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Cura do vício, Igreja Universal e Record


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            Ontem à noite, no começo da madrugada, estava preparando a janta e resolvi ligar a televisão para fazer aquela clássica vasculhada de canais e ver se achava algo para me distrair. Passando pelos canais abertos, paro em um programa que estava sendo iniciado na Record sobre o vício em drogas. Esperançoso em ter encontrado um documentário bacana sobre esse grave problema (sério, eu estava realmente com grandes expectativas), começo a ouvir dados sobre o vício aqui no Brasil (até aí tudo bem) até que, de repente, meus olhos se arregalam ao ouvir, do nada, a seguinte frase: "A medicina e a ciência dizem que o vício não tem cura, mas eu digo para vocês que o vício tem cura sim, porque ele é um espírito maligno no seu corpo e a Universal pode ajudar vocês". Sério, fiquei olhando para aquilo não acreditando nos meus ouvidos e em como algo do tipo pode passar na televisão aberta.

           Segundo o pastor apresentando o programa, bastava que você fosse nas grandes sessões da Universal e ter o espírito tirado do seu corpo. Depois de 3 minutos do tratamento (3 minutos!) o cheiro de um narcótico antes uma tentação para o viciado, se transforma em um cheiro repulsivo para "ex-viciado". E o mais ridículo é o pessoal mostrando um teatro na frente da massiva plateia, "provando" a cura divina. Mas o pior ainda é eles terem menosprezado e difamado a real medicina científica em um veículo de mídia altamente popular no Brasil. Eles afirmavam que a medicina e a ciência "abandonaram o viciado às suas mazelas", "por serem incompetentes em admitir que o vício é um espírito demoníaco". Isso é inaceitável e deveria sofrer sanções judiciais.

          Como eu já disse aqui várias vezes, eu não critico nenhuma manifestação cultural e religiosa que respeitem o ser humano e que reforcem os laços de união na comunidade, mas quando são usados para um comércio de mentiras e difamações infundadas, isso se torna um crime que deve ser combatido. E outras grandes emissoras estão indo para o mesmo caminho, como a Band.

          Primeiro de tudo: a medicina não diz que o vício não possui cura. Dependendo do vício, e da sua intensidade, ele pode, sim, ser curado. Mesmo que em muitos casos a cura não seja possível, o vício, assim como qualquer outra doença crônica, pode ser manejado para tornar a vida da pessoa o mais saudável e normal possível - podemos nos lembrar da diabetes e da Aids, por exemplo. Mas tanto a cura e o controle do vício devem ser feitos com a ajuda de profissionais, em um programa paciente e progressivo, o qual pode utilizar terapias sociais e, dependendo da necessidade, medicamentos específicos e/ou internações. As substâncias químicas viciantes, como a nicotina, as metanfetaminas e o álcool (etanol), modificam sua estrutura e resposta neurais, afetando fortemente suas sensações de prazer e necessidades. Não, meus caros, não é um ser maligno apoderando das rédeas do seu cérebro, e, sim, uma bioquímica bastante complexa, a qual envolve até mesmo fatores genéticos.

          Na imagem abaixo, podemos ver as leituras cerebrais de um indivíduo saudável, um viciado e um cérebro em recuperação (percebam que ele está voltando a ter seus sinais nervosos normalizados) após 14 meses de tratamento efetivo contra o vício da metanfetamina. Inúmeros trabalhos nesse campo estão sendo efetuados para destrinchar as essências bioquímicas do mecanismo de vício, com o objetivo de projetar melhores tratamentos. Fatores genéticos antes impossíveis de serem desvendados estão sendo entendidos com extrema precisão com os avanços da engenharia genética, e fatores de transcrição, como o 'cAMP response element binding protein' (CREB) são certos de estarem associados com as causas do vício. Medicamentos que visem esses processos podem trazer curas globais para a dependência química. A ciência NUNCA abandonou e nem irá abandonar os mais necessitados.

  
             Para a maioria das pessoas atingidas pelo vício, o melhor tratamento é aquele que reúne uma terapia comportamental (reuniões de grupo, aconselhamento psicológico, etc.) com o uso de medicamentos específicos. Estes últimos, entre outras ações, irão diminuir os sintomas psicológicos de abstinência, os quais são um dos maiores desafios durante o processo de afastamento das drogas. E não se enganem, o percurso é longo e árduo, e está longe dos 3 minutos de exorcismo encenado passado pela Igreja Universal e pela irresponsável Record. Recaídas pelo caminho, como ocorre com doenças crônicas como a diabetes tipo 1, asma e hipertensão (os sintomas, e problemas associados, voltam a surgir por descuidos acidentais), são normais e não devem ser encaradas como desânimo, e, sim, como pedras a serem retiradas de uma estrada que conduzirá o indivíduo pelo verdadeiro caminho da libertação, por vias científicas sérias, e não pelo charlatanismo barato. A presença da família e amigos é de fundamental importância nessa hora, dando suporte em todo momento de difícil transição, especialmente em casos mais graves, onde a internação acaba sendo necessária.

As funções cerebrais do viciado mudam completamente na área relacionada à dopamina e sistemas de recompensa do corpo. Em ordem: Cocaína, Metanfetamina, Álcool (etanol), Heroína

           O primeiro passo é reconhecer a presença do vício e procurar ajuda. Mas não corra para feitiçarias ou promessas de milagres instantâneos. Além disso não resolver em nada o seu problema, pode até agravar o seu quadro de saúde por adiar a aplicação de um real e efetivo tratamento. Comunique sua família e busque pelos melhores centros de recuperação. O viciado, na maioria das vezes, está sofrendo mais do que se imagina e quer sair dessa vida, mas como o seu cérebro é atacado violentamente pelas substâncias de abuso, a simples 'vontade' de querer largar o vício não é algo tão simples assim. Por isso, o maior apoio emocional e médico possível é fundamental. E lembre-se: o seu vício não afeta negativamente só você, mas todos ao seu redor. Portanto seja responsável ao lidar com essa questão.

NOTA: Eu não sou contra culto ou entidade religiosa nenhuma, mas, por favor, usem o seu poder de influência popular para espalhar boa informação e trabalhos sociais de real importância. Não brinquem com a questão da vacinação, aborto, sexo seguro e vício como se fosse algo trivial. Se querem comercializar a fé, eu não ligo, mas usem o dinheiro para algo que preste. Porque vocês podem ter certeza, fiéis, que muitos líderes religiosos, a qualquer sinal de problema na saúde, irão correndo para o hospital. Não estou generalizando, porque sei que existem líderes comunitários religiosos que trabalham pelo bem comum da sociedade, mas a verdade está longe de abraçar só flores. Não é uma questão de ser ateu ou ser religioso, e, sim, uma questão de bom senso.

ATENÇÃO: Tratamentos projetados pela medicina alternativa, como a acupuntura, não são eficazes contra o vício. A via médica tradicional é a única que mostra reais bons resultados atualmente.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.drugabuse.gov/publications/drugs-brains-behavior-science-addiction/treatment-recovery
  2. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3898681/
  3. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1360-0443.2006.01586.x/abstract?userIsAuthenticated=false&deniedAccessCustomisedMessage=
  4. http://science.sciencemag.org/content/335/6068/601
  5. http://www.nature.com/npp/journal/v39/n2/abs/npp2013261a.html
  6. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0149763413000468