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Terapia com veneno de abelha é algo efetivo e seguro?


- Artigo atualizado no dia 9 de setembro de 2018 -

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         A recente morte de uma mulher Espanhola de 55 anos devido à uma severa reação alérgica durante uma sessão de acupuntura via terapia com veneno de abelha reascendeu os alertas das agências e de especialistas na área de saúde. A administração de veneno dos insetos do gênero Apis na busca por supostos efeitos benéficos para variados problemas de saúde, no geral, não é segura ou aconselhada pela comunidade médica. A mulher de 55 anos, por exemplo, era tolerante às picadas de abelha e já vinha recebendo o tratamento alternativo há 2 anos. A reação adversa foi inesperada, e esse é o maior perigo.

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   TERAPIA APITÓXICA

         A apiterapia é um tipo de medicina alternativa que utiliza produtos das abelhas - comumente as do gênero Apis, pertencente à família Apidae -, como o mel, o pólen, a geleia real e as apitoxinas. Nesse último, temos uma popular terapia que utiliza o veneno de abelha de forma especializada para alegadamente tratar uma infinidade de problemas de saúde.

         O uso de veneno de abelha como um agente terapêutico pode ser traçado até Hipócrates (460 a.C. - 370 a.C.) - Grego considerado por muitos o "pai da medicina ocidental" -, e possui referências em textos do Antigo Egito e da Antiga China. No Leste Asiático, data, no mínimo, desde o segundo século a.C. Esse tipo de terapia é amplamente usada na América do Sul, Leste Europeu e na Ásia. Muitos dos alegados efeitos benéficos do veneno desses insetos são atribuídos em grande parte à presença de melitina, um agente anti-inflamatório conhecido por ser centenas de vezes mais forte do que a cortisona.

        Geralmente, o tratamento apitóxico começa testando o paciente para possíveis alergias ao veneno, esta a qual atinge cerca de 1% da população. O veneno é, então, administrado na forma de uma picada de abelha direta ou por outros meios de inoculação do extrato do veneno. O tratamento é normalmente dado duas vezes por semana.

        Uma modalidade bem popular da terapia apitóxica é a sua união com a acupuntura (1), onde o veneno extraído, processado e diluído é aplicado em pontos de acupuntura ou outros pontos relevantes dependendo da doença sendo visada.


         (1) Para saber sobre essa medicina alternativa de forma isolada, acesse: Qual é a eficácia da acupuntura?

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   EFICÁCIA?

        Profissionais da apiterapia e certos estudos alegam que o veneno das abelhas trazem efeitos terapêuticos benéficos e significativos para uma série de condições e doenças. Há muito tempo acreditasse que a terapia apitóxica é efetiva no tratamento de atrite reumatoide, bursite, tendinite, herpes zóster, esclerose múltipla, feridas diversas, mal de Parkinson, gota, queimaduras, dores no corpo, infecções e até mesmo um potencial auxiliar no combate ao câncer. E isso apenas para citar alguns exemplos. Mas o que as reais evidências científicas têm a dizer?

         A apiterapia como um todo não possui uma base científica conclusiva sobre seus efeitos terapêuticos alegados. Nesse bolo, o uso do veneno das abelhas é o mais analisado de longe. Na literatura acadêmica (Ref.3-9), revisões isoladas, revisões sistemáticas e meta-análises, apesar de encontrarem um ou outro estudo de qualidade aceitável sugerindo efeitos benéficos do uso de veneno de abelha, não conseguem trazer uma sólida conclusão. As evidências são muito fracas, limitadas, escassas e heterogêneas, e a esmagadora maioria dos estudos clínicos relativos ao tema são de baixa qualidade e grande parte é oriunda de regiões específicas da Ásia, especialmente da Coréia do Sul.

       Os efeitos farmacológicos do veneno de abelha parecem possuir um relativo maior peso de evidências de eficácia para o tratamento de dores no corpo - como dor crônica na parte inferior das costas -, quando existe uma associação com a acupuntura. Já um estudo in vivo e in vitro recente, publicado no British Journal of Pharmacology (Ref.17), encontrou que o veneno da abelha - em especial seu principal componente, a melitina - pode ser efetivo para o tratamento de dermatites atópicas (ou eczemas), via supressão de inflamações mediada por mecanismos atuantes em células imunes e moléculas inflamatórias.

        Porém, independentemente da qualidade das evidências, favoráveis ou não, o maior problema do uso de veneno de abelha são os riscos associados, os quais tendem a superar os alegados benefícios em muitos casos. Para piorar, as evidências publicadas sobre a segurança desse tipo de terapia também são muito escassas e limitadas.

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   TOXICIDADE

        A composição química do veneno de insetos na ordem Hymenoptera - da qual as abelhas e as vespas fazem parte - é bastante complexa, englobando uma mistura de vários tipos de compostos, proteínas, peptídeos, enzimas e outras moléculas menores. Essa mistura inclui primariamente substâncias ativas que visam exercer efeitos tóxicos, já que o veneno nos seres vivos evoluiu justamente para causar danos em outros seres vivos.

        O veneno das abelhas pode causar sérias reações em indivíduos sensíveis, incluindo reações sistêmicas ou anafiláticas. Diversos dos seus compostos podem agir como alergênicos, causando a liberação de mastócitos mediadores - células do tecido conjuntivo que contém no seu interior uma grande quantidade de grânulos cheios de histamina (substância envolvida nos processos de reações alérgicas) e heparina (uma substância anticoagulante) - e um espectro de reações alérgicas que podem ir de inchaços locais suaves até reações sistêmicas severas, choque anafilático ou mesmo morte. Além disso, repetidas exposições aos alergênicos carregam um maior risco de reações alérgicas severas na população em geral.

       Estudos epidemiológicos em países desenvolvidos já mostraram que até 3% da população adulta possui uma reação sistêmica à picada de abelha, enquanto cerca de 25% podem ter um risco alérgico indicado por testes de pele para anticorpos específicos. Além disso, nossa capacidade de predizer reações sistêmicas ao veneno de abelha é limitada, onde muitos sintomas, como urticárias, depressão respiratória e hipotensão, podem ocorrer não imediatamente durante os testes de sensibilidade, se manifestando posteriormente ou de forma não facilmente detectável.

       Em um estudo de revisão sistemática e meta-análise publicado na PLOS ONE em 2015 (Ref.10), os pesquisadores encontraram que, em um total de 145 estudos englobando 4844 participantes, a incidência de eventos adversos era de 28,87% entre os pacientes submetidos à terapia apitóxica, e que as reações sérias atingiram 14,06% desse total. Isso mostra o quão comum são as complicações durante esse tipo de terapia. E são vários os casos isolados de sérias complicações que levaram inclusive à morte recente de um paciente.

         No dia 23 de março deste ano, um caso na Espanha foi reportado no Journal of Investigational Allergology and Clinical Immunology (Ref.11) de uma mulher Espanhola de 55 anos que morreu durante uma sessão de apiterapia. Ela vinha atendendo às sessões a cada 4 semanas durante 2 anos, sempre mostrando grande tolerância às picadas de abelha. Seu objetivo era melhorar o estresse e sua capacidade muscular. A paciente não possuía recorde de nenhuma outra doença (asma, problemas cardíacos, etc.), outros fatores de risco, reações prévias aos insetos da ordem Hymenoptera, ou atopia (reação alérgica apenas minutos depois do contato com o alergênico). Porém, durante uma sessão rotineira de apiterapia, ela desenvolveu respiração ruidosa e difícil, e súbita perda de consciência imediatamente após a picada da abelha. Os "profissionais" conduzindo as picadas não tinham adrenalina para ser aplicada via intramuscular, com a ambulância chamada demorando 30 minutos para chegar. Recebendo tratamentos de emergência no Hospital Universitário Ramon y Cajal, em Madrid, a mulher acabou não resistindo e morreu semanas depois com falhas em múltiplos órgãos.

        Já em outro caso, reportado em 2011 no World Journal of Hepatology (Ref.13), uma paciente de 35 anos de idade acabou desenvolvendo uma séria intoxicação no fígado seguindo uma sessão de apiterapia onde ela recebeu a picada de 10 abelhas em seus braços e pernas. A paciente já tinha um histórico de icterícia (amarelamento da pele, com provável causa sendo danos no fígado) durante o recebimento de uma apiterapia que durou 5 anos. Logo após a nova sessão, a paciente descreveu bastante fatiga, e, após vários dias, um quadro de anorexia, mudança anormal na cor da urina e amarelamento da esclera surgiu devido a uma progressiva reação hepática adversa com o veneno das abelhas. Recebendo tratamento no hospital, a paciente se recuperou do quadro de hepatoxicidade.

        Tudo isso faz com que a eficácia e a segurança da terapia apitóxica não sejam aprovadas pelas autoridades de alimentos e medicamentos ao redor do mundo. Especialistas na área de alergia não recomendam o uso do veneno de abelhas para práticas terapêuticas, com exceção talvez da imunoterapia na prevenção de severas reações anafiláticas contra picadas de abelhas e vespas em indivíduos sensíveis (1).

       (1) A Venom Immunotheray (VIT) - imunoterapia para venenos - é o único tratamento efetivo para a prevenção de reações anafiláticas relacionadas às picadas de abelhas e vespas em indivíduos alérgicos. É um procedimento que carrega significativos riscos, devendo ser realizado estritamente por profissionais muitos bem capacitados e ambientes equipados com recursos para lidar com severos casos de reações alérgicas (Ref.14-15).

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   CONCLUSÃO

        Alguns dos componentes do veneno de abelha possuem efeitos anti-inflamatórios e anti-nociceptivos, enquanto alguns possuem efeitos tóxicos e prejudiciais, e alguns outros possuem ambos, benéficos e adversos, para diferentes condições. Essa mistura possui o potencial de gerar efeitos positivos para alguns indivíduos, mas também possui o potencial de trazer graves prejuízos para outros. É essa incerteza terapêutica que torna a terapia apitóxica mais do que controversa e não apoiada pelas agências de saúde, existindo inúmeros casos de eventos adversos e sérias complicações relacionados. Além disso, a falta de evidências mínimas para o suporte de várias alegações de benefícios significativos à saúde da apiterapia colabora ainda mais para o balanço negativo dessa medicina alternativa.

        Os pacientes que mesmo assim resolvam optar pela apiterapia com o uso de veneno precisam estar previamente informados dos perigos associados. Profissionais que praticam a terapia apitóxica precisam ser muito bem capacitados e treinados para lidarem com severas reações adversas. Somando-se a isso, o ambiente da prática precisa conter instalações adequadas para o manejamento eficiente de quadros anafiláticos e rápido acesso à unidades de tratamento intensivo. No entanto, como tais pré-requisitos recomendados por profissionais de saúde sérios não podem ser atendidos em grande parte das vezes para esse tipo de atividade, mais uma vez fica o alerta de que a apiterapia não é algo aconselhável.


OBS.: Nos últimos anos, pesquisadores estão isolando os componentes ativos no veneno de abelhas e outros insetos da ordem Hymenoptera que trazem apenas benefícios ao corpo, para a produção de medicamentos efetivos e seguros (Ref.16). Entre as principais substâncias sendo pesquisadas temos a melitina, apamina e o mastoparano. Essa, sim, seria a forma correta de explorar o veneno desses animais.


Artigo relacionado: A Homeopatia funciona?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2946189/
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4516920/
  3. http://bmjopen.bmj.com/content/4/11/e006140.short
  4. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25380812
  5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18226968
  6. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1062163/
  7. http://www.koreascience.or.kr/article/ArticleFullRecord.jsp?cn=HHJHBQ_2016_v26n3_67
  8. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2095496415601789
  9. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0965229917303357
  10. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4440710/
  11. http://www.jiaci.org/revistas/vol28issue1_6-2.pdf
  12. http://www.bbc.com/news/health-43513817
  13. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3208180/
  14. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/cea.12728
  15. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1744666X.2018.1413350
  16. http://www.mdpi.com/2072-6651/7/4/1126/htm
  17. https://bpspubs.onlinelibrary.wiley.com/journal/14765381