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Tungíase é causada por qual parasita?


           Uma menina de 10 anos de idade sem outros problemas de saúde foi apresentada à clínica de cuidados primários com um histórico de 10 dias de múltiplas pápulas coçando bastante nas solas e nos dedos dos seus pés. As lesões tinham um ponto negro no centro e eram bastante dolorosas. Duas semanas prévias, a família - residente do Rio de Janeiro - tinha viajado para uma área rural no Brasil. Durante esse período, a paciente tinha brincado em um curral de porcos sem usar um calçado. Pulgas da espécie Tunga penetrans - um ectoparasita encontrado comumente em regiões tropicais e subtropicais do mundo - foram removidas de múltiplas lesões, e o diagnóstico de tungíase foi feito. 


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          Felizmente, a paciente tinha previamente recebido todas as vacinas recomendadas contra o tétano. Tratamento incluiu a remoção cirúrgica das pulgas e cuidado das feridas locais. Após o tratamento, houve completa remissão das lesões, sem complicações subsequentes. O caso foi reportado e descrito no periódico New England Journal of Medicine (Ref.1).


   TUNGÍASE

          A tungíase, popularmente conhecida como bicho-de-pé, pulga de bicho ou pulga de porco, é uma doença parasítica negligenciada causada pela penetração de pulgas fêmeas da espécie Tunga penetrans na epiderme de seus hospedeiros, os quais incluem humanos e diversos animais endotérmicos (mamíferos e aves no caso). As pulgas fêmeas, após penetração permanente na epiderme do hospedeiro, desenvolvem uma notável hipertrofia até alcançar um tamanho em torno de 1 cm, expelindo centenas de ovos no ambiente durante um período de duas a três semanas.

          A T. penetrans é a menor das espécies de pulgas conhecidas com apenas 1 mm de comprimento (Fig.1). Ambos, macho e fêmea, se alimentam de sangue, mas eventualmente apenas a fêmea penetra de forma permanente na pele do seu hospedeiro e passa pelo processo de hipertrofia para a produção e liberação de ovos. Após a expulsão dos ovos, a lesão associada regride, e após cerca de 3 semanas da penetração, as pulgas morrem e eventualmente são expulsas da epiderme pelos mecanismos de reparação da pele.



          O desenvolvimento da T. penetrans na epiderme humana é geralmente dividido em cinco estágios. No estágio I, a pulga fica em statu penetrandi (30 minutos a várias horas), e um ponto avermelhado com cerca de 1 mm aparece. No estágio II, a hipertrofia começa e o parasita se torna mais óbvio na pele, com o crescimento de um nódulo esbranquiçado no local da lesão (um a dois dias após a penetração). O cone protuberante na parte traseira da pulga, a abertura anal-genital, aparece como um ponto preto central na lesão, com esta cercada por um eritema. No estágio III, a hipertrofia é máxima e se torna macroscopicamente visível: duas a três semanas após a penetração (Fig.2). Uma mancha redonda esbranquiçada emerge cercando o ponto preto, acompanhada por hiperqueratose e descamação da pele ao redor. Expulsão de ovos e de fezes ocorrem tipicamente nesse estágio.


          As lesões são geralmente doloridas e produzem a sensação de corpos estranhos se espalhando sob a pele. No estágio IV, uma crosta preta cobre a lesão com o parasita morto (três a cinco semanas após a penetração). Uma cicatriz residual no estrato córneo (camada mais externa da pele) é característica do estágio V (seis semanas a vários meses após a penetração). Tipicamente, a T. penetrans infecta áreas associadas aos dedos dos pés, o calcanhar e as solas. No entanto, podem também ser encontradas em quase todas as partes do corpo, como nas mãos, cotovelos, ombros, pescoço, nádegas e região genital. 

          Nas áreas endêmicas, os indivíduos afetados podem apresentar dezenas de parasitas, em diferentes estágios de desenvolvimento, e severas infecções com centenas desses insetos não são raras. Nessa condição, são comuns reação inflamatória pruriginosa e dolorida, dificuldades de postura e locomoção (claudicação), deformidades, até necrose óssea e tendinosa e, inclusive, perda das unhas e dos dedos dos pés. Além disso, os orifícios deixados no corpo dos hospedeiros tornam-se passíveis de infecções secundárias por agentes oportunistas, como Clostridium tetani, causador do tétano, e Paracoccidiodes brasiliensis, causador das blastomicose. Nesse sentido, em indivíduos não-vacinados, a tungíase pode levar ao tétano.

          A infestação desses parasitas está associada com comunidades com baixos recursos econômicos no Caribe, América do Sul e África. Menções escritas da tungíase datam desde a colonização Espanhola e Portuguesa das Américas, no século XVI.

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          A retirada cirúrgica da pulga é considerada a principal forma de tratamento da tungíase. A terapia-padrão consiste na remoção da pulga com uma agulha esterilizada, seguida da aplicação tópica de antibiótico. Entretanto, os cuidados com os indivíduos infestados, frequentemente, não são realizados por equipe médica. A retirada de T. penetrans em crianças é feita quase sempre pelos pais, não por profissionais de saúde, implicando em sérios riscos desnecessários pela falta de instrumentação e habilidade manuais adequadas. Em áreas mais pobres, serviços de saúde podem também não ser acessíveis às famílias. Nesse último caso, a extração segura das pulgas não é um procedimento tão viável nas comunidades altamente afetadas, nas quais a taxa de ataque pode ser superior a dez pulgas por indivíduo, diariamente.

            Opções medicamentosas para o tratamento da tungíase são muito limitadas, dando-se frequentemente preferência para o uso da ivermectina (oral ou tópica), um fármaco anti-parasita usado primariamente contra vermes intestinais (!).

(!) Leitura recomendada: Ivermectina é eficaz para o tratamento da COVID-19?

          Entre as formas de prevenção da tungíase, as mais recomendadas são o uso de calçados e as práticas de higiene. Porém, mesmo o uso de calçados fechados não garantem completa proteção. É recomendado também sempre fazer inspeções diárias dos pés, removendo o mais rápido possível qualquer pulga incrustada na pele.


> Reporte e descrição do caso: 


REFERÊNCIAS

  1. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/nejmicm1810588
  2. HEUKELBACH, Jorg. Tungíase. Rev. Inst. Med. trop. S. Paulo [online]. 2005, vol.47, n.6, pp.307-313. ISSN 1678-9946. Link: Scielo
  3. https://www.scielo.br/pdf/rsbmt/v40n1/a13v40n1.pdf
  4. http://scielo.iec.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-49742012000200007
  5. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/jmp.12491