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'Luta ou Fuga' é disparada por um hormônio do osso e não pela adrenalina, conclui estudo


- Atualizado no dia 19 de janeiro de 2024 -

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           Quando nos deparamos com uma situação de perigo (predador ou uma súbita ameaça), todos sabem o que ocorre: o coração dispara, a respiração acelera, a pupila é dilatada e mais glicose é liberada no corpo para nos preparar para lutar (maior agressividade) ou para fugir. Essa é uma resposta aguda ao estresse compartilhada por quase todos os vertebrados e conhecida como "luta ou fuga". As mudanças fisiológicas associadas com essa resposta sempre foram pensadas serem engatilhadas, pelo menos em parte crucial, pelo hormônio adrenalina, porém, um estudo publicado em 2019 no periódico Cell Metabolism (Ref.1) derrubou essa ideia, ao mostrar que o real protagonista nessa história é o nosso esqueleto.

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   ADRENALINA 

          Primeiro isolada e identificada no início do século XX, o hormônio adrenalina - também chamado de epinefrina - é produzido nas glândulas adrenais e é melhor conhecida pelos farmacologistas como uma substância que possui profundos efeitos no sistema cardiovascular. Em geral, os efeitos da administração exógena de adrenalina sobre o sistema cardiovascular são similares à estimulação do nervo simpático.




          De fato, a adrenalina possui poderosos efeitos dose-dependentes sobre o sistema cardiovascular. Injeções intravenosas de adrenalina rapidamente produzem um forte efeito vasopressor como um resultado de profunda vasoconstrição, um aumento no ritmo e na força de contração do coração, automaticidade celular miocardial aumentada, broncodilatação, aumento do ritmo respiratório e redistribuição de sangue em direção ao cérebro, coração e musculatura esquelética, e longe da pele, rins e intestino. Isso justifica o uso de adrenalina em tratamentos de emergência nos hospitais, como para a fibrilação ventricular aguda e para a parada cardíaca.

           No entanto, é válido mencionar que a adrenalina não é de grande importância para a manutenção da homeostase cardiovascular.

          Além do seu papel no sistema cardiovascular, a adrenalina, junto com o hormônio pancreático glucagon, participa da resposta contra-regulatória à hipoglicemia, aumentando a concentração plasmática de glicose ao promover gliconeogênese e ao reduzir a absorção desse carboidrato pelo tecido musculoesquelético.

          Por causa dos seus poderosos efeitos cardiovasculares e interferência no metabolismo de glicose, e maior liberação durante momentos de perigo imediato, a adrenalina foi sempre pensada de ser essencial na orquestra de efeitos levando o animal à situação de lutar ou fugir pela sua vida frente ao perigo.

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   LUTA OU FUGA

          A resposta aguda ao estresse (RAE) é um processo fisiológico fortemente conservado no curso evolucionário que visa manter ou restaurar a homeostase em animais encarando um perigo imediato. Tal perigo produz um aumento na temperatura e no gasto de energia corporal, maior ritmo cardíaco, dilatação da pupila, respiração mais rápida, entre outras manifestações.

          O sistema nervoso simpático que libera catecolaminas (adrenalina, noradrenalina, etc.) nos órgãos periféricos foi sempre considerado ser o mediador principal da RAE nos vertebrados. Em adição, hormônios glicocorticoides circulantes emergem durante um RAE, sugerindo que um mediador endócrino do RAE pode existir. Como esteroides, hormônios glicocorticoides agem principalmente - apesar de não exclusivamente - no nível transcricional e precisam de horas para regular processos fisiológicos, algo que parece inconsistente com a necessidade de uma resposta imediata.

          Isso sugere que outros hormônios, possivelmente peptídicos, podem mediar a RAE.

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   OSTEOCALCINA

          Apesar da fama da adrenalina, um novo estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Columbia, EUA, e publicado na Cell Metabolism, mostrou que os vertebrados ósseos (clado Euteleostomi, o qual engloba os peixes e tetrápodes) não conseguem produzir os efeitos do 'luta ou fuga' sem o esqueleto. Os pesquisadores encontraram em ratos e em humanos que, quase imediatamente após o cérebro reconhecer perigo, esse último instrui o tecido ósseo a liberar na corrente sanguínea o hormônio osteocalcina, o qual é necessário para a RAE.

"Em vertebrados ósseos [peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos], a resposta ao estresse agudo não é possível sem a osteocalcina", disse um dos autores do estudo Gérard Karsenty, PhD do Departamento de Genética e Desenvolvimento da Universidade de Columbia (Ref.3). "Isso completamente muda o modo como pensamos a resposta ao estresse agudo."

          Osteocalcina é um peptídeo osteoblasto-derivado encontrado principalmente na matriz óssea, mas também na circulação sanguínea, e se liga com alta especificidade a componentes minerais nos ossos, onde garante adequada cristalização. A síntese desse peptídeo - o qual carrega três resíduos do ácido gama-carboxiglutâmico (Gla) visando aumentar a afinidade com os ossos - é regulada por numerosos hormônios, incluindo glicocorticoides. Após sofrer decarboxilação, a osteocalcina perde grande parte da sua afinidade óssea, e é então liberada na corrente sanguínea onde pode funcionar como um hormônio endócrino. Expressa pelo gene Osteocalcin, a osteocalcina é a 10° proteína mais abundante do corpo (Ref.15).

          Previamente ao estudo na Cell, o mesmo time de pesquisadores tinha revelado há cerca de uma década que o esqueleto liberava osteocalcina, hormônio este que viaja através da corrente sanguínea para afetar as funções biológicas do pâncreas, do cérebro, dos músculos e de outros órgãos. Uma série de estudos subsequentes mostraram que a osteocalcina ajuda a regular o metabolismo ao aumentar a habilidade das células de absorver glicose, melhora a memória, e ajuda os animais a correrem mais rápido com maior resistência (aumenta a capacidade de exercícios físicos ao estimular as miofibrilas musculares). Aliás, os níveis de osteocalcina circulante caem acentuadamente na meia idade em espécies de animais diversas, desde ratos até humanos, acompanhando outros declínios de funções fisiológicas com o avanço da idade, como fertilidade, memória e capacidade física (Ref.11). Evidências acumuladas apontam que a osteocalcina possui  regula múltiplos aspectos fisiológicos do organismo, desde cognição até reprodução, e frequentemente atuando como uma reguladora de moléculas regulatórias, como insulina, testosterona, hormônios esteroides adrenais, vários neurotransmissores no cérebro e na periferia nervosa, entre outros (Ref.15).

Exemplo de atuação da osteocalcina (OCN) no corpo: controle coordenado endócrino da fertilidade e metabolismo energético. O esquema ilustrado mostra o efeito desse hormônio (círculo vermelho) sobre as células de Leydig nos testículos e nas células-Beta (β-cells) do pâncreas, e também o feedback no qual insulina regula a osteocalcina liberada dos ossos. Receptores proteicos da osteocalcina (Gprc6a) e da insulina retratados nas estruturas em azul claro e verde, respectivamente. Ref.11

           Nesse sentido, surgiu a suspeita: será que esse hormônio também afeta a resposta aguda ao estresse?

          Para responder essa questão, os pesquisadores apresentaram ratos à urina de predadores e a outros agentes de estresse, e observaram as mudanças na corrente sanguínea desses roedores. Dentro de 2 a 3 minutos, eles viram os níveis de osteocalcina dispararem. Do mesmo modo, ao realizar experimento similar com seres humanos, os pesquisadores encontraram que o nível desse hormônio também se elevava quando os participantes eram expostos a situações de estresse.

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> Seguindo a exposição ao estresse, níveis circulantes de osteocalcina aumentam em 4X dentro de 2 minutos (Ref.11).
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         Quando os níveis de osteocalcina aumentavam, o ritmo cardíaco, a temperatura corporal e os níveis de glicose sanguínea também aumentavam nos ratos à medida que a RAE emergia.

          Em contraste, quando ratos geneticamente modificados para serem incapazes de produzir osteocalcina ou terem os receptores desse hormônio eliminados, eram colocados em frente ao perigo, a resposta de reação não era forte. Esses ratos teriam uma vida curta no meio selvagem.

          E, para sedimentar de vez a proposta teórica, os pesquisadores injetaram diretamente osteocalcina em ratos saudáveis e não-modificados. Resultado? Uma RAE era disparada mesmo sem ameaça em volta.

          A osteocalcina permite a manifestação de uma robusta e dramática resposta ao estresse ao sinalizar os neurônios parassimpáticos pós-sinápticos a inibirem suas atividades, deixando portanto o tônus simpático sem oposição.


          Aliás, tratamento de osteoblastos com o neurotransmissor excitatório glutamato rapidamente aumenta a produção de osteocalcina, e terminações nervosas glutamatérgicas podem ser encontradas imediatamente adjacentes aos osteoblastos nos ossos. Portanto, isso reforça o modelo proposto de que na RAE é aumentada a sinalização simpática ao osso o qual, por sua vez, rapidamente promove a produção osteoblástica de osteocalcina. A osteocalcina, então, se liga ao receptor Gprc6a expressado nos neurônios parassimpáticos para promover efeitos metabólicos e neuromusculares que caracterizam a RAE.

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   ADRENALINA NÃO É NECESSÁRIA PARA O 'LUTA E FUGA'

           O impactante achado também explica o porquê de animais sem glândulas adrenais e pacientes humanos com tais glândulas danificadas (incapazes de produzir adrenalina e outros hormônios adrenais) conseguirem desenvolver uma resposta aguda ao estresse. Nesse sentido, esses casos seriam caracterizados por uma genética favorável à produção de uma maior quantidade de osteocalcina.

"Isso nos mostra que níveis circulantes de osteocalcina são suficientes para disparar a resposta aguda ao estresse", disse Karsenty. "Se você pensar nos ossos como algo que evoluiu para proteger o organismo do perigo - o crânio protege o cérebro de traumas, o esqueleto permite vertebrados escaparem de predadores, e ainda os ossos no ouvido nos alertam de algo se aproximando - as funções hormonais da osteocalcina começam a fazer sentido."

           Considerando que os ossos evoluíram como um meio para os animais escaparem de perigos diversos, os pesquisadores do estudo de 2019 trabalharam com a ideia inicial de que o sistema ósseo também estaria envolvido na resposta aguda ao estresse, ativada na presença de perigo. E, de fato, a hipótese foi confirmada. Aliás, o estudo corrobora resultados publicados em 1995 por Patterson-Buckendahl et al. (Ref.4), os quais parecem ter sido os primeiros a encontrarem que a clássica resposta "lute ou fuja" em ratos provoca um aumento nos níveis sanguíneos de osteocalcina, propondo que essa proteína tinha um papel importante na resposta ao estresse.

           Até o momento, o novo modelo teórico proposto por Borger et al. não foi desafiados por novas evidências (!). Pelo contrário, cada vez mais estudos vêm mostrando que o sistema ósseo está envolvido com diversas funções no corpo de mamíferos, se comunicando bidirecionalmente com vários órgãos, incluindo em especial o cérebro (Ref.13). A osteocalcina tem sido consistentemente implicada no metabolismo de glicose, na regulação da fertilidade masculina (promovendo a síntese de testosterona nos testículos) e até mesmo em funções neurológicas associadas à memória, ansiedade, cognição e ao humor (Ref.5-9). Esse hormônio é capaz de atravessar a placenta e atuar de forma importante no desenvolvimento do hipocampo e na neurogênese durante o desenvolvimento fetal (Ref.13). Outras duas notáveis substâncias produzidas pelo tecido ósseo que parecem exercer efeitos endócrinos é a esclerostina, uma glicoproteína expressada predominantemente por osteócitos maduros e melhor conhecida como uma reguladora na formação óssea - e o fator de crescimento de fibrolastos 23 (FGF23), produzido principalmente por osteócitos, mas cuja síntese se estende para vários outras fontes celulares, como macrófagos, cardiomiócitos e células epiteliais nos rins. (Ref.7, 9).

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> Além do receptor Gprc6a, a osteocalcina também interage com os receptores Gpr158 e Gpr37 no cérebro (Ref.11, 14). É sugerido que esse hormônio pode estar associado com funções cerebrais diversas além da memória, incluindo processamento de dor, cognição e ansiedade, e mediando de forma crucial o eixo cérebro-osso. Recentemente emergiu inclusive como potencial opção terapêutica para o Alzheimer (Ref.13).
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          Aliás, um estudo publicado em 2021 no periódico The Journal of Clinical Investigation (Ref.12) mostrou que a osteocalcina aumenta a síntese de hormônios glicocorticoides nas glândulas adrenais, e também parece ser crucial para o desenvolvimento adrenal durante a embriogênese. Durante a resposta aguda ao estresse, a liberação de osteocalcina é diretamente responsável pelo aumento de corticosterona circulante!


   (!) ESTRESSE E OSTEOCALCINA

           É válido mencionar que os níveis de osteocalcina diminuem em pacientes com infarto agudo do miocárdio, uma situação altamente estressante. O mesmo parece se aplicar para situações associadas a estresse mental. Nesse sentido, em um comentário publicado em 2020 no periódico Current Medical Research and Opinion (Ref.10), pesquisadores sugeriram que a osteocalcina aumenta seus níveis circulatórios apenas em resposta ao estresse agudo (RAE) envolvendo movimento esquelético (em particular, a situação de 'fuga ou luta'). Na ausência de movimento esquelético, os níveis circulatórios desse peptídeo provavelmente seriam diminuídos pela ação de glicocorticoides. Durante uma RAE, movimento esquelético atuaria promovendo a produção em excesso de osteocalcina, e não o contrário como propuseram Berger et al., para então levar aos efeitos fisiológicos característicos da RAE.

          Portanto, no modelo modificado, o agente estressante ativa o sistema nervoso central e, este, ativa movimento esquelético que, por sua vez, estimula a produção e liberação de osteocalcina. Na circulação sanguínea, a osteocalcina inibe o tônus parassimpático. 

          No comentário, os pesquisadores também propuseram que manipulação do nível de osteocalcina pode ser útil em pacientes com infarto agudo do miocárdio. Reduzir os níveis de osteocalcina na circulação sanguínea pode aumentar a atividade do tônus parassimpático, contrabalanceando o alto tônus simpático observado nessa séria emergência médica. 


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. Berger et al. (2019). Mediation of the acute stress response by the skeleton. Cell Metabolism 30:890–902.e8. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1550413119304413 
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26896587 
  3. https://www.cuimc.columbia.edu/news/bone-not-adrenaline-drives-fight-or-flight-response
  4. Patterson-Buckendahl et al. (1995). Regulation of plasma osteocalcin by corticosterone and norepinephrine during restraint stress. Bone, 17(5):467-72. https://doi.org/10.1016/8756-3282(95)00281-x
  5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7593639/
  6. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7409776/
  7. Wang et al. (2021). Sclerostin and Osteocalcin: Candidate Bone-Produced Hormones. Frontiers in Endocrinology, 12:584147. https://doi.org/10.3389/fendo.2021.584147
  8. Gerosa & Lombardi (2021). Bone-to-Brain: A Round Trip in the Adaptation to Mechanical Stimuli. Frontiers in Physiology, 12:623893. https://doi.org/10.3389/fphys.2021.623893
  9. Jaschke et al. (2021). Skeletal endocrinology: where evolutionary advantage meets disease. Bone Research 9, 28. https://doi.org/10.1038/s41413-021-00149-x
  10. Tian et al. (2020). Osteocalcin in acute stress response: from the perspective of cardiac diseases. Current Medical Research and Opinion, 1–1. https://doi.org/10.1080/03007995.2020.1723073
  11. Karsenty & Berger (2022). Osteocalcin and the physiology of danger. FEBS Letters, Volume 596, Issue 5, Pages 665-680. https://doi.org/10.1002/1873-3468.14259
  12. https://www.jci.org/articles/view/153752
  13. https://www.nature.com/articles/s41420-023-01343-y
  14. Silva et al. (2023). Hyperglycemic microenvironment compromises the homeostasis of communication between the bone-brain axis by the epigenetic repression of the osteocalcin receptor, Gpr158 in the hippocampus. Brain Research, Volume 1803, 148234. https://doi.org/10.1016/j.brainres.2023.148234
  15. Karsenty, G. (2024). Osteocalcin: A Multifaceted Bone-Derived Hormone. Annual Reviews, Vol. 43:55-71. https://doi.org/10.1146/annurev-nutr-061121-091348