Piolho pubiano pode infestar outras partes do corpo além da região genital?
Uma menina de 6 anos foi apresentada ao hospital reclamando de uma coceira e vermelhidão no olho esquerdo por 2 meses, associados com um leve inchaço na região das pálpebras. Esses sintomas não responderam a um tratamento tópico com antibiótico iniciado 2 semanas antes da consulta. Históricos médico e ocular não trouxeram nada de notável. Acuidade visual era de 1.0 em ambos os olhos. Motilidade ocular e exames pupilares mostraram-se normais. Exame das pálpebras foi notável por margens inchadas e espessas secreções manchadas de sangue na região ciliar do olho esquerdo. Exame de lâmpada de fenda com alta amplificação revelou a presença de pequenas lêndeas ovais translúcidas na base dos cílios (Fig.1) e insetos acinzentados similares a caranguejos agarrados nos fios (Fig.2). Havia também moderada injeção conjuntival no olho esquerdo. O olho direito estava normal. Exame de fundo estava normal em ambos os olhos.
Um total de 19 piolhos e 30 lêndeas foram mecanicamente removidas - usando uma pinça fina - da pálpebra superior, enquanto 5 piolhos e 5 lêndeas foram removidas da pálpebra inferior. Quando o piolho estava agarrado firmemente à raiz do cílio, o pelo associado acabava sendo também arrancado no processo. Alguns adultos e lêndeas foram enviados para exame parasitológico, confirmando serem pertencentes à espécie Phthirus pubis e resultando no diagnóstico de fitiríase palpebral.
Aplicação duas vezes ao dia de gelatina de petróleo (vaselina) nos cílios por 10 dias foi prescrita. Tobramicina e dexametasona via gotejamento nos olhos foi prescrita por 10 dias para tratar a injeção conjuntival associada. Desinfecção de roupas e de tecidos da cama da paciente com aquecimento de 50°C por 30 minutos foi recomendada. Exame oftalmológico de membros familiares não revelou nenhum sinal de parasitas. Seus pais negaram ter infecção com P. pubis nos pelos axilares, púbicos ou corporais. Histórico social não revelou risco de abuso infantil.
A paciente foi educada sobre as formas de transmissão e métodos de prevenção relativos à infecção por P. pubis. Após seguir o tratamento recomendado, todos os sintomas oculares foram resolvidos.
O caso foi descrito e reportado em 2018 no periódico Case Reports in Ophthalmology (Ref.1).
PIOLHO PUBIANO
Os mais antigos fósseis conhecidos de piolhos, infestando dinossauros terópodes, datam em quase 100 milhões de anos atrás (!). Piolhos humanos têm origem evolutiva de piolhos da espécie Phthiraptera anoplura, parasita que se diversificou em mamíferos há 75 milhões de anos e divergiu posteriormente entre os primatas superiores. Nesse processo de divergência, deu origem ao piolho de chimpanzé (Pediculus schaeffi) - ancestral dos piolhos humanos de cabeça (Pe. humanus capitis) e de corpo (Pe. humanus corporis) - e ao piolho de gorila (Phtirus gorillae), este último finalmente evoluindo para o piolho púbico humano (Pt. pubis).
(!) Leitura recomendada: No Cretáceo, dinossauros terópodes tinham penas e muitos piolhos
O Phthirus pubis, também conhecido como piolho pubiano ou chato, é um inseto hematófago e hospedeiro específico do ser humano. O adulto possui seis pernas e 0,8-3 mm de comprimento. Os dois pares traseiros de pernas terminam com garras anatomicamente adaptadas para agarrar com grande firmeza pelos grossos e espaçados (particularmente pubianos), e fibras de tecidos. Anexam-se na base de pelos em áreas específicas do corpo com densa cobertura capilar, onde sugam sangue periodicamente e se movem poucos milímetros diariamente.
Embora o piolho pubiano habite preferencialmente a região da púbis (área genital) - caracterizando a pediculose pubiana -, o fato de possuir garras serrilhadas permite-lhe transitar por todo o corpo humano, explicando o seu aparecimento em setores distantes da área púbica num mesmo indivíduo, tais como axilas, barba, escalpo e mesmo cílios. É inclusive reportado um aumento de casos de infecção do piolho pubiano no escalpo devido à crescente tendência de raspagem completa de pelos nas regiões axilares e pubianas (Ref.4). Isso inclusive justifica o uso de tratamentos sistêmicos (ex.: ivermectina oral) mesmo quando piolhos e lêndeas são localizados em apenas uma parte do corpo (Ref.5-6).
Transmissão entre humanos geralmente ocorre através de contato sexual (!), embora ocasionalmente também por roupas de uso pessoal, lençóis de cama e mesmo toalhas. A probabilidade de se adquirir uma pediculose pubiana após coito com alguém infestado é de aproximadamente 95%. Seu ciclo de vida compreende cinco estágios: ovo, três fases de ninfa e o período adulto; o ovo é colocado dentro de um casulo que adere firmemente a um pelo e que irá eclodir entre 5 a 10 dias, evoluindo então para a ninfa; esta emerge do casulo e deverá fazer uma refeição de sangue em no máximo 24 horas para não morrer. Durante os 8 a 9 dias seguintes evoluirá em três estágios, atingindo então a fase adulta; aproximadamente 10 horas após atingi-la, macho e fêmea copulam, ato que continuará a acontecer até o fim de sua (curta) existência; nesse período o Ph. pubis requer frequentes ingestões de sangue (~5 vezes ao dia).
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(!) Exemplo de caso: Um homem de 59 anos de idade apresentou-se ao departamento de dermatologia com um histórico de 4 semanas de coceira severa na região púbica. Dezesseis semanas antes da apresentação, o paciente teve contato sexual com um novo parceiro. No exame físico, lêndeas e piolhos pubianos (Phthirus pubis) foram encontrados (figura e vídeo abaixo).
Tratamento com lindano tópico foi administrado. O paciente foi aconselhado a lavar suas roupas e lençóis de cama em água quente e evitar contato sexual até efetiva eliminação das lêndeas e piolhos pubianos. Uma semana após o final do tratamento, a coceira foi aliviada. Ref.9
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A fêmea adulta deposita 3-10 ovos por dia até morrer, e fixa até 30 ovos nos fios de cabelo nesse período. Todo o ciclo vital dura em torno de 3-4 semanas. O Ph. pubis morre dentro de 24-48 horas longe do hospedeiro ou se a umidade excede 40% e a temperatura excede 50°C. As condições ótimas de sobrevivência são níveis de umidade de 70-90% e temperatura de 29-32°C, enquanto os ovos (lêndeas) podem sobreviver a mais baixas temperaturas por até 16 dias.
A incidência de piolho pubiano na população humana pode variar de 0,3% até 4,6%, enquanto a prevalência média entre adultos é estimada ser de 2%. Populações em densas áreas demográficas, durante guerras ou desastres naturais, ou com baixa sanitização são mais vulneráveis aos piolhos em geral.
FITIRÍASE PALPEBRAL
Infestação de Phthirus pubis nas pálpebras é comumente mal diagnosticada, devido ao fato dos sintomas poderem ser confundidos com outras causas de blefaroconjuntivite e pela sua infrequência. Além disso, devido às estruturas transparentes dos piolhos adultos e da localização destes na raiz dos cílios, visualização só se torna clara através de amplificação biomicroscópica.
O sintoma primário mais comum da fitiríase palpebral é prurido (coceira) na pálpebra afetada, o qual pode ser explicado pela hipersensitividade cutânea ou sensibilização alérgica à saliva do piolho. Outros sintomas menos frequentes incluem dor, sensação de ardência, sensação de areia do olho, conjuntivite folicular, queratite marginal, queratoconjuntivite, linfadenopatia pré-auricular, celulite palpebral, madarose (perda de cílios e, às vezes, de pelos das sobrancelhas) e excreções encrostadas a partir dos cílios. Coceira e escoriações podem causar infecções bacterianas secundárias, enquanto em infestações crônicas, liquenificação e mudanças pigmentares podem ocorrer. Lesões eritematosas pontuadas podem também aparecer por causa das mordidas dos piolhos, além de depósitos amarronzadas devido à matéria fecal dos parasitas.
Como infestação pelo piolho pubiano ocorre primariamente via relação sexual, diagnóstico de fitiríase palpebral em crianças precisa levantar suspeita de possível abuso sexual, e detecção da fonte de infecção, portanto, é mandatória. Por outro lado, a infestação pode ocorrer de forma indireta, como contato manual prévio na área afetada e talvez através de compartilhamento de roupas e lençóis que estiveram em contato com alguém infectado, e geralmente ocorre em regiões incomuns em crianças devido à falta ou escassez de pelos pubianos visíveis na infância. Fitiríase palpebral já foi reportada em um bebê de 21 dias de idade (Ref.2).
A técnica mais simples para o tratamento de fitiríase palpebral é a remoção direta dos piolhos e lêndeas dos cílios através de pinças finas. Tratamentos alternativos e/ou complementares incluem vaselina, óleo da árvore do chá, shampoo com 1% de permetrina, óleo com 1% de óxido de mercúrio, fluoresceína 20%, e shampoo com 1% de malation. Ivermectina oral também é comumente usado como agente terapêutico sistêmico. A vaselina, quando aplicada, sufoca os piolhos adultos e os filhotes quando eclodem dos ovos. Tratamento físico mais exótico também é reportado, incluindo crioterapia e laser de argônio.
Egípcios antigos eram reportados de terem usado gordura de hipopótamo para asfixiar os piolhos (similar à vaselina) e pentes finos para a remoção mecânica de lêndeas e parasitas adultos (Ref.3). Heródoto (século V a.C.), o historiador Grego, registrou que sacerdotes Egípcios raspavam todos os pelos no corpo, incluindo o cabelo, para reduzir a infestação por piolhos de diferentes espécies.
Em 2021, na China, pesquisadores reportaram o primeiro caso na literatura acadêmica de coinfecção nas pálpebras com o piolho Ph. pubis e com ácaros parasitas do gênero Demodex, em uma mulher de 48 anos de idade (Ref.7). Irritação e coceira no olho direito afetado continuou mesmo após eliminação dos piolhos devido à persistência dos ácaros parasitas.
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- Dohvoma et al. (2018). Phthirus pubis Infestation of the Eyelids Presenting as Chronic Blepharoconjunctivitis in a 6-Year-Old Girl: A Case Report. Case Reports in Ophthalmology, 9:30-34. https://doi.org/10.1159/000485738
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK459226/
- Patel et al. (2021). A clinical review and history of pubic lice. Clinical and Experimental Dermatology. https://doi.org/10.1111/ced.14666
- Carpanese et al. (2021). What’s under the veil? Dermatol Pract Concept. 2021; 11(3):e2021042. https://doi.org/10.5826/dpc.1103a42
- Nofal et al. (2021). Treatment of childhood phthiriasis palpebrarum with systemic ivermectin. JAAD Case Reports, Volume 14, P75-75. https://doi.org/10.1016/j.jdcr.2021.05.034
- Fernandes et al. (2001). Tratamento de fitiríase palpebral com ivermectina. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, 64:157-8. https://doi.org/10.1590/S0004-27492001000200013
- Huo et al. (2021). First case of Phthirus pubis and Demodex co-infestation of the eyelids: a case report. BMC Ophthalmology 21, 122. https://doi.org/10.1186/s12886-021-01875-w
- Li et al. (2018). Dermoscopy of pediculosis pubis. JAAD Case Reports, Volume 4, Issue 2, P168-169. https://doi.org/10.1016/j.jdcr.2017.08.011
- Zhao & Luo (2024). Pubic Lice. New England of Medicine, 390:e6. https://doi.org/10.1056/NEJMicm2303713