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Por que os bebês dão 'chutes' durante a gravidez?

- Atualizado no dia 7 de julho de 2022 -

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          Os movimentos fetais sentidos por uma mulher grávida são um sinal de que o feto está crescendo em tamanho e força. As mulheres são frequentemente ensinadas pelos profissionais de saúde que a acompanham a monitorarem e ficarem atentas aos movimentos do feto. Isso pode ser na forma de uma recomendação geral para os movimentos fetais, ou a mulher pode ser ensinada a contar o número de chutes em um determinado intervalo de tempo. Uma diminuição nos movimentos fetais pode ser um sinal de alarme para potenciais problemas ou riscos fetais, tornando necessária a avaliação de um profissional de saúde.

          Mas por que os fetos realizam os movimentos repentinos de 'chute' dentro do útero? O mesmo propósito e comportamento é visto em outros mamíferos? E o que é o fenômeno dos "chutes fantasmas"?

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   CHUTES FETAIS

          Os primeiros movimentos fetais involuntários fetais começam ao redor de 7 semanas de gestação; movimentos voluntários independentes, como chutes, têm início na 12° semana à medida que a unidade neuromuscular continua crescendo. Padrões distintos de movimento, como soluços, alongamento e movimento dos olhos e da cabeça geralmente ocorrem a partir de ~15 semanas.

          Já os primeiros movimentos fetais que são sentidos pela mãe são chamados de 'chutes'. Uma das funções desses movimentos é de alertar a mulher grávida de que ela possui um feto em desenvolvimento no seu útero. Os chutes geralmente ocorrem entre 16 a 22 semanas da gravidez - quando o feto atinge um desenvolvimento neuromuscular e metabólico suficiente -, mas a frequência diária desses movimentos não é constante durante toda a gravidez, aumentando até o terceiro trimestre e geralmente atingindo uma fase de não-variação (platô) da 24° até a 32° semana. Porém, os chutes nem sempre são um sinal positivo de gravidez, já que outros movimentos no corpo podem imitar movimentos iniciais do feto, como movimentos peristálticos, flatulência e contrações musculares abdominais.

Leitura complementar:

          A maior parte dos profissionais de saúde recomendam que as mulheres monitorem os movimentos fetais, especialmente a partir do terceiro trimestre. Isso pode ser cumprido via simples monitoramento dos movimentos gerais durante o dia, reportando suspeitas de significativa redução, ou via contagens de movimentos fetais mais formais, método às vezes chamado de 'contagem de chutes': geralmente as grávidas são instruídas a realizarem 10 contagens de chutes durante um período de 2-3 horas sempre no mesmo horário do dia; se a contagem cair para menos de 10, o médico deve ser informado para exames mais detalhados. Existem, claro, problemas de falsos-positivos devido a contrações uterinas, movimentos respiratórias ou sem motivos aparentes; as chances de engano são diminuídas quando os chutes fetais são mais grosseiros e vigorosos. Fatores como sobrepeso/obesidade, placenta situada na frente do útero, medicamentos sedativos, excesso ou escassez de fluído ao redor do feto, rotina agitada, e feto menor do que o esperado para um certo período de gravidez podem dificultar a sensação desses movimentos pela grávida.

          A redução da movimentação fetal está associada a um maior risco de prematuridade, baixo peso do recém-nascido, ou mesmo de morte fetal no período de anteparto. Essa redução de movimentos pode ser uma resposta, por exemplo, a graves quadros de acidose metabólica e hipoxemia. Súbito aumento ou diminuição, ou o desaparecimento de qualquer movimento fetal está relacionado com eventos fetais adversos, especialmente quando o fetos está próximo do nascimento. Movimento extremamente vigoroso na fase final de gestação pode indicar que o risco de natimorto pode aumentar em 3 vezes (Ref.6).

           Alterações na movimentação fetal podem ser patológicas ou fisiológicas. Fisiologicamente, existem várias causas de restrição do movimento fetal. À medida que o feto cresce, o crescimento fetal tende a ser limitado pelo ambiente uterino no terceiro trimestre, o que leva à redução do movimento fetal. Patologicamente, se oxigênio e nutrientes na placenta estão em níveis inadequados, isso pode levar à condição de hipocinesia. Hipoxia e consumo de nutriente fazem o cérebro e o sistema nervoso central economizarem energia fisiologicamente, e como resultado, a frequência e a intensidade de movimentos fetais diminuem. Além disso, algumas causas patológicas, como síndrome de disfunção placentária, podem também resultar em restrição do movimento fetal, o que ultimamente leva a descompensação, e até morte fetal. Ocasionalmente, alguns ataques fetais epiléticos associados com um aumento de movimento fetal podem ser acompanhados por uma falta de oxigênio, levando a falha cardíaca e possivelmente morte.

           Assim como os adultos, cada feto possui padrões individuais de movimentação, por isso as grávidas devem se acostumar com os padrões de chutes dos seus bebês e não tentar ficar comparando com os de outras grávidas.

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   FUNÇÕES NEUROMUSCULARES

          Além de serem um óbvio sinal de gravidez, os movimentos fetais estão relacionados ao desenvolvimento dos músculos e do sistema nervoso do bebê. Movimentos isolados dos membros são fundamentais para a maturação e o mapeamento dos circuitos somatomotores espinhal e supraespinhal em modelos de animais não-humanos. Os sinais aferentes gerados pelos movimentos fetais são somatotopicamente codificados no córtex pelas oscilações neurais alfa-beta, ancorando representação em córtices somatomotores primários ao 'layout' físico do corpo. Nesse sentido, essas oscilações alfa-beta são, na verdade, um crucial processamento sensorial primário em jovens mamíferos.

          Em mamíferos não-humanos mais comumente estudados em laboratório, interferência nesses padrões comprometem o desenvolvimento normal de mapas corticais, sugerindo um papel permissivo no desenvolvimento cortical. Essas oscilações cerebrais são muito mais prováveis de serem engatilhadas por atividades motores espontâneas durante o sono ativo (precursor do sono de movimento rápido dos olhos, REM) do que durante o estado despertado, e persistem tão tarde quanto no dia 12 do pós-parto, o que é amplamente equivalente ao período gestacional completo humano.

          Movimentos isolados dos membros em bebês humanos muito prematuros (cerca de 30 semanas) evocam oscilações somatotópicas alfa-betas similares, às vezes excedendo ondas deltas lentas, especialmente durante o sono ativo. Essa observação sugere um papel permissivo análogo a esses padrões elicitados de movimentos no desenvolvimento humano cortical. Ou seja, os fetos nas grávidas humanas também estariam buscando criar mapas cerebrais dos seus corpos através dos chutes.


   MAPEAMENTO NO CHUTE

           Em um estudo publicado no final de 2018 na Scientific Reports (Ref.3), pesquisadores da University College London (UCL) encontraram a primeira forte evidência de que os fetos humanos realmente estão criando mapas cerebrais do corpo com os chutes, permitindo que eles eventualmente explorem o ambiente ao redor.

          Para o estudo, os pesquisadores analisaram 19 bebês prematuras com idades de 2 dias na média, e com idades gestacionais corrigidas (levando em conta o tempo para as análises) entre 31 e 42 semanas. Em seguida, via eletroencefalografia (EEG), eles mediram as ondas cerebrais produzidas quando os bebês chutavam com seus membros (movimentos bruscos e espontâneos) durante o estado de sono REM, e encontraram que ondas cerebrais rápidas (associadas às oscilações alfa-beta movimento-relacionadas) - um padrão tipicamente visto em neonatais - eram ativadas no hemisfério cerebral correspondente.

          Por exemplo, o movimento da mão direita de um bebê prematuro causava uma imediata ativação das ondas cerebrais no hemisfério esquerdo do cérebro, na parte onde ocorre o processamento de tato para a mão direita. O tamanho dessas ondas cerebrais se mostraram substancialmente maiores nos bebês prematuros, estes os quais, nessa idade, estariam ainda dentro do útero.

          O achado, portanto, fortemente sugere que os chutes fetais nos últimos estágios da gravidez - no terceiro trimestre - de fato ajudam no desenvolvimento de áreas no cérebro que lidam com o processamento sensorial (plasticidade somatossensorial), e é como o feto humano desenvolve um senso do seu próprio corpo e se prepara para entrar no mundo exterior. As ondas cerebrais rápidas evocadas pelo movimento (a atividade alfa-beta movimento-relacionada sobrepondo o córtex somatossensorial) desaparecem quando os bebês estão com alguns meses de idade (pós-parto).

      "Movimentos espontâneos e consequente feedback do ambiente durante o período inicial de desenvolvimento são conhecidos de serem necessários para o mapeamento cerebral apropriado em animais como ratos. Nesse estudo, mostramos que isso parece ser verdade também para humanos", explicou o autor principal do estudo, Dr. Lorenzo Fabrizi, para o jornal da UCL (Ref.4).

       "Nós acreditamos que os achados possuem implicações para o fornecimento de um ambiente hospitalar ideal para os bebês prematuros, para que eles recebam os sinais sensoriais apropriados", disse outra autora do estudo, Kimberley Whitehead, pesquisadora no departamento de Neurociência, Fisiologia & Farmacologia da UCL. "Por exemplo, já é rotina para bebês serem 'aninhados' em suas camas - isso permite que eles 'sintam' a superfície quando seus membros chutarem, como se estivessem ainda dentro do útero."

        "Como os movimentos que nós observamos ocorreram durante o sono, nossos resultados dão suporte para outros estudos indicando que o sono deveria ser protegido em recém-nascidos, por exemplo, ao se minimizar os distúrbios associados quando procedimentos médicos são necessários," completou Kimberley.

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   CHUTES FANTASMAS

          Relativamente pouco é conhecido sobre como o cérebro humano muda durante e após a gravidez. No entanto, mudanças são observadas na estrutura e função cerebrais, e essas mudanças podem ser permanentes. Um curioso fenômeno nesse sentido, descrito pela primeira vez na literatura acadêmica em 2021 no periódico Journal of Women’s Health (Ref.7), é a continuada sensação de chutes fetais muito tempo depois do parto, reportada frequentemente de forma anedótica entre mulheres em fóruns online. Essas mulheres descrevem essas sensações como legítimos chutes fetais, geralmente ocorrendo na parte inferior do abdômen. Exemplos de reportes:

"Chutes fantasmas estão me deixando maluca. Tenho certeza que é apenas gás. Mas eu juro que não parecem gás - a sensação é exatamente como um bebê chutando sem parar o meu útero."

"Eu tenho aquele momento de 'oh! O bebê está se movendo!' e então eu lembro que ele está na verdade dormindo no berço próximo de mim."

          No estudo mencionado, os pesquisadores analisaram 197 mulheres Australianas previamente grávidas, e encontraram que 40% da amostra reportou chutes fantasmas após a primeira gravidez, e até 28 anos após o parto (média de 6,4 anos)! As participantes comumente descreveram os chutes fantasmas como "chutes reais" ou "convincentes", e 27% delas descreveram a experiência como nostálgica ou confortante, enquanto ~26% reportaram que se sentiam confusas ou irritadas pela experiência. Os resultados do estudo sugerem que o fenômeno pode ser comum na população feminina no pós-parto.

          O fenômeno ainda não possui uma sólida explicação científica, apenas especulações. 

          Uma primeira explicação pode ser a possibilidade das mulheres estarem confundindo sensações normais de recuperação corporal pós-parto com sensações de chute. A restauração pós-parto do tônus muscular e de tecido conectivo para o estado pré-gravidez dura cerca de 6 meses, com a maior parte das mudanças agudas resolvidas dentro das primeiras 26 semanas. Porém, essa hipótese não explica sensações de chute fetal frequentemente reportadas que duram anos após o parto.

          Outra explicação é que a condição seja similar à síndrome do membro fantasma. Essa síndrome ocorre quando indivíduos com um membro perdido ou amputado sentem sensações sugestivas de que o membro está ainda anexado ao corpo, incluindo "reais" movimentos e dor. Em outras palavras, o membro está ainda representado nos mapas proprioceptivos do corpo. Durante a gravidez, a inervação da região abdominal acompanhando contínuos movimentos fetais aumenta ao longo das ~40 semanas de gestação e rapidamente cessa no nascimento do bebê. A rápida redução somatossensorial no pós-parto pode ter algumas similaridades com a rápida cessação da inervação seguindo a amputação de membros.

          Nesse mesmo caminho, errônea atribuição de sensações corporais normais pode também explicar os chutes fantasmas. No estado de não-gravidez, a maioria das sensações abdominais espontâneas são atribuídas a causas digestivas, e não recebem maior atenção da mulher. Durante a gravidez, maiores e mais salientes somatossensações na área abdominal são rapidamente atribuídas aos movimentos fetais, intensificando a relação à medida que a grávida passa a prestar cada vez mais atenção a esses chutes - especialmente após orientação médica - e formar fortes laços de afeição com o feto em desenvolvimento. Portanto, o cérebro atualiza o mapa da região abdominal para uma maior ênfase de atenção. Após o parto, naturalmente deve ocorrer uma nova atualização no mapa para o status pré-gravidez. Porém, nas mulheres com chutes fantasmas, essa segunda atualização pode talvez não ocorrer, e sensações normais do sistema digestivo passam a ser atribuídas a um feto que não mais está ali.


          


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> Não confundir o fenômeno dos chutes fantasmas com a condição conhecida como pseudociese, caracterizada pela forte crença da mulher em estar grávida - acompanhada por sinais subjetivos e sintomas de gravidez - apesar da ausência clínica de gravidez. Entre 'sintomas' que podem ser manifestados na pseudociese, podemos citar aumento do volume abdominal, amenorreia (ausência de menstruação) ou oligomenorreia (intervalo superior a 45 dias entre ciclos menstruais), aumento das mamas, náusea, secreções e uma sensação subjetiva de movimentos fetais (chutes fantasmas). A causa e mecanismos dessa patologia não são muito bem esclarecidos (Ref.8). 
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK470566/
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4888620/
  3. https://www.nature.com/articles/s41598-018-35850-1
  4. https://www.ucl.ac.uk/school-life-medical-sciences/news/2018/nov/babies-kicking-womb-are-creating-map-their-bodies
  5. Weller et al. (2022). Maternal perception of fetal movements: views, knowledge and practices of women and health providers in a low-resource setting. Authorea. https://doi.org/10.22541/au.165546183.35790061/v1
  6. Liu et al. (2022). Computation of Fetal Kicking in Various Fetal Health Examinations: A Systematic Review. Environmental Research and Public Health 19(7), 4366. https://doi.org/10.3390/ijerph19074366
  7. Sasan et al. (2020). “Phantom Kicks”: Women’s Subjective Experience of Fetal Kicks After the Postpartum Period. Journal of Women’s Health. https://doi.org/10.1089/jwh.2019.8191
  8. Maryam Abrache et al. Pseudocyesis and a Maternity Delirium: A Case Report. Sch J Med Case Rep, 2021 Mar 9(3): 234-235.