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Por que o gelo é tão escorregadio?


- Atualizado no dia 14 de outubro de 2023 -

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          A princípio essa pergunta pode parecer muito óbvia e sem sentido. A propriedade do gelo em ser extremamente escorregadio é um fenômeno comumente presenciado (ex.: patinação no gelo) e, nesse contexto, tido como "lógico". Porém, surpreendentemente, a explicação dessa propriedade permanece um tópico pouco esclarecido na literatura científica e confrontado por múltiplas hipóteses. A natureza 'escorregadia' do gelo - mesmo quanto mantido a temperaturas bem abaixo de 0ºC - é geralmente atribuída à formação de uma fina camada de água líquida gerada por fricção. Mas quais são exatamente as características dessa fina camada proposta? Ora, porque temos um paradoxo aqui: a água líquida é bem conhecida de ser um péssimo lubrificante. 

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   PELÍCULA DE ÁGUA

          O gelo e a neve exibem extraordinárias propriedades friccionais, com excepcionais coeficientes de baixa fricção. Esse comportamento único permite o sucesso de vários esportes de inverno - como esqui, hóquei e patinação -, impõe riscos nas estradas e, em um contexto muito diferente, é um elemento fundamental para o deslizamento de geleiras. A baixa fricção imposta pelo gelo permanece, no entanto, altamente contraintuitiva e paradoxal quando lembramos que a água é geralmente considerada um péssimo lubrificante devido à sua baixa viscosidade. E mesmo após mais de um século de investigação científica, a origem exata dessa enigmática propriedade permanece muito debatida.

          Desde 1859, com os trabalhos de M. Faraday (On Regelation, and on the Conservation of Force), tem sido estabelecido o consenso sobre a existência de uma camada úmida similar ao estado líquido na superfície do gelo, com uma espessura variando entre 1 e 100 nanômetros (nm) dependendo da temperatura, apesar do mecanismo associado de formação ser motivo de discussão acadêmica.

         Trabalhos subsequentes descartaram mecanismos de derretimento sob pressão sendo sugeridos para explicar o filme proposto, com as evidências científicas dando suporte para um mecanismo de derretimento friccional: dissipação viscosa gera calor, o que aumenta a temperatura na região de contato até o ponto de fusão, criando portando um filme lubrificante. Esse novo cenário, subsequentemente e parcialmente, ganhou suporte teórico a partir de medidas macroscópicas tribológicas. Porém, ainda muitas lacunas permaneceram sobre as propriedades de filme lubrificante interfacial, incluindo sua real espessura - indo inclusive da escala de nanômetros para micrômetros dependendo das técnicas de análises realizadas.

         As dificuldades para se explorar a real natureza desse filme lubrificante sobre a superfície do gelo - ou mesmo sua real existência - se dá pelo fato da sua formação ser dinâmica e autoconsistente, o que faz a fronteira água-gelo elusiva de ser detectada. Além disso, medidas mais recentes da temperatura envolvida no processo descartaram a possibilidade de completa fusão (passagem do sólido para o líquido) de um filme interfacial de água sob deslizamento, contradizendo explicações já estabelecidas do processo. Por fim, em esportes de inverno, é uma prática padrão usar revestimentos hidrofóbicos para reduzir ainda mais a fricção sobre o gelo-neve, tipicamente com ceras contendo aditivos de flúor; a origem desse comportamento físico-químico também é contraintuitiva - já que o gelo é hidrofílico - e elusiva.

          Em outras palavras, os mecanismos fundamentais para a natureza escorregadia do gelo (e da neve) têm permanecido um mistério desde o começo dos debates científicos sobre o problema, no século XIX.

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   REOLOGIA COMPLEXA

           Para tentar resolver essa questão, pesquisadores do laboratório de Física do I'ENS (CNRS/ENS-PSL /Sorbonne Université/Université de Paris) em colaboração com um time do laboratório de hidrodinâmica do CNRS (LadHyX,CNRS/École polytechnique) desenvolveram um dispositivo equipado com um sensor tribométrico que permite "ouvir" as forças atuando durante o deslizamento sobre o gelo com extrema precisão. Apesar da escala macroscópica (centímetros) da ponta de interação efetiva do equipamento (tuning fork), sua sensibilidade mostrou-se suficiente para analisar as propriedades de fricção em uma escala nanométrica. Isso permitiu criar uma ponte entre medidas padrões via microscopia de força atômica (AFM) e experimentos tribológicos em macroescala.

          Graças ao aparato inédito - e descrito em um estudo publicado em 2019 Physical Review X -, os cientistas foram capazes de claramente demostrar pela primeira vez que a fricção, de fato, gera um filme constituído de água líquida. Esse filme, todavia, trouxe várias surpresas. A principal foi a espessura, a qual media poucas centenas de nanômetros a 1 mícron (ou seja, um centésimo ou menos da espessura de um de cabelo humano) - bem mais fino do que os modelos teóricos mais recentes sugeriam -, e dependia da temperatura de forma diretamente proporcional e variando de 100 a 500 nm (!). A espessura do filme estacionário mostrou-se um fator 4 vezes maior do que os valores para os filmes pré-fusionados em equilíbrio.

          Ainda mais inesperado, o filme não mostrou ser 'simples' água, mas, sim, de uma água tão viscosa quanto o óleo, com complexas propriedades viscoelásticas. Esse inesperado comportamento sugere que a superfície de gelo não completamente se transforma em água líquida, mas, sim, em um estado misturado similar a 'cones de neve', uma mistura de água e gelo macerado - no caso, partículas sub-micrométricas suspensas em água líquida.

         As análises também revelaram que a viscosidade desse filme aumentava drasticamente no sentido do ponto de fusão, alcançando um valor próximo de 2 ordens de magnitude maiores do que a água líquida a 0°C.

          Juntos, os resultados das medidas experimentais convergiram para uma inesperada e complexa reologia (ramo da mecânica que estuda as deformações e o fluxo da matéria) relativa ao derretimento da água durante a formação do filme. Ao contrário da água líquida 'simples', o filme sobre a superfície do gelo e na neve é um excelente lubrificante, indicando que o modelo descrevendo a fricção do gelo não pode assumir apenas mecanismos Newtonianos para o comportamento da água.

          Dois estudos mais recentes conduzidos por Lines et al. e publicados em 2021 (Ref.2) e em 2022 (Ref.3) também trouxeram evidência de suporte para a hipótese levantada no estudo de 2019. Lines et al. conduziu análises experimentais e teóricas, incluindo observações detalhadas envolvendo reais patinadores no gelo, e obteve resultados consistentes com a formação de camadas lubrificantes em zonas descontínuas de alta pressão e contendo uma mistura entre água e partículas de gelo na escala micrométrica (geradas pela interação entre a lâmina do patins e a superfície sólida do gelo) (Fig.1).

Figura 1. Interações entre o gelo e a lâmina do patins criando uma mistura lubrificante formada por água e partículas de gelo em zonas de alta pressão sobre a superfície do gelo. Energia térmica (calor), abrasão, pressão e maceração estariam agindo em conjunto para a criação e evolução da interface lubrificante ao longo da passagem [sulco] da lâmina. Ref.3


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> Válido realçar que existem outras hipóteses sendo testadas para explicar a natureza escorregadia do gelo. Por exemplo, dois estudos publicados no final de 2022 usando simulações computacionais em escalas atômicas e moleculares suportaram o modelo de "camadas quasi-líquidas" (Ref.4). Nesse sentido, teríamos a formação de um fino filme lubrificante exibindo propriedades intermediárias entre sólido e líquido, e caracterizado por alta viscosidade e, ao mesmo tempo, mantendo fluidez (Ref.5). Essas hipóteses podem ser complementares ou excludentes entre si. Para uma revisão das hipóteses hoje exploradas, acesse a Ref.2
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   REVESTIMENTO HIDROFÓBICO

           Para investigar o mistério do porquê a adição de substâncias hidrofóbicas - como a cera - leva a uma substancial redução na fricção do gelo, os pesquisadores no estudo de 2019 analisaram pequenas esferas de sílica de estrutura silânica (hidrofóbicas) e pequenas esferas de sílica (hidrofílicas) depositadas sobre o gelo. O tratamento hidrofóbico levou a uma drástica redução da fricção, de fator até 10, quando comparado com a superfície padrão de vidro (sílica, SO2). A redução de fricção se mostrou mais forte quando próximo do ponto de fusão (maior temperatura).

           As análises mostraram que o revestimento hidrofóbico parece afetar o acúmulo do filme intersticial, sugerindo que efeitos na escala nanométrica podem fortemente impactar na fricção macroscópica do gelo. No caso, os pesquisadores investigaram os efeitos apenas no gelo, realçando que a neve é um material bem mais complexo: poroso e envolvendo uma mistura de neve macia, gelo duro e água. Os organizadores de esportes de inverno usam revestimentos de cera que não são apenas hidrofóbicos, mas que também trazem compostos que tornam a dureza adequada para o solo de neve ou grãos de gelo visados. Mais estudos sobre esse tópico são necessários.


   (!) TEMPERATURA, PRESSÃO E VELOCIDADE

          O grau de fricção na superfície do gelo varia significativamente com a temperatura, pressão aplicada e velocidade do objeto deslizante (ex.: patins de gelo), em especial devido ao impacto desses fatores na dureza do gelo. 

          Em um estudo experimental publicado em 2021 no periódico Physical Review X (Ref.6), pesquisadores analisaram a fricção variante no gelo de objetos com três formas (uma grande esfera, uma pequena esfera e um modelo de patins) sob uma ampla faixa de temperatura de -120°C até -1,5°C. Eles encontraram que o gelo se torna mais duro a temperaturas mais baixas, enquanto a uma dada temperatura, a dureza aumenta com a velocidade de deslize. Nas mais baixas temperaturas, a fricção de deslize foi atribuída a moléculas de água sendo presas mais rigidamente na superfície. Essas moléculas se tornavam mais móveis pela ação de corte do objeto deslizante, e essa mobilidade se tornava maior - e a fricção menor - a temperaturas intermediárias. No entanto, a temperaturas maiores, a fricção aumentava por causa da redução na dureza que permitia o objeto deslizante penetrar mais profundamente no gelo, aumentando a superfície de contato.

          A penetração no gelo e rápido aumento da fricção com o aumento da temperatura mostrou variar dependendo do formato do objeto. Por exemplo, esse processo ocorria [a uma dada pressão] a cerca de -20°C para um pequena esfera, mas a cerca de -8°C para a maior secção dos patins (maior área de contato reduzindo a pressão de contato). A dependência da fricção em relação à pressão de contato é mediada pelo quanto da superfície do objeto está em contato com o gelo e se a pressão é suficiente para iniciar a penetração na superfície do gelo. Uma velocidade maior mostrou aumentar a dureza do gelo, implicando que quanto mais rápido é, por exemplo, o patins, menor é a penetração. 

Figura 2. Esse gráfico mostra como a dureza do gelo (ice hardness) diminui com o aumento da temperatura (ice temperature). A esfera se movendo ao longo da superfície (sliding sphere) irá penetrar a superfície (ploughing) quando a dureza do gelo fica abaixo da pressão de contato da esfera. Nesse caso, a esfera irá penetrar na superfície, experienciando cada vez mais fricção (friction) à medida que a temperatura aumenta e a dureza é reduzida. Ref.7


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> Deslizar sobre o gelo é largamente dependente da temperatura e - sob pressão de contato significativamente menor do que a dureza do gelo -  pode ser capturado com uma equação do tipo Arrhenius no regime elástico. Isso implica que um patins ideal para deslizar no gelo é aquele com lâminas muito lisas (para reduzir a área de contato) e com bordas afiadas (para penetrar o gelo em suficiente extensão e aumentar a fricção necessária para acelerar e virar).
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          Relevante, o estudo mostrou que o gelo permanece muito escorregadio mesmo a velocidades  muito baixas - ex.: 1 μm/s a −20 °C -  contrariando a ideia de que energia térmica liberada e aquecendo a superfície do gelo é um fator importante para criar uma efetiva camada lubrificante. Aliás, a facilidade de deslize não variou significativamente entre um patins de carbeto de silício e um patins de vidro, mesmo com a condutividade térmica desses materiais diferindo por 2 ordens de magnitude. Apesar disso, trabalhos mais recentes ainda suportam significativa contribuição térmica para explicar por que os patins de gelo deslizam tão facilmente sobre o gelo (Ref.3).


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   CONCLUSÃO

          No geral, estudos mais recentes têm encontrado inconsistências em modelos teóricos tradicionalmente estabelecidos para explicar a dinâmica de fricção na superfície do gelo. A complexa reologia do material intersticial parece ser um elemento chave, o qual não estava sendo historicamente considerado até o momento em favorecimento da descrição do filme lubrificante como um simples fluído Newtoniano. Mais estudos de alta qualidade ainda são necessários para testar as hipóteses e fornecer uma base mais sólida para a construção de um modelo teórico  mais compreensivo que descreva satisfatoriamente os mecanismos que governam a natureza tão escorregadia do gelo. Patinação no gelo é bem mais complicada do que parece...

Leitura recomendada: Por que o sal derrete o gelo?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. Canale et al. (2019). Nanorheology of Interfacial Water during Ice Gliding. Physical Review X 9, 041025. https://doi.org/10.1103/PhysRevX.9.041025
  2. Lever & Lines (2023). Ice-rich slurries can account for the remarkably low friction of ice skates. Journal of Glaciology, 69(274), 217-236. https://doi.org/10.1017/jog.2022.48 
  3. Lever et al. (2021). Revisiting mechanics of ice–skate friction: From experiments at a skating rink to a unified hypothesis. Journal of Glaciology, 68(268), 337-356. https://doi.org/10.1017/jog.2021.97
  4. https://pubs.aip.org/aip/jcp/article-abstract/157/23/234703/2842580/A-new-mechanism-of-the-interfacial-water-film
  5. https://www.pnas.org/doi/abs/10.1073/pnas.2209545119
  6. Liefferink, R. W., Hsia, F.-C., Weber, B., & Bonn, D. (2021). Friction on Ice: How Temperature, Pressure, and Speed Control the Slipperiness of Ice. Physical Review X, 11(1). https://doi.org/10.1103/PhysRevX.11.011025
  7. https://physics.aps.org/articles/v14/20