Treinamento de cheiro para a perda de olfato causada pela COVID-19, não corticosteroides
PERDA DE OLFATO E COVID-19
Um reduzido sentido, alteração ou perda (anosmia) de olfato é um dos mais comuns sintomas da COVID-19, junto com febre, tosse e falta de ar. Especialistas alertam que perda aguda de olfato e/ou de paladar (ageusia) sem bloqueio nasal deve levantar suspeita de infecção pelo novo coronavírus, mesmo na ausência de outros sintomas (Ref.2). De fato, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) eventualmente atualizou suas guias e recomendações para incluir a anosmia e a ageusia como sintomas comuns e característicos da COVID-19 (Ref.3), mesmo posicionamento adotado pela Academia Brasileira de Otorrinolaringologia (Ref.5).
Em um estudo publicado em janeiro deste ano no periódico Journal of Internal Medicine (Ref.6), pesquisadores analisaram 2581 pacientes de 18 hospitais Europeus e encontraram que 85,9% dos casos leves da doença reportaram disfunção olfatória, 4,5% nos casos moderados e 6,9% nos casos severos-a-críticos. A duração média da disfunção olfatória auto-reportada pelos pacientes foi de 21,6 dias, mas quase 25% dos pacientes reportaram que não recuperaram o sentido de olfato 60 dias após perdê-lo.
Em avaliações clínicas objetivas, disfunção olfatória foi identificada em 54,7% dos casos leves de COVID-19 e em 36,6% dos casos moderados-a-críticos. Após 60 dias e 6 meses, 15,3% e 4,7% desses pacientes não haviam ainda recuperado o sentido de olfato, respectivamente, com base em avaliação clítica objetiva.
Já um estudo publicado no periódico Chemical Senses (Ref.7) concluiu que a perda de olfato é o melhor sinal de COVID-19 entre indivíduos com sintomas respiratórios recentes. A conclusão baseou-se na análise de questionários englobando mais de 4,5 mil participantes de 23 diferentes nacionalidades. Em torno de 50% dos participantes reportaram a recuperação do olfato dentro de 40 dias após a emergência dos sintomas respiratórios.
Em uma recente revisão sistemática da literatura acadêmica publicada no periódico American Journal of Otolaryngology (Ref.8), pesquisadores concluíram que a emergência da anosmia e da ageusia na COVID-19 ocorre 4 a 5 dias após outros sintomas, e dura tipicamente de 7 a 14 dias - apesar de substancial variação nesse último quesito entre os estudos analisados (5 dias a 4 semanas). Eles também encontraram que a prevalência de anosmia e/ou de ageusia é superior a 50% em pacientes com COVID-19.
No geral, as evidências acumuladas até o momento sugerem que alterações no paladar e no olfato causadas pela COVID-19 são muito mais prevalentes em pacientes com COVID-19 leve e não-hospitalizados e nas populações Ocidentais (Ref.9).
Relativo à causa da perda ou disfunção do olfato e da ageusia, existem um número de hipóteses, mas nada ainda conclusivo. Uma hipótese propõe que o SARS-CoV-2 causa danos diretos nos receptores olfatórios e gustativos. No caso de disfunções no olfato, esses danos virais podem ocorrer no bulbo olfatório ou no nervo olfatório, incluindo através de células de suporte a neurônios sensoriais chamadas de 'células sustentaculares', as quais são ricas em receptores ACE2 usados pelo SARS-CoV-2 para a infecção celular. Porém, outras hipóteses apontam evidências de danos indiretos, causados por respostas imunes, especialmente associados à interleucina-6 (IL-6), uma citocina pró-inflamatória. É possível também que danos diretos ou indiretos no cérebro podem estar envolvidos com a anosmia e a ageusia. Em casos onde a anosmia persiste por meses, cientistas sugerem que a infecção pelo SARS-CoV-2 pode ter matado os neurônios sensoriais olfatórios. Todas essas hipóteses podem ser corretas e complementares.
Em um estudo mais recente sobre a questão, publicado no periódico Science Translational Medicine (Ref.12), pesquisadores conduziram uma análise molecular, celular e virológica visando o neuroepitélio olfatório de sete pacientes com COVID-19 manifestando perda aguda de olfato. A análise em humanos foi também complementada com estudos laboratoriais com hamsters infectados com o SARS-CoV-2. Os resultados indicaram que o neuroepitélio olfatório pode ser um dos principais locais de infecção pelo SARS-CoV-2, afetando múltiplos tipos de células (neurônios sensoriais olfatórios, células de suporte e células imunes) e envolvendo inflamação nesse tecido. Nos experimentos com hamsters, a infecção induziu anosmia e ageusia agudas, persistindo com a persistência do vírus no epitélio olfatório e no bulbo olfatório.
No estudo, os pesquisadores também analisaram amostras da mucosa olfatória de pacientes manifestando persistência de longo prazo de anosmia associada à COVID-19, revelando a presença de transcritos virais e de células infectadas pelo SARS-CoV-2, junto com inflamação prolongada. Isso fortemente sugere que a persistência do SARS-CoV-2 e associada inflamação no neuroepitélio olfatório podem ser os responsáveis por prolongados ou reincidentes sintomas da COVID-19, como perda de olfato.
O estudo, nesse sentido, demonstrou inesperadamente que o vírus ainda pode persistir ativo na parte de trás das cavidades nasais, no epitélio olfatório, por vários meses. Teste negativo de PCR realizado via coleta de amostra nasofaríngea, portanto, não é uma garantia de que o corpo se livrou do vírus. Os autores sugeriram uma série de cronológicos eventos levando à anosmia:
1) Cílios carregados por neurônios sensoriais são perdidos pós-infecção viral. Esses cílios permitem que os neurônios sensoriais recebam moléculas odoríferas;
2) Presença do vírus nos neurônios sensoriais;
3) Disrupção de integridade do epitélio olfatório (órgão sensorial) ligado a apoptose (morte celular). O epitélio é organizado em lamelas regulares, as quais são desestruturadas pela infecção viral;
4) Disseminação do vírus no bulbo olfatório, o qual é a primeira estação cerebral para transmissão de sinais no sistema olfatório;
5) Presença de inflamação e de viral em várias regiões do cérebro.
Com a deterioração do órgão sensorial na parte de trás das cavidades nasais por causa do ataque viral, ocorre então perda do olfato. O SARS-CoV-2 infecta não apenas os neurônios sensoriais, mas também o nervo olfatório e os centros do nervo olfatório no cérebro. E uma vez que o vírus entra no bulbo olfatório, acaba se espalhando para outras estruturas nervosas, onde induz uma forte resposta imune-inflamatória.
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IMPORTANTE: Indivíduos com anosmia e/ou ageusia podem ficar vulneráveis a sérias periculosidades, como alimentos estragados ou início de incêndio, por incapacidade de sentir cheiros ou gostos de alerta no ambiente ou na comida. Atenção nesse sentido deve ser redobrada, especialmente em termos de alimentação.
ATUALIZAÇÃO (03/07/21): Estudo publicado no periódico International Journal of Infectious Diseases (Ref.13) encontrou uma alta incidência (30%) de redução de gosto e de olfato em indivíduos com COVID-19 leve persistindo por longo período (>90 dias). Mulheres mostraram-se mais suscetíveis a um reduzido sentido de gosto e de olfato. Um segundo estudo publicado no JAMA Network (Ref.14), analisando quase 100 pacientes, encontrou que ~2% deles persistiram com a perda de olfato (anosmia) por mais de 1 ano. Em até 8 meses, ~96% recuperaram o sentido, e, em até 4 meses, ~45%. Os achados do estudo sugeriram que anosmia na COVID-19 parece ser causada por inflamação periférica.
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TREINANDO O OLFATO
Apesar de muita variabilidade nos reportes acadêmicos, cerca de 1 em cada 5 pessoas que experienciam perda de olfato devido à COVID-19 reportam que a função do sentido não têm retornado ao normal mesmo após 8 semanas da emergência dos sintomas da infecção viral, e em muitas a disfunção olfatória pode persistir por meses. Nesse sentido, muitos médicos têm prescrito corticoesteroides - uma classe de medicamentos anti-inflamatórios - para ajudar na recuperação do olfato. Essa possível ajuda estaria ligada a uma modulação da função dos neurônios associados aos receptores olfatórios através de efeitos sobre a enzima olfatória Na-K-ATPase. Porém, existem efeitos colaterais bem estabelecidos para esses fármacos, incluindo retenção de fluídos, pressão sanguínea alta e problemas com mudanças de humor e de comportamento.
Em um estudo de revisão sistemática e meta-análise publicado esta semana no periódico International Forum of Allergy and Rhinology (Ref.10), os pesquisadores encontraram muito pouca evidência de que o uso sistêmico de corticoesteroides irá ajudar com a perda de olfato causada pela COVID-19, e que o uso desses medicamentos não deveria ser prescrito para esse fim. Benefícios desses medicamentos para a perda de olfato podem estar associados com outras doenças concomitantes, como sinusite crônica, mas não estritamente com a COVID-19.
Ao invés de corticoesteroides, os pesquisadores recomendaram que os pacientes com persistente perda de olfato pós-COVID-19 tentem treinar o olfato ('treinamento de cheiro'). Geralmente, esse treino envolve cheirar pelo menos 4 diferentes odores/essências prescritas duas vezes ao dia todos dias por vários meses. O objetivo é ajudar na recuperação do sentido de olfato através de neuroplasticidade, ou seja, da habilidade do cérebro de reorganizar-se para compensar um mudança ou lesão causando disfunção.
Os pesquisadores também reforçaram que a maioria das pessoas que experienciam anosmia como resultado da COVID-19 irão reganhar o sentido de olfato espontaneamente, com 90% das pessoas alcançando completa recuperação dentro de 6 meses. Eles também lembraram que não existe evidência conclusiva de que o treinamento do olfato possui maior eficácia do que simplesmente esperar pela volta espontânea do olfato no caso de COVID-19. Por outro lado, o treinamento de olfato é a única linha terapêutica disponível para a anosmia causada por fatores diversos suportada por robusta evidência.
Esse estudo de revisão foi corroborado por um estudo clínico prospectivo e randomizado publicado este mês no periódico American Journal of Otolaryngology (Ref.11), analisando 100 pacientes com COVID-19 e anosmia. Os pacientes foram divididos em dois grupos: um grupo (50 pacientes) recebendo spray nasal de furoado de mometasona (corticoesteroide) e um grupo (50 pacientes) recebendo apenas treinamento de cheiro. Em ambos os grupos foi observada melhora significativa das funções olfatórias, mas nenhuma diferença significativa no nível de melhora entre os dois grupos (pontuação de cheiro, duração da anosmia e taxas de recuperação).
O treinamento de cheiro adotado por esse estudo clínico envolveu cheirar três odores: rosa (flor), limão e dente de alho por 20 segundos cada, duas vezes ao dia, durante 3 semanas.
CONCLUSÃO
Atualmente, não existe evidência de que nenhum tipo de tratamento sistêmico com corticoesteroide possa ajudar na recuperação da perda de olfato causada pela COVID-19. Existe maior potencial terapêutico com a aplicação tópica (ex.: spray) de corticoesteroide para esse fim, porém evidência recente aponta que essa via terapêutica não é superior ao treinamento de cheiro, este último simples de ser realizado, com baixo custo e sem efeitos colaterais. Especialistas fortemente recomendam que o treino com cheiros seja a primeira linha de tratamento.
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- https://www.nature.com/articles/d41586-021-00055-6
- https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1532338220301883
- https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/symptoms-testing/symptoms.html
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7909207/
- http://sbccp.org.br/anosmia-hiposmia-e-ageusia-sintomas-na-infeccao-por-covid-19/
- https://onlinelibrary.wiley.com/journal/13652796
- https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33367502/
- https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0196070920305834
- https://gut.bmj.com/content/70/4/806.full
- https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/alr.22788
- https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0196070920305780
- https://stm.sciencemag.org/content/early/2021/04/30/scitranslmed.abf8396
- https://www.ijidonline.com/article/S1201-9712(21)00434-3/fulltext
- https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2781319