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Rios Aéreos: Ignorar a Amazônia é ignorar a importância das chuvas no Brasil

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         Geralmente as pessoas associam as chuvas como o resultado da evaporação da água oriunda dos oceanos. Isso é verdade para grande parte das precipitações nas regiões costeiras. Porém, no interior dos continentes, a maior parte das precipitações são oriundas da evaporação de água de lagos, rios, solo úmido e via evapotranspiração das plantas, especialmente árvores. Em grandes florestas tropicais úmidas, como a Amazônica, o processo de evapotranspiração influencia substancialmente no regime e no volume de precipitações e no clima de forma local e global. 

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   EVAPOTRANSPIRAÇÃO E CHUVAS

          A evapotranspiração tem efeito pronunciado quando o fluxo de umidade inter-regional é menos significativo, transferindo grande quantidade de água da superfície terrestre para a atmosfera. A evapotranspiração, por sua vez, depende da disponibilidade de umidade na área ou abaixo da superfície (zona insaturada), que é evaporada diretamente ou através da transpiração da vegetação. As árvores, através das suas raízes e poros nas folhas, servem de pontes para o lançamento de água de regiões profundas no solo para a atmosfera. Nesse sentido, mudanças na cobertura das terras e do clima que influenciem esse processo afetam o regime de precipitação em grande parte da América do Sul.




          No geral, a Bacia Amazônica se comporta como um sumidouro de umidade da atmosfera, recebendo vapor d'água tanto do transporte de origem oceânica quanto da evapotranspiração da floresta por meio do processo de reciclagem de precipitação. Em escala regional, a Amazônia representa uma importante fonte de umidade para outras regiões da América do Sul, contribuindo para o regime da precipitação em outras áreas do continente. Aproximadamente 50% da precipitação anual média de 2300 mm retorna para a atmosfera via evapotranspiração. Estudos científicos estimam uma média da reciclagem de precipitação da ordem de 20-25% na Bacia Amazônica, com valores variando entre 10-15% na porção norte e 40-50% na porção sul (Ref.1-8). Dessa forma, do total da precipitação na bacia, aproximadamente, 20% é decorrente do processo de evapotranspiração local, com importantes implicações para o ciclo hidrológico Amazônico.
          

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         Uma vez sobre a floresta, as massas de ar com bastante umidade vindo do Oceano Atlântico se condensam e formam as chuvas torrenciais, típicas da região Amazônica. Com a evapotranspiração intensa da floresta, incrementada pela temperatura elevada, são formadas massas úmidas em grandes quantidades que se deslocam na orientação norte-sul da Cordilheira dos Andes, esta a qual funciona como anteparo - impedindo dos rios aéreos irem para o Pacífico -, até chegar aos Estados da região centro-sul. Parte destas massas também é exportada para o Caribe e o Oceano Pacífico, o que coloca a Floresta Amazônica em condição de grande importância mundial quanto a sua influência no regime de chuvas sobre uma grande extensão territorial da América Latina.




          Com relação à circulação regional em específico, a Amazônia representa uma importante fonte de umidade para o Centro, Sudeste e Sul do Brasil, assim como para o norte da Argentina, incluindo a bacia do Prata, contribuindo para o regime da precipitação nessas regiões, vital para uma ótima produtividade do setor agropecuário. De modo geral, a reciclagem de precipitação é mais intensa sobre a porção centro-sul do continente, sendo diretamente influenciada pela evapotranspiração dessa região. Aliás, os padrões de precipitação no bioma do Pantanal mostram-se fortemente dependentes da reciclagem hídrica que ocorre na Bacia Amazônica (Ref.10).

          A Amazônia como um todo gera aproximadamente metade da sua própria chuva ao reciclar umidade 5 a 6 vezes à medida que as massas de ar se movem do Atlântico ao longo da bacia até o oeste. Aliás, é estimado que 1 metro quadrado de vegetação Amazônica joga na atmosfera 6-7 vezes mais água do que 1 metro quadrado de oceano. Umidade oriunda da Amazônia é importante para a chuva e o bem-estar humano porque contribui para as precipitações de inverno para partes da bacia da La Plata, especialmente o sul do Paraguai, sul do Brasil, Uruguai e centro-leste da Argentina. Como as florestas mantêm uma taxa constante de evapotranspiração ao longo de todo o ano, um maior desmatamento leva a períodos de seca mais longos. Aliado ao aquecimento global, um desmatamento afetando mais de 20-25% da área original da Amazônia pode transformar irreversivelmente o bioma em uma savana, com extrema perda de biodiversidade.

          Aliás, sem a floresta Amazônica, praticamente todo o país teria um clima semiárido, com chuvas escassas, raramente mais intensas, porém associadas a temporais. Tal cenário certamente seria prejudicial para um grande contingente populacional e para o meio ambiente como um todo, com graves problemas socioambientais e econômicos

           Desempenhando um importante papel nas trocas de energia, umidade e massa entre a superfície continental e a atmosfera, fundamentais para a manutenção do clima regional e global, temos no final que a floresta Amazônica atua de forma muito importante no armazenamento e absorção do excesso de carbono da atmosfera, no transporte de gases traço, aerossóis e vapor d’água para regiões remotas e, também, a reciclagem de precipitação, de grande importância para a manutenção de seus ecossistemas. A floresta Amazônica também atua como fonte indispensável de calor para a atmosfera global através de sua intensa evapotranspiração e liberação de calor latente na média e alta troposfera tropical, contribuindo na geração e manutenção da circulação atmosférica em escalas regional e global.

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   CERRADO E AMAZÔNIA

          A agricultura e a pecuária são o coração da economia Brasileira. Em 2018, apenas o setor do agronegócio respondeu por mais de 20% do produto interno bruto (PIB) do Brasil, e o país se encontra entre os três maiores produtores e exportadores de soja e de milho do mundo. Em 2019, a produção de milho cresceu 18% devido à expansão dos campos de plantio e à temporada produtiva conhecida como 'safrinha' (segunda safra em uma rotação de dupla-safra). 

         No entanto, boa parte do avanço das plantações de soja e de milho estão ocorrendo às custas da devastação ambiental, especialmente no sudeste da Amazônia e no Cerrado. O Código Florestal (!), apesar de garantir uma proteção no papel mais rígida para a Amazônia, deixa outros biomas bem mais vulneráveis. Enquanto as propriedades precisam proteger pelo menos 80% da mata nativa na Amazônia, no Cerrado essa proteção engloba apenas 20%. Na prática, apenas 3% do Cerrado é legalmente protegido, e o resultado é claro: mais de 50% desse bioma já foi devastado, especialmente visando a agricultura e criação de gado. E após degradado, evidências mostram que o Cerrado não consegue se regenerar naturalmente (Ref.11).

          Aliás, analisando o desmatamento no Cerrado e na Amazônia, a produtividade agrícola, e as exportações de soja e carne para a União Europeia, um estudo publicado mais recentemente na Science (Ref.12) encontrou um grande rastro de crimes ambientais nesse comércio. Os pesquisadores estimaram que em torno de 20% da exportação de soja (~19 milhões de toneladas/ano) e pelo menos 17% da exportação de bife oriundos do Cerrado e da Amazônia estão contaminados com o desmatamento ilegal. As recentes campanhas de boicote aos produtos agropecuários Brasileiros estão longe de serem sem fundamentos. E o Brasil pode sair perdendo muito nessas campanhas, considerando que cerca de 41% das importações de soja e 25-40% das importações de bife na União Europeia são oriundas do Brasil. Mas o estudo também mostrou que grande parte das propriedades agrícolas no Cerrado e na Amazônia no país são livres de desmatamento, e que apenas 2% (17557) dessas propriedades são responsáveis por 62% de todo o potencial desmatamento ilegal. 


          E aqui entramos novamente com a importância dos rios aéreos, os quais interagem de forma importante também com o Cerrado. Em um estudo publicado na Nature Sustainability (Ref.14), pesquisadores resolveram explorar vários cenários simulados de clima associados ao desmatamento no Cerrado e na Amazônia, e encontraram que o regime de chuvas e a temperatura regional estão sendo substancialmente alterados pelo clareamento da vegetação nativa na Amazônia. Notavelmente, a fração evaporativa diminuiu significativamente em todos os cenários de desmatamento devido à menor taxa de reciclagem de água para a atmosfera. Além disso, o Cerrado atua também de forma importante ao suportar um regime estável de chuvas sobre a Amazônia já que as massas de ar atravessando o bioma ganham uma umidade adicional da evapotranspiração da vegetação do Cerrado. No caso das temperaturas, é bem estabelecido que o desmatamento de florestas tropicais leva a um aumento local nas temperaturas. 

          No cenário de amplo desmatamento observado pós-2016 no sudeste da Amazônia e no Cerrado, as alterações na temperatura e nas chuvas no Cerrado levaram a uma redução entre 6% e 8% na produção de milho comparado com o cenário pré-2016. Esse é um exemplo prático de como os rios aéreos são importantes não apenas para os biomas em si, mas também para o agronegócio.

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   NEGACIONISMO POLÍTICO
 
          Infelizmente, políticos anti-ambientalistas têm tentado ignorar esse fenômeno para justificar a devastação ambiental. Em um caso notável, temos um projeto de lei proposto pelos Senadores Flávio Bolsonaro e Marcio Bittar no ano passado de incentivo ao desflorestamento e derrubada do Código Florestal (!). No texto anti-científico associado ao projeto, Flávio e Bittar vão contra todas as evidências científicas e afirmam - entre outros absurdos - que as florestas não interferem no ciclo de chuvas, uma mentira que chega a ser criminosa. Novamente, é a tentativa de minimizar a importância do bioma Amazônico como uma justificativa supostamente plausível para o seu desmatamento. Felizmente, no dia 16 de agosto de 2019, os senadores retiraram a proposta de lei, em meio à pressão internacional gerada pela crise ambiental vivida pelo Brasil

> HIPÓTESE: Existe também a hipótese, ainda sem significativo suporte científico e alvo de várias críticas céticas no meio acadêmico, de que as florestas podem não apenas fomentar chuvas como também criar vento. Essa circulação de ar extra teria origem também do processo de transpiração, onde a água evaporada das folhas se condensaria e criaria áreas de menor pressão atmosférica, dirigindo como consequência a produção de ventos. Isso poderia explicar parte do motivo dos ventos com umidade atingirem com substancial força áreas no interior dos continentes longe das áreas costeiras (Ref.10).

> (!) Uma das medidas legais mais importantes de proteção ambiental adotadas no Brasil é o Código Florestal Brasileiro, o qual determina que 80% da terra privada na região Amazônica seja protegida como reserva legal para a proteção da vegetação nativa. Além da Amazônia, o Código Florestal estipula reservas legais em todo o território Brasileiro, variando o percentual das áreas de proteção de 20% a 80% - dependendo do bioma (80% na Amazônia, 35% no cerrado, etc.) - que não podem ser desmatadas e onde, no máximo, agricultura sustentável é permitida. 


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-77862015000100059&script=sci_abstract&tlng=pt
  2. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-77862017000300417&script=sci_abstract&tlng=pt
  3. http://www.scielo.br/pdf/rbmet/v32n3/0102-7786-rbmet-32-03-0387.pdf
  4. https://link.springer.com/article/10.1007/s12665-018-7411-9
  5. https://e360.yale.edu/features/how-deforestation-affecting-global-water-cycles-climate-change
  6. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5355804/
  7. https://agupubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1029/2018GL080907
  8. https://www.ipmet.unesp.br/upload2/water-10-00149.pdf
  9. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0048969717332229
  10. https://www.sciencemag.org/news/2020/06/controversial-russian-theory-claims-forests-don-t-just-make-rain-they-make-wind
  11. https://besjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/1365-2664.13046
  12. https://science.sciencemag.org/content/369/6501/246
  13. https://www.nature.com/articles/s41893-020-0560-3