batimentos cardíacos por até 45 minutos. Porém, essa informação não possui qualquer suporte científico e, de fato, sites ou postagens com tal alegação nunca apontam um estudo de referência ou qualquer tipo de referência acadêmica. O que as iguanas marinhas conseguem fazer é reduzir dramaticamente os batimentos cardíacos durante prolongados mergulhos, mas não para escapar de predadores e, sim, como uma resposta fisiológica a baixas temperaturas e escassez de oxigênio - e essa habilidade não é única entre os lagartos. E importante: tubarões não são predadores relevantes para as iguanas marinhas, muito menos "o principal predador desses répteis" como também falsamente alegado.  

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          O grande sucesso adaptativo dos répteis nos ambientes terrestres levou menos de 8% das ~6 mil espécies modernas hoje conhecidas e não-extintas a explorarem primariamente ambientes aquáticos. De fato, apenas quatro atuais linhagens de répteis são consideradas marinhas: serpentes marinhas (Hydrophiinae), tartarugas marinhas (Chelonioidea), cobras marinhas do gênero Laticauda e iguanas marinhas (espécie Amblyrhynchus cristatus). As iguanas marinhas atualmente representam a única espécie viva de lagarto marinho e a única iguana capaz de nadar. Assim como outras iguanas, essa espécie é herbívora, e se alimenta de algas marinhas - primariamente da espécie Ulva lobata (Ref.1) - ou nas áreas costeiras intertidais ou em profundidades de até ~18 metros. Endêmicas de Galápagos, a grande habilidade de nado desses répteis permitiu que colonizassem todas as ilhas do arquipélago - algumas iguanas já foram observadas cobrindo distâncias de até 800 metros a nado (Ref.2).

 

Fig.1. As cores das iguanas marinhas podem variar de um tom bem escuro até colorações amarelas, azuis e vermelhas dependendo da população/região. Em geral, as cores são escuras para permitir um rápido aquecimento sob exposição solar após longos mergulhos em águas frias mais profundas (são animais ectotérmicos e a temperatura corporal depende da temperatura ambiente). E, como observado na foto, as iguanas marinhas podem estabelecer relações mutualísticas com certos animais (ex.: aves) que se alimentam de parasitas sobre o corpo desses répteis (ex.: carrapatos) (Ref.3). Foto: Eduzoocation.com

 

Fig.2. As longas e poderosas garras desses répteis permitem que se agarrem às pedras oceânicas e previnem serem arrastadas pelas correntes marítimas enquanto se alimentam. Os afiados e numerosos dentes facilitam a raspagem de algas no solo oceânico. A poderosa cauda é responsável por impulsionar o nado. Foto: @jmteakell/Twitter

  

Fig.3. Na foto, iguana marinha na Ilha de San Cristobal, no Arquipélago de Galápagos. Iguanas marinhas exibem uma cabeça larga, focinho "arredondado" e pescoço curto, características que facilitam a alimentação no solo oceânico rochoso e a locomoção na água. Foto: Collete Adams

          Com comprimento corporal variando de 60 cm até ~1,7 metro, e massa corporal de 0,5-1,5 kg, existem seis subespécies de iguanas marinhas hoje reconhecidas: A.c ventustissimus, A.c trillmichi, A.c hassi, A.c mertensi, A.c godzilla e A.c cristatus. A espécie parece ter divergido das iguanas terrestres do gênero Conolophus há aproximadamente 8,25 milhões de anos, e a divergência entre as atuais subespécies parece ser inferior a 50 mil anos (Ref.4). Interessantemente, apesar do distinto nicho ecológico em relação às outras iguanas terrestres (família Iguanidae), as iguanas marinhas passaram por uma transição evolucionária com poucas modificações morfológicas e fisiológicas para a exploração do ambiente marinho. Por exemplo, a capacidade aeróbica, dependência térmica, respostas circulatórias ao mergulho, glândulas nasais de secreção salina (1), capacidade anaeróbica e limitada estamina são quantitativamente similares àqueles dos iguanídeos terrestres. Além disso, a cauda e os pés das iguanas marinhas também são muito similares àqueles das iguanas terrestres.

 

Fig.4. Na foto, subespécie Amblyrhynchus cristatus godzilla, cujo nome é uma homenagem ao famoso personagem-monstro Japonês Godzilla. Como as outras iguanas marinhas, essa subsespécie possui glândulas ligadas às narinas que excretam o excesso de sais (especialmente cloreto de sódio/NaCl) consumido durante a alimentação no mar, e com uma taxa de secreção salina recorde entre os reptilianos (adaptação quantitativa ao nicho ecológico marinho). Existe significativa variação de tamanho, cores e massa corporal (até 4X) entre as subespécies de iguanas marinhas.

   

Fig.5. Na foto, iguana marinha se alimentando de algas no oceano. Uma iguana marinha adulta de 1 kg geralmente consome 8,6 gramas de massa seca (ou ~37 gramas de massa fresca) de alimento por dia (Ref.1). Foto: Sandro Lonardi/National Geographic

(1Leitura recomendadaPor que humanos não podem beber água marinha para hidratação? 

          Análise comparativa mais recente sugere que a grande diferença entre as iguanas marinhas e as iguanas terrestres é a velocidade de corrida em terra (Ref.5). As iguanas marinhas são desajeitadas e bem mais lentas (velocidade máxima de ~3,3 m/s) do que as iguanas terrestres, aparentemente uma troca para adaptações biomecânicas e de locomoção visando otimizar o nado. É sugerido, nesse sentido, que outras iguanas não invadiram os ambientes marinhos devido a prejuízos que seriam causados na locomoção terrestre, os quais podem reduzir significativamente as chances de sobrevivência considerando a presença de muitos potenciais predadores de médio-grande porte (ex.: mamíferos carnívoros). Devido ao isolamento de Galápagos e ausência histórica de grandes predadores ameaçando as iguanas, estas puderam evoluir para explorar o mar mesmo com efeitos deletérios para a locomoção terrestre.

           Outro importante fator que potencialmente facilitou a invasão dos mares pelas iguanas em Galápagos é a biogeografia única do arquipélago, com a posição equatorial e mínima variação climática ao longo das estações facilitando a recuperação e a manutenção de uma temperatura ideal para os iguanídeos entre os mergulhos nas águas frias e profundas. 

          Iguanas marinhas frequentemente são submetidas a prolongados mergulhos e, nesse sentido, enfrentam significativos desafios térmicos. Quando estão em terra firme - tipicamente sob intensa radiação solar e temperatura do ar frequentemente excedendo 40°C -, a temperatura preferida desses répteis é entre 35 e 37°C, mas eles se alimentam no mar cuja temperatura varia em uma faixa de 22-27°C. Em alguns casos, durante a transição do ambiente terrestre para o ambiente aquático, as iguanas marinhas podem experienciar uma redução de temperatura corporal de 20°C ou mais devido a presença de correntes marítimas transportando águas para Galápagos tão frias quanto 14°C (Ref.4). Aliás, apenas os adultos nadam e mergulham, porque a maior razão volume/superfície corporal dos indivíduos de grande porte freia substancialmente o fluxo de calor para fora do corpo (evitando uma redução muito rápida na temperatura corporal), algo que não ocorre nas iguanas juvenis de menor porte (Ref.6). 

          Nesse último ponto temos, então, temos a questão da taxa cardíaca. Durante os prolongados mergulhos em águas frias - que podem exceder 30 minutos -, as iguanas respondem com várias mudanças fisiológicas no sentido de reduzir o metabolismo energético, limitar o consumo de oxigênio e reduzir ao máximo taxa de redução da temperatura corporal, e isso inclui reduzir ao máximo a taxa cardíaca. Sim, as iguanas dramaticamente reduzem a taxa de batimentos cardíacos nos mergulhos, alcançando um valor mínimo entre 10 e 30 minutos após o início da submersão (2), mas não para "escapar de tubarões" e provavelmente espelhando o que ocorre com outros lagartos expostos a baixas temperaturas. E, importante, durante esse processo os batimentos cardíacos não param; evidência experimental sugere que a taxa cardíaca mínima em água com temperatura de 26°C é em torno de 7 batidas/minuto (Fig.3).

 

Fig.6. Taxas cardíacas determinadas para iguanas durante experimentos com simulação de mergulho em água a temperatura de 26°C para (A) uma iguana marinha com massa corporal de 652 g e (B) para uma iguana marinha com massa corporal de 1360 g. Como são animais ectotérmicos, a temperatura corporal das iguanas marinhas acaba eventualmente se igualando à temperatura ambiente, implicando em dramáticas quedas de temperatura corporal durante os mergulhos. Bartholomew & Lasiewski, 1965 

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(2) Geralmente os mergulhos das iguanas marinhas duram 5-10 minutos no ambiente natural, e em águas relativamente rasas (1,5-5 metro). Mas, às vezes, esses répteis descem a profundidades de 12 metros ou mais e permanecem submersos por ~30 minutos. É importante realçar que essa alta tolerância à anoxia é comum entre os lagartos terrestres: iguanídeos terrestres são capazes de sobreviver sob uma atmosfera de puro nitrogênio por mais de 1 hora (Ref.8) (3). Essa tolerância resulta de uma combinação de baixas taxas metabólicas e alta tolerância ao acúmulo de ácido lático.

(3) Leitura recomendada: Sensação aguda de sufocamento é devido à redução de oxigênio no sangue?

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            Quanto à alegação de que "tubarões são o principal predador das iguanas marinhas", essa é também falsa, especialmente ao sugerir que esses répteis enfrentam forte pressão predatória desses peixes. As iguanas marinhas evoluíram na ausência de grandes predadores naturais, e as populações adultas desses animais são reguladas por eventos cíclicos de escassez de alimento (durante o El Niño) e de abundância de alimento (durante a La Niña) (Ref.9-11). Aliás, o único predador natural das iguanas marinhas é o falcão-de-Galápagos (Buteo galapagoensis), o qual geralmente é incapaz de caçar adultos saudáveis (Ref.9-10). Nas últimas décadas, a introdução de predadores nas ilhas vêm ameaçando esses répteis, como cães selvagens. De qualquer forma, isso não que dizer que tubarões não consumam ocasionalmente esses répteis, e não é incomum encontrar restos de iguanas marinhas no estômago de tubarões na região de Galápagos (Ref.8).

 

Fig.7. Na foto, um falcão-da-Groenlândia predando uma iguana marinha juvenil. Essas aves não são capazes de controlar as populações de iguanas marinhas. Durante eventos do El Niño, correntes de água fria e rica em nutrientes cessam e águas mais quentes do Golfo do Panamá fluem em direção a Galápagos. As algas vermelhas e verdes consumidas pelas iguanas marinhas (gêneros GelidiumCentroseras e Ulva) desaparecem quando a temperatura da água fica muito alta e são substituídas por algas marrons, estas as quais não são facilmente digeridas pelas bactérias no intestino desses lagartos, e podem ser inclusive tóxicas. Isso resulta em elevada mortalidade por fome, capaz de reduzir em até 90% a população desses animais. Como resposta adaptativa, muitas iguanas marinhas conseguem reduzir dramaticamente o tamanho corporal esperando condições climáticas mais favoráveis. Foto: OTlibrary.com

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CONSERVAÇÃO DA ESPÉCIE: Hoje, as iguanas marinhas possuem o status Vulnerável de conservação de acordo com a classificação da IUCN. Subespécies específicas estão com um status de conservação mais preocupante. Principais ameaças a esses répteis é a destruição do habitat, poluição, doenças, mudanças climáticas e a introdução de predadores exóticos nas ilhas de Galápagos (ex.: cães e gatos selvagens, ratos e porcos). População total das iguanas marinhas em Galápagos é ainda incerta, com estimativas tão baixas quanto 33 mil indivíduos após fortes eventos do El Niño e tão altas quanto 350 mil indivíduos após vários anos de condições favoráveis durante eventos da La Niña (e menos de 210 mil indivíduos maduros). (Ref.12-14)

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Nagy & Shoemaker (1984). Field Energetics and Food Consumption of the Galápagos Marine Iguana, Amblyrhynchus cristatus. Physiological and Biochemical Zoology, Volume 57, Number 3. https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/physzool.57.3.30163716
  2. Fields et al. (2008). Function of muscle-type lactate dehydrogenase and citrate synthase of the Galápagos marine iguana, Amblyrhynchus cristatus, in relation to temperature. Comparative Biochemistry and Physiology Part B: Biochemistry and Molecular Biology, 150(1), 62–73. https://doi.org/10.1016/j.cbpb.2008.01.008
  3. Scheibel et al. (2022). Phylogeography and Prevalence of Hemoparasites (Apicomplexa: Eucoccidiorida) in Galápagos Marine Iguanas, Amblyrhynchus cristatus (Reptilia: Iguanidae). Animals, 12(9), 1142. https://doi.org/10.3390/ani12091142
  4. Chiari et al. (2016). Ecological and evolutionary influences on body size and shape in the Galápagos marine iguana (Amblyrhynchus cristatus). Oecologia, 181(3), 885–894. https://doi.org/10.1007/s00442-016-3618-1
  5. Kate et al. (2021). Morphological and performance modifications in the world’s only marine lizard, the Galápagos marine iguana, Amblyrhynchus cristatus, Biological Journal of the Linnean Society, Volume 133, Issue 1, Pages 68–80. https://doi.org/10.1093/biolinnean/blab002
  6. Haldeman, Andrew and Hedican, Schuyler, "Salt Excretion Rates in the Galápagos Marine Iguana (Amblyrhynchus cristatus): Is there a Relationship between Body Size and Salt Excretion Rate?" (2020). Celebrating Scholarship and Creativity Day. 117. https://digitalcommons.csbsju.edu/ur_cscday/117
  7. Bartholomew & Lasiewski (1965). Heating and Cooling Rates, Heart Rate and Simulated Diving in the Galapagos Marine Iguana. Comparative Biochemistry and Physiology, Vol. 16, pp. 573-582.
  8. Dawson et al. (1977). A Reappraisal of the Aquatic Specializations of the Galapagos Marine Iguana (Amblyrhynchus cristatus). Evolution, 31(4), 891. https://doi.org/10.2307/2407452
  9. Wikelski & Nelson (2004). Conservation of Galápagos Marine Iguanas (Amblyrhynchus cristatus). Iguana, Vol. 11, No. 4. https://journals.ku.edu/iguana/article/view/17148
  10. Vitousek et al. (2010). Island tameness: An altered cardiovascular stress response in Galápagos marine iguanas. Physiology & Behavior, Volume 99, Issue 4, Pages 544-548. https://doi.org/10.1016/j.physbeh.2010.01.016
  11. MacLeod & Steinfartz (2016). The conservation status of the Galápagos marine iguanas, Amblyrhynchus cristatus: a molecular perspective, Amphibia-Reptilia, 37(1), 91-109. https://doi.org/10.1163/15685381-00003035
  12. https://repository.sandiegozoo.org/handle/20.500.12634/592
  13. https://repository.sandiegozoo.org/handle/20.500.12634/588
  14. https://repository.sandiegozoo.org/handle/20.500.12634/586
  15. https://www.edzoocating.com/kids-cave/animals/reptiles/marine-iguana
  16. https://www.worldwildlife.org/species/marine-iguana