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Qual é a relação entre catapora e a Síndrome de Ramsay Hunt?

          Ontem, em um vídeo transmitido pelo Instagram, o cantor Justin Bieber, de 28 anos de idade, revelou que estava enfrentando uma condição chamada de síndrome de Ramsay Hunt, uma complicação causada tipicamente pelo vírus da varicela (catapora). "Como vocês podem ver, esse olho não está piscando. Eu não posso sorrir neste lado do meu rosto... Estou com total paralisia nesse lado do meu rosto," disse o cantor no vídeo. "É de um vírus que ataca o nervo no meu ouvido e meus nervos faciais, e causou a paralisia no meu rosto. É algo bem sério, como vocês podem ver."

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   CATAPORA (VARICELA)

          O herpesvírus humano-3 (HHV-3), também conhecido como vírus da varicela-zóster (VVZ) da subfamília Alphaherpesvirinae, gênero Varicellovirus, apresenta como principal característica a capacidade de estabelecer latência. A partícula intacta do VVZ mede de 180-200 nm de diâmetro, com genoma linear de DNA dupla fita de 125 kb, que está contido em um cerne de 75 nm dentro de um nucleocapsídio. Assim como outros herpesvírus, o VVZ tem regiões únicas longas e curtas, uma região de repetição terminal (TR) e outra invertida (IR), dentro das quais se encontram os genes duplicados, além das regiões internas de repetições R1 a R51. 



            O VVZ pode causar varicela (catapora) durante a infecção primária, estabelecendo posteriormente uma infecção latente. A doença é adquirida quando o vírus entra em contato com as mucosas do trato respiratório superior ou conjuntivas. A transmissão ocorre por contato direto com pessoas com varicela ou com herpes zóster, através da inalação de partículas virais (aerossóis) ou contato direto com o conteúdo vesicular das lesões. Também pode ocorrer infecção do feto, por via transplacentária, quando a mãe adquire a doença durante a gestação. A taxa de transmissão é alta, particularmente após contato domiciliar, em creches e enfermarias pediátricas. O período de incubação geralmente varia entre 10 e 21 dias.

          Em pessoas previamente saudáveis suscetíveis à varicela, nos dois ou três primeiros dias após a exposição, o vírus replica nos linfonodos regionais e a viremia primária ocorre quatro a seis dias após a exposição. O vírus passa a replicar no fígado, baço e outros tecidos; a viremia secundária surge 10 a 14 dias após a infecção e coincide com o aparecimento do exantema vesicular característico da doença. Na maioria das pessoas imunocompetentes, a replicação viral cessa dentro de 72 horas após o surgimento do exantema, entretanto, em imunocomprometidos, a replicação pode persistir por tempo prolongado.

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> Exantema é uma erupção geralmente avermelhada que aparece na pele devido à dilatação dos vasos sanguíneos ou inflamação. Sua causa pode ser infecciosa, alérgica, tóxica, física, etc. Os exantemas podem se manifestar desde manchas planas até pequenas vesículas ou bolhas.

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          O período prodrômico é curto ou ausente e consiste de febre (80% dos casos) e mal-estar, um ou dois dias antes do início das lesões cutâneas. O exantema característico - o qual se manifesta em 96% dos casos - tem distribuição central e consiste de lesões pruginosas, que surgem em grupos, e evoluem rapidamente de máculas para pápulas, vesículas e crostas. Geralmente, na infecção primária, o número de vesículas varia entre 250 e 500, as lesões são encontradas em diversos estágios, durante a fase eruptiva, e só deixam cicatrizes quando existe infecção bacteriana secundária. Em pessoas imunocompetentes, o exantema dura, em média, cinco a seis dias, mas em imunocomprometidos, é comum surgirem novas lesões da varicela após a primeira semana, devido à replicação viral mais prolongada.

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> Pródromo refere-se ao conjunto de sintomas que antecede a manifestação ou o aparecimento de uma doença.

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           A doença acomete apenas humanos e alguns primatas superiores. Com distribuição global, a maioria dos casos ocorre na infância. Em crianças previamente saudáveis, a varicela é aguda, autolimitada e raramente causa a morte. Entretanto, a morbidade é significativa e pode estar associada a diversas complicações. Proporcionalmente, as complicações são mais comuns em adultos e pessoas que apresentam patologias de base, porém, em números absolutos, a maioria das complicações, hospitalizações e óbitos ocorrem em crianças saudáveis.

          O VVZ tem grande afinidade por tecidos de origem ectodérmica, como pele e tecido nervoso, e, como todos os vírus herpes, tem a capacidade de ficar latente no organismo após infecção primária, podendo reativar em uma ou mais ocasiões.

           Em diversas situações em que ocorre um declínio da imunidade celular específica contra o VVZ pode ocorrer reativação da replicação viral, com possibilidade de manifestação clínica por meio do herpes-zoster. No zóster, as lesões cutâneas são do mesmo tipo encontrado na varicela, porém são mais localizadas, seguindo o trajeto de um ou mais nervos.

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           As vacinas contra a varicela contêm vírus vivos atenuados, geralmente derivados da cepa Oka/Merck. Quando aplicadas em duas doses com diferença de três meses, apresentam uma eficácia entre 70 a 90% contra a infecção e 95 a 98% de proteção contra as formas graves, sendo bastante seguras e bem toleradas por crianças saudáveis (Ref.4). Em crianças entre 12 meses e 13 de idade, recomenda-se uma dose única. Eventos adversos, tais como herpes-zoster pós-vacinal, são raros e ocorrem na maioria dos casos em imunocomprometidos. A imunização ativa através da vacina é a melhor forma de prevenção contra a varicela.


   SÍNDROME DE RAMSAY HUNT

          A Síndrome de Hunt Ramsay (ou zóster auricular) - descrita pela primeira vez em 1907 pelo médico James Ramsay Hunt - é uma complicação rara do herpes-zóster em que ocorre reativação de uma infecção latente pelo vírus varicela-zóster no gânglio geniculado. Geralmente, estão presentes vesículas auriculares e sintomas como otalgia e paralisia facial periférica. Além disso, mais raramente pode haver rash ao redor da boca. Pacientes com imunodeficiência apresentam maior susceptibilidade para essa condição, mas fatores diversos podem levar à reativação viral, incluindo quadros de depressão e de estresse excessivo. Taxa de incidência é em torno de 5 para cada 100 mil pessoas por ano (Ref.5). Pode também acometer crianças tão novas quanto 1 ano de idade (Ref.6).

           Uma das complicações da síndrome é a paralisia facial periférica (PFP). A PFP corresponde à paralisia flácida da musculatura da mímica facial de toda a hemiface, resultado da disfunção do VII nervo craniano, o nervo facial, o que pode ocorrer desde seu núcleo protuberancial até sua junção neuromuscular. Constituindo a lesão periférica mais comum dos nervos cranianos, a PFP pode ser primária – também conhecida como paralisia de Bell – ou secundária a múltiplos fatores, como traumatismo cranioencefálico, tumores e as infecções virais, causa muito frequente. 


          Entre 4,5% e 90% dos casos de PFP são causados pelo vírus da varicela (Ref.7).

          O vírus adentra o espaço intracraniano a partir da orelha interna, invadindo o nervo facial e o vestibulococlear e ascendendo ao núcleo do nervo facial, vestibular e núcleo posterior e anterior do nervo coclear. Manifestação clínica da síndrome é frequente em 60% a 90% dos casos, pela presença de otalgia, erupção vesicular na orelha, podendo acometer o pavilhão auricular, meato acústico externo e membrana do tímpano; e, devido a anastomose entre os nervos corda do tímpano e lingual, tais erupções também podem ser observadas na mucosa oral e língua; além de dormência facial, alteração do paladar, zumbido, perda auditiva, tontura, nistagmo e paralisia facial periférica. A apresentação clássica é dada pela tríade otalgia, vesículas herpéticas e paralisia facial. Entre raras e sérias complicações da síndrome de Ramsay Hunt, podemos citar quadros de trombose venosa cerebral (Ref.8), infarto do tronco cerebral, vasculopatia da artéria vertebral (Ref.9), e polineuropatia craniana (Ref.10).

          O diagnóstico precoce é de grande importância, pois diferentemente da paralisia de Bell, a incidência é alta de sequelas motoras e sensitivas na síndrome de Ramsay Hunt e com baixas taxas de recuperação espontânea, além da repercussão estética e funcional que podem afetar a qualidade de vida do paciente acometido. Em torno de 70-80% dos afetados pela síndrome de Ramsay Hunt reganham função facial normal, comparado com >90% dos afetados pela paralisa de Bell (Ref.5, 7). É reportado que entre os pacientes com a síndrome, apenas 10% dos pacientes com paralisia facial total recuperarão a função do nervo facial completa e somente 66% dos pacientes com paralisia incompleta recuperarão totalmente a função facial (Ref.11). Sincinesias (contrações musculares involuntárias que ocorrem com o movimento voluntário de um grupo muscular diferente) acometem até 40% daqueles que tiveram a síndrome de Ramsay Hunt, comparado com apenas ~16% daqueles que tiveram paralisia de Bell (Ref.5).

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           O tratamento medicamentoso é realizado com corticosteroides e antivirais e é de grande importância seu início dentro das primeiras 72 horas. Também é recomendada terapia não medicamentosa, com fisioterapia, acupuntura e massagens terapêuticas. 

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> Paralisia facial periférica aguda ocorre anualmente em 30 a cada 100 mil indivíduos na população geral. A paralisia de Bell e a síndrome de Ramsay Hunt são as principais causas de paralisia facial periférica, e essas doenças respondem por cerca de 70% dos casos (Ref.12). Além do vírus da varicela, outro possível fator causal para ambas as condições é a reativação do vírus da herpes simples 1. 

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Costa et al. (2016). Vírus da varicela-zoster: identificação dos genótipos em casos de varicela e herpes-zoster nos Municípios de Ananindeua, Belém e Marituba, Estado do Pará, Brasil. Revista Pan-Amazônica de Saúde, V.7, n.3. http://dx.doi.org/10.5123/s2176-62232016000300004
  2. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5141/tde-02092005-103209/publico/varicelaintroducao.pdf
  3. https://www.medicina.ufmg.br/observaped/exantema-doenca-exantematica/
  4. Bricks et al. (2006). Vacinas contra varicela e vacina quádrupla viral. Jornal de Pediatria, 82. https://doi.org/10.1590/S0021-75572006000400012
  5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK557409/
  6. Fader et al. (2022). Where are the vesicles? A case report of Ramsay Hunt syndrome. Malaysian family physician : the official journal of the Academy of Family Physicians of Malaysia, 17(1), 90–93. https://doi.org/10.51866/cr1351
  7. Almeida et al. (2020). Síndrome de Ramsay Hunt: uma revisão sistemática. Revista Eletrônica Acervo Saúde, Vol.Sup.n.55, e3899. https://doi.org/10.25248/reas.e3899.2020
  8. Gaudencio et al. (2022). Cerebral venous thrombosis: A rare complication of Ramsay Hunt syndrome (case report and literature review). Thrombosis Research, Volume 213, P125-127. https://doi.org/10.1016/j.thromres.2022.03.016
  9. Sun et al. (2022). Brainstem Infarction and Vertebral Artery Vasculopathy After Ramsay Hunt Syndrome. Neurology, 98 (21). https://doi.org/10.1212/WNL.0000000000200522
  10. Ananthapadmanabhan et al. (2022). Ramsay Hunt syndrome with multiple cranial neuropathy: a literature review. European Archives of Oto-Rhino-Laryngology 279, 2239–2244. https://doi.org/10.1007/s00405-021-07136-2
  11. Borges et al. (2022). Relato de caso: Síndrome de Ramsay Hunt. Research, Society and Development, v. 11, n.1, e25611124670. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v11i1.24670 
  12. Fujiwara et al. (2022). Intratympanic corticosteroid for Bell's palsy and Ramsay Hunt syndrome: Systematic review and meta-analysis. Auris Nasus Larynx, Volume 49, Issue 4, Pages 599-605. https://doi.org/10.1016/j.anl.2021.12.005