O estudo Henry Ford prova alguma coisa em relação à hidroxicloroquina?
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Após a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) divulgar uma nota no Twitter pedindo para que a hidroxicloroquina deixe de ser utilizada por pacientes com COVID-19 em qualquer fase da doença, inclusive na sua prevenção - baseando-se especialmente em dois robustos estudos clínicos publicados esta semana -, uma onda de ofensas e ataques encheram os comentários da publicação. Fomentados em sua maioria por simples alienação política, muitos citaram um polêmico estudo ("estudo Henry Ford") publicado recentemente no periódico International Journal of Infectious Diseases que sugeriu uma substancial eficácia da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes hospitalizados com COVID-19. Porém, que tipo de estudo foi esse?
Após a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) divulgar uma nota no Twitter pedindo para que a hidroxicloroquina deixe de ser utilizada por pacientes com COVID-19 em qualquer fase da doença, inclusive na sua prevenção - baseando-se especialmente em dois robustos estudos clínicos publicados esta semana -, uma onda de ofensas e ataques encheram os comentários da publicação. Fomentados em sua maioria por simples alienação política, muitos citaram um polêmico estudo ("estudo Henry Ford") publicado recentemente no periódico International Journal of Infectious Diseases que sugeriu uma substancial eficácia da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes hospitalizados com COVID-19. Porém, que tipo de estudo foi esse?
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ESTUDOS RANDOMIZADOS
Todos os robustos estudos de alta qualidade publicados até o momento não encontraram qualquer benefício significativo da hidroxicloroquina para o tratamento de pacientes com COVID-19, seja como profilaxia pós-exposição, seja em pacientes com quadros leves ou iniciais da doença, seja em pacientes hospitalizados (particularmente em estado grave). Esta semana, inclusive, dois robustos estudos - um de boa e um de alta qualidade - mais uma vez reforçaram essa conclusão, a qual praticamente já está cimentada com o estudo de larga escala randomizado placebo-controlado do RECOVERY. Somando-se a isso, o maior estudo clínico randomizado sobre essa questão realizado aqui no Brasil também não encontrou efeitos clínicos positivos no uso da hidroxicloroquina para tratar casos leves a moderados.
Nesse último ponto, vale a pena esclarecer algo muito importante. Em estudos clínicos visando a testagem de medicamentos o padrão-ouro de qualidade é a randomização. Ou seja, um conjunto inicial de pacientes e/ou voluntários é dividido em dois ou mais grupos de forma aleatória onde cada um deles (com exceção dos estudos crossover) irá receber um tipo diferente de intervenção (incluindo a intervenção terapêutica visada). Os resultados clínicos em cada um desses grupos ao final de um período pré-estabelecido serão então comparados entre si para a avaliação de eficácia do tratamento visado. Uma intervenção inerte simulando ao máximo a intervenção terapêutica visada frequentemente é aplicada em um dos grupos avaliados para evitar o famoso efeito placebo (efeitos fisiológicos diferenciais entre grupos pelo simples fato do paciente saber se está tomando ou não o medicamento testado).
Assim, por exemplo, se eu quero testar a eficácia da aspirina como analgésico em um estudo randomizado placebo-controlado, eu posso recrutar 500 indivíduos, e dividi-los aleatoriamente em dois grupos: 250 recebendo um comprimido de aspirina e 250 recebendo um comprimido similar à aspirina mas contendo uma substância não-analgésica inerte (ácido fólico, por exemplo). Os pesquisadores, então, irão averiguar se, na média, houve um melhor efeito analgésico em um grupo ou no outro. Caso exista um substancial maior efeito analgésico no grupo da aspirina, isso indica que esse medicamento é mais eficaz para esse propósito do que simplesmente dar um placebo para o indivíduo ou não dar nada.
A aleatoriedade de escolha dos pacientes para um grupo ou para o outro é importante - justificando o 'padrão-ouro' do estudo clínico randomizado - porque ajuda a evitar que co-fatores atrapalhem a análise final. Em uma não-randomização, dependendo do critério de escolha, mais ou menos pessoas com certas características específicas podem ir parar em um grupo ou em outro, superestimando ou subestimando o efeito terapêutico do medicamento visado. Por exemplo, se eu quero testar a eficácia de um medicamento visando o tratamento de uma doença cardíaca e escolher para o meu grupo de controle (placebo ou outra intervenção) uma maior proporção de pessoas idosas (>65 anos) do que no grupo do medicamento, o resultado final provavelmente será um efeito terapêutico superestimado do medicamento, já que pessoas idosas possuem naturalmente uma saúde cardíaca mais fragilizada.
A qualidade do estudo aumenta ainda mais caso a randomização placebo-controlada seja acompanhada de um duplo-cego, ou seja, se nem o médico nem o paciente sabem quem está recebendo ou não o medicamento. Nesse caso, evita-se também que o pesquisador/médico trate de forma tendenciosa um ou outro paciente. O número de participantes nos grupos de intervenção é também importante: quanto maior o número de pessoas avaliadas, melhor, porque amplia o número de co-fatores individuais interagindo com as intervenções avaliadas (um representativo mais fiel em termos populacionais).
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ESTUDO HENRY FORD
Agora vamos voltar para a hidroxicloroquina. Vários estudo randomizados - controlados com placebo ou com intervenção hospitalar básica - têm demostrando de novo e de novo que esse medicamento - com ou sem azitromicina - não é eficaz no tratamento ou na prevenção da COVID-19. Isso já tinha sido decido conclusivamente para pacientes com quadros moderado a grave, e mais recentemente para pacientes com quadro leve e/ou inicial. Aliás, esta semana, um estudo randomizado placebo-controlado duplo cego - e envolvendo mais de 400 pessoas - foi publicado no periódico Annals of Internal Medicine também não demonstrando eficácia do medicamento para pacientes nos primeiros dias sintomáticos da doenças [esse foi um dos estudos citados pela SBI].
De fato, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) já abandonaram o medicamento, e a Administração de Drogas e de Alimentos dos EUA (FDA) já não recomenda sua prescrição para pacientes fora de estudos clínicos. Aliás, a OMS suspendeu os estudos clínicos randomizados de larga escala que estava conduzindo (SOLIDARIETY) porque os resultados preliminares, novamente, não mostraram quaisquer benefícios clínicos da hidroxicloroquina.
No entanto, desde o início deste mês, os defensores mais "apaixonados" da hidroxicloroquina passaram a citar fanaticamente um estudo RETROSPECTIVO realizado por pesquisadores do Sistema de Saúde Henry Ford. Nesse estudo, os pesquisadores analisaram 2541 pacientes com COVID-19, e encontraram que 13% daqueles tratados com hidroxicloroquina morreram, enquanto que 26% daqueles que não receberam o medicamento foram a óbito. No total, cerca de 82% dos pacientes receberam a hidroxicloroquina dentro das primeiras 24 horas e 91% dentro das primeiras 48 horas de admissão no hospital. O que isso significa? Nada, se levarmos em conta os estudos prévios randomizados que encontraram que a hidroxicloroquina é ineficaz em pacientes hospitalizados.
Um estudo retrospectivo NÃO estabelece causa e efeito. Esse tipo de estudo observacional analisa o efeito (taxa de mortalidade, no caso do Henry Ford) e busca a causa. Para piorar, o estudo em questão não foi randomizado e nem duplo-cego: os pesquisadores responsáveis escolheram quem iria compor o controle e quem daqueles que usaram hidroxicloroquina iria ser avaliado. E aqui, amigos, o demônio da tendenciosidade e dos co-fatores de risco faz a festa.
Após controlarem os dados acumulados em termos demográficos, vários fatores de risco e alguns marcadores para a severidade da doença, os autores do estudo Henry Ford encontraram que a administração de hidroxicloroquina estava associada com um risco 66% menor de morte - e ainda maior (71%) caso azitromicina fosse usada concomitantemente. Curioso, porque outro estudo observacional publicado recentemente no The Lancet encontrou um risco substancial de agravamento da doença com a hidroxicloroquina - com ou sem hidroxicloroquina - ao analisar os dados de 96 mil pacientes, mas foi posteriormente retratado após críticas. Já outro estudo observacional publicado em maio no periódico The New England Journal of Medicine, e analisando 1446 pacientes em New York, EUA, não encontrou eficácia alguma da hidroxicloroquina. Entendem os problemas de estudos observacionais? Os parâmetros de análise e de exclusão ou de inclusão de dados podem transformar da água para o vinho os resultados desses estudos epidemiológicos.
Aliás, um grave problema no estudo do Henry Ford: os pesquisadores excluíram 267 pacientes (quase 10%) da população original de análise que não haviam deixado o hospital. Isso, por si só, já torna o estudo extremamente questionável. Esses pacientes podem ter ficado mais tempo no hospital por estarem muito doentes, e se mais no grupo da hidroxicloroquina tiverem morrido, as reais taxas de mortalidade podem mudar completamente a conclusão do estudo. E os problemas no estudo não param aqui.
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CRÍTICAS DE ESPECIALISTAS
Um artigo no site FactCheck.org - um projeto do Centro de Políticas Públicas da Universidade da Pennsylvania, EUA - trouxe pesadas críticas de especialistas sobre o estudo do Henry Ford, os quais apontaram um número de sérias inconsistências metodológicas, além das limitações naturais associadas com um estudo observacional.
"A preocupação com qualquer estudo observacional coorte é a seleção tendenciosa," disse o Dr. David Boulware, um professor de medicina e doenças infecciosas da Escola de Medicina da Universidade de Minnesota. "A questão é, as pessoas que receberam o medicamento, são as mesmas que as pessoas que não receberam o medicamento? Eles tentam controlar para isso, eles fazem ajustes de multi-variáveis e coisas do tipo, mas existem ainda fatores que você não pode totalmente controlar estatisticamente para tentar compensar para o modo como os médicos agem."
Em particular, o grupo do FactCheck.org apontou que vários cientistas suspeitam que os pacientes que não receberam a hidroxicloroquina podiam já estar mais doentes ou mais fragilizados e menos prováveis de receberem o mesmo nível de tratamento do que outros pacientes mais promissores. A primeira pista nesse sentido é o fato de que enquanto o Sistema de Saúde Henry Ford pareceu fornecer hidroxicloroquina para a maioria dos pacientes de acordo com o seu protocolo padrão, uma porção considerável não recebeu.
"Quando você tem um protocolo em seu hospital e vários pacientes não estão seguindo o protocolo, isso faz você considerar que existe algo diferente sobre aqueles pacientes," disse o Dr. Neil Schluger, chefe do departamento de medicina da Faculdade Médica de New York, e autor principal do estudo observacional citado anteriormente (I)."Nesse sentido, a comparação já se torna um pouco problemática".
Schluger notou ainda que quando os pesquisadores do Henry Ford alinharam os pacientes recebendo hidroxicloroquina com aqueles não receberam o medicamento, a análise incluiu apenas uma fração pequena (190) entre os mais de 2500 pacientes!
"Isso me parece muito estranho e realmente indica que os pacientes [entre os grupos analisados] não eram os mesmos," disse Schluger.
Segundo apontou também Eli Rosenberg, um professor associado de epidemiologia e bioestatística da Universidade de Albany, alguns pacientes com problemas cardíacos foram excluídos de receberem hidroxicloroquina, por preocupações justas com os efeitos colaterais associados ao medicamento. Porém, isso por si só já é um problema, e não ficou claro no estudo Henry Ford se esses pacientes entraram para o grupo de controle (o que agrava a situação).
"Eles tiraram essas pessoas que tinham elevado risco de mortalidade, e isso irá alterar a análise de um modo fundamental," disse Rosenberg.
Outra pista chave nesse sentido apontada por Rosenberg: os pacientes recebendo hidroxicloroquina eram mais prováveis de precisarem de ventilação mecânica e entrarem em uma unidade de tratamento intensivo (UTI), mas eram menos prováveis de morrerem do que aqueles que não receberam o medicamento - mesmo com o fato de que entrar na ventilação mecânica ou ser admitido na UTI serem importantes fatores de risco bem estabelecidos para uma pior evolução clínica.
"Isso é muito curioso," comentou Rosenberg, adicionando que isso sugere que vários pacientes que não receberam hidroxicloroquina já poderiam estar condenados e não receberam intervenções mais invasivas para poupar os quartos de UTI e os ventiladores mecânicos para os pacientes mais promissores - ou de maior interesse.
"Por que mais pacientes que não receberam hidroxicloroquina foram para a UTI?," perguntou Schluger. "Isso faz você considerar que aqueles pacientes foram tratados mais agressivamente do que aqueles que não receberam hidroxicloroquina."
Um comentário publicado no mesmo periódico onde o estudo Henry Ford foi publicado levantou essas mesmas preocupações. Além disso, os autores do comentário - pesquisadores Australianos e Canadenses - notaram que os pacientes recebendo hidroxicloroquina eram mais de duas vezes mais prováveis de receberem esteroides prescritos! Sim, a mesma classe de medicamentos da dexametasona, um corticoesteroide que recebeu forte suporte científico de eficácia para tratar pacientes em estado mais grave (Dexametasona é comprovadamente eficaz no tratamento da COVID-19, aponta estudo Britânico). Os autores escreveram no comentário:
"Isso é relevante considerando que o recente estudo clínico RECOVERY mostrou um benefício de mortalidade com a dexametasona entre indivíduos requerendo suplementação com oxigênio ou ventilação mecânica, potencialmente tornando os resultados do estudo tendenciosos em favor da hidroxicloroquina."
Além disso, os autores citaram que um número de importantes fatores de prognóstico (como ordens "de não ressuscitar"), marcadores de severidade da doença potencialmente importantes (como proteína C-reativa) e co-administração de terapias potencialmente benéficas (como anticoagulantes) foram simplesmente excluídos da análise, aumentando as chances de que co-fatores de risco importantes foram ignorados no estudo.
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CONCLUSÃO
Estudos observacionais retrospectivos avaliando medicamentos servem justamente para o propósito de apontarem evidências que justifiquem ou não estudos clínicos randomizados, estes os quais, de fato, irão estabelecer causa e efeito. Já temos os estudos clínicos randomizados de alta qualidade! Não é mais necessário estudos retrospectivos, ora! Qual o interesse do Sistema de Saúde Henry Ford nisso? Incerto, mas o presidente Donald Trump, outro fanático da hidroxicloroquina à la Jair Bolsonaro, elogiou muito o Henry Ford em suas redes sociais. E estamos em ano de eleição presidencial nos EUA. Em seu Twitter, Trump escreveu no começo deste mês (6 de julho):
"O altamente respeitado Henry Ford Health System acabou de reportar, baseado em uma grande amostra [número de pacientes avaliados], que a HIDROXICLOROQUINA reduziu a taxa de mortalidade em certos pacientes muito doentes de forma significativa. Os Democratas [partido político rival] menosprezaram o medicamento por razões políticas (eu!). Lamentável. Aja agora [marcando o FDA no texto]!."