Aplicativos para a saúde mental realmente funcionam?
- Atualizado no dia 26 de janeiro de 2022 -
Hoje existem aplicativos para tudo. Desde redes sociais até serviços de transporte, parece que não existe nada não coberto pelos programas desenhados para os smartphones. Em média, um usuário de smartphone checa seu aparelho tão frequentemente quanto 150 vezes ao dia e cerca de 83% desses usuários não saem de casa sem o aparelho, criando um ambiente ideal para a promoção desses programas. Nos últimos anos, outra tendência nesse mercado tem crescendo exponencialmente: os aplicativos de saúde. E, ainda mais recente, temos em alta os aplicativos de saúde visando os transtornos mentais. Basta digitar 'depressão' ou 'depression' nas lojas de aplicativos da Apple e do Androide para uma lista com centenas de programas aparecerem na tela. Nessa lista, temos desde ferramentas de diagnóstico até ferramentas terapêuticas. Mas qual o suporte científico para esses aplicativos? O que a literatura médica diz sobre o assunto?
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GRANDE POTENCIAL
O fardo global associado à saúde mental continua aumentando, com doenças como depressão representando a maior fonte única de incapacidade ao redor do mundo. Estimativas colocam que cerca de 29% das pessoas ao redor do mundo irão experienciar um transtorno mental em algum momento da vida. E dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) mostram que, dessas pessoas, a maioria - acima de 55% nos países desenvolvidos e 85% nos países em desenvolvimento - não está recebendo o tratamento necessário. No mundo inteiro, o problema se aprofundou com a pandemia da COVID-19, devido a efeitos diretos e indiretos da doença.
Enquanto que tratamentos efetivos para transtornos mentais existem, incluindo uma variedade de terapias e medicamentos baseados em sólida evidência científica, o acesso a essas vias terapêuticas é limitado. Nos EUA, por exemplo, é estimado que seria necessário treinar e disponibilizar quase 4,5 milhões de novos profissionais de saúde mental para que a população Norte-Americana hoje recebesse total acesso a tratamentos adequados. Nesse sentido, os aplicativos de saúde nessa área podem preencher essa grande lacuna, alcançando pessoas antes inacessíveis pelas intervenções tradicionais.
De fato, estudos recentes têm indicado que os aplicativos possuem grande potencial para aumentar o acesso a serviços de saúde mental, especialmente considerando que o uso de smartphones está extremamente disseminado no mundo inteiro (Ref.10). Depressão durante a gravidez, por exemplo, afeta 38% das mulheres, e entre 6 e 19% - dependendo do país de referência - das mães sofrem de condições depressivas após o parto. Porém, por causa de fatores econômicos ou de negação dos sintomas, menos da metade dessas mulheres procuram tratamento profissional. Uma recente meta-análise (Ref.13) mostrou que uma intervenção psicológica via smartphone pode melhorar significativamente quadros de ansiedade a partir de aplicativos bem desenvolvidos para esse fim.
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PREOCUPAÇÕES E ALERTA
Apesar de possuírem um imenso potencial, e alguns deles serem desenvolvidos por excelentes profissionais de saúde, muitos aplicativos de auxílio psicológico não possuem suporte científico de eficácia. Na última década, vários estudos de revisão têm alertado que pouquíssimos aplicativos visando depressão, ansiedade, abuso de substâncias, transtornos bipolares, entre outros, têm passado por testes clínicos de efetividade, e, mesmo assim, muitos passando nesses testes não são submetidos a críticos estudos específicos de avaliação.
Em 2016, em meio à "bagunça" na área, um estudo de revisão (Ref.11) reforçou o alerta para que esses aplicativos fossem melhor trabalhados e submetidos a estudos clínicos de alta qualidade antes de serem liberados ao público. No estudo, os autores também sugeriram 16 requisitos que deveriam ser atendidos nos aplicativos de saúde mental; como seria praticamente impossível reuni-los em um único aplicativo, eles concluíram que o ideal seria a construção de múltiplos aplicativos visando diferentes partes do tratamento de um transtorno específico (Ref.11).
Já um estudo de revisão sistemática publicado em 2017 (Ref.12) mostrou que os aplicativos para saúde mental visando o público infantil, pré-adolescente e adolescente - onde cerca de 20% até os 18 anos possuem um problema de saúde mental diagnosticável - estavam se multiplicando de forma descontrolada e com insuficiente evidência de efetividade, realçando a necessidade de mais pesquisas para avaliar a segurança e o nível de real eficácia desses programas.
Mais recentemente, um robusto estudo de revisão sistemática de 14 meta-análises - englobando 145 estudos clínicos randomizados publicados até outubro de 2020 e envolvendo quase 48 mil participantes -, publicado no periódico PLOS Digital Health (Ref.15), falhou em encontrar convincente evidência de suporte para qualquer intervenção baseada em aplicativos. Os pesquisadores incluíram uma ampla variedade de intervenções terapêuticas via smartphones, incluindo aplicativos, uso de mensagens de texto, aplicativos integrados com sensores portáteis (ex.: Fitbits), assim como intervenções que combinam smartphone com suporte clínico adicional.
Por outro lado, os pesquisadores nesse último estudo encontraram evidência "altamente sugestiva" de que 8 das intervenções investigadas eram mais efetivas do que controles (grupos não recebendo qualquer tratamento), especialmente moderada evidência para o uso de mensagens de texto para aqueles buscando parar de fumar. Pequeno efeito benéfico no alívio de sintomas como ansiedade, depressão e estresse também foi encontrado. No geral, e apesar dos pesares, os resultados sugeriram que intervenções via smartphone são promissoras para moderada redução de sintomas psicológicos comuns.
Mesmo listas de aplicativos autorizados por órgãos governamentais têm revelado sérios problemas. Em março de 2013, o NHS britânico (´National Health Service´, na tradução ´Serviço Nacional de Saúde´) criou uma biblioteca de aplicativos voltados para essa área da saúde. Em setembro do mesmo ano, pesquisadores da Imperial College London encontraram que alguns desses aplicativos estavam vazando os dados pessoais dos "pacientes". E no final de 2015, um estudo feito pela University of Liverpool reportou que entre 14 aplicativos para ansiedade e depressão recomendados pelo NHS, apenas 4 deles tinham algum real estudo por trás e apenas 2 foram feitos usando-se testes e ferramentas válidas para certificar sua efetividade! Em 2017, o NHS retirou sua biblioteca do ar, admitindo falhas (1).
(1) Biblioteca da NHS removida do ar: HealthAppsLibrary
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A grande preocupação é que hoje é muito fácil fazer um aplicativo e camuflá-lo como algo profissional. Enquanto intervenções terapêuticas tradicionais demoram anos para serem desenvolvidas e estabelecidas na prática clínica, um aplicativo da mesma natureza leva, às vezes, pouco mais de 6 meses para ser criado. E como são muitos, é difícil fazer um controle rígido em cima desses programas. Basta publicar na Play Store e/ou na Apple Store, e, em breve, milhões já poderão estar baixando e usando o aplicativo, independentemente da sua qualidade.
E não são apenas a falta de efetividade comprovada e os vazamentos de dados os únicos problemas. Alguns aplicativos podem piorar a saúde dos usuários e não oferecem nenhuma forma de avaliar as pessoas sendo "tratadas". No caso específico dos aplicativos de saúde mental, uma recente investigação nos EUA mostrou que um certo aplicativo criado para diminuir o uso de bebidas alcoólicas entre estudantes universitários aumentou o consumo alcoólico entre os usuários do sexo masculino; outros aplicativos usados para o mesmo fim, avaliados pelo estudo, não surtiram nenhum efeito benéfico (Ref.2). Aliás, o estudo de revisão na PLOS One mencionado acima (Ref.13) alertou que nenhum estudo clínico randomizado analisado investigou a questão de segurança das intervenções por smartphone, focando apenas na efetividade.
Emergem nesse contexto dois grandes problemas enfrentados por todos esses aplicativos: acompanhamento do tratamento e escolha dos aplicativos em detrimento dos métodos tradicionais. O primeiro é bem óbvio: como conseguir acompanhar a evolução clínica dos usuários se não sabemos nem ao certo quem são eles? Quais são os horários de uso, qual é a opinião do paciente, onde ele usa o aplicativo? Isso talvez, só seria possível se houvesse um especialista orientando os passos do paciente junto com o aplicativo, mas aí surge o segundo problema.
Muitos, com vergonha da sua condição ou fragilidade em procurar ajuda profissional (usuários de drogas, depressão, distúrbios mentais diversos, etc.), podem acabar depositando toda a esperança de "cura" em aplicativos que podem nem ter sido alvos de estudos/testes adequados. Ao invés de pedir ajuda especializada, comprovada cientificamente e onde haverá contato humano (talvez o fator mais importante de todos), as pessoas sofrendo com esses males acabam ficando reclusas, trancadas com aplicativos suspeitos, algo que certamente afetará de forma negativa o prognóstico. E outra: se no momento que o paciente mais estiver precisando do aplicativo (pré-início de uma crise de esquizofrenia, por exemplo), a bateria do smartphone acabar, o que fazer? Parece bobo, mas é um problema prático que deve ser levado em conta.
CONCLUSÃO
Por enquanto, qual é o conselho dos especialistas? Não confiem totalmente nos aplicativos voltados para a área da saúde. Procure ajuda profissional antes e converse com um profissional de saúde responsável sobre um aplicativo que tenha lhe chamado a atenção. Com um acompanhamento médico, a escolha de um bom aplicativo pode potencialmente ajudar na recuperação do paciente. Mais rígidos estudos de avaliação e desenvolvimento nessa área são ainda necessários, além de efetiva fiscalização.
> Artigo relacionado: A homeopatia funciona?
Emergem nesse contexto dois grandes problemas enfrentados por todos esses aplicativos: acompanhamento do tratamento e escolha dos aplicativos em detrimento dos métodos tradicionais. O primeiro é bem óbvio: como conseguir acompanhar a evolução clínica dos usuários se não sabemos nem ao certo quem são eles? Quais são os horários de uso, qual é a opinião do paciente, onde ele usa o aplicativo? Isso talvez, só seria possível se houvesse um especialista orientando os passos do paciente junto com o aplicativo, mas aí surge o segundo problema.
Muitos, com vergonha da sua condição ou fragilidade em procurar ajuda profissional (usuários de drogas, depressão, distúrbios mentais diversos, etc.), podem acabar depositando toda a esperança de "cura" em aplicativos que podem nem ter sido alvos de estudos/testes adequados. Ao invés de pedir ajuda especializada, comprovada cientificamente e onde haverá contato humano (talvez o fator mais importante de todos), as pessoas sofrendo com esses males acabam ficando reclusas, trancadas com aplicativos suspeitos, algo que certamente afetará de forma negativa o prognóstico. E outra: se no momento que o paciente mais estiver precisando do aplicativo (pré-início de uma crise de esquizofrenia, por exemplo), a bateria do smartphone acabar, o que fazer? Parece bobo, mas é um problema prático que deve ser levado em conta.
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CONCLUSÃO
Por enquanto, qual é o conselho dos especialistas? Não confiem totalmente nos aplicativos voltados para a área da saúde. Procure ajuda profissional antes e converse com um profissional de saúde responsável sobre um aplicativo que tenha lhe chamado a atenção. Com um acompanhamento médico, a escolha de um bom aplicativo pode potencialmente ajudar na recuperação do paciente. Mais rígidos estudos de avaliação e desenvolvimento nessa área são ainda necessários, além de efetiva fiscalização.
> Artigo relacionado: A homeopatia funciona?
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24985342
- http://www.scientificamerican.com/article/should-you-take-an-app-for-that/
- http://www.psychiatrictimes.com/telepsychiatry/evolving-potential-mobile-psychiatry-current-barriers-and-future-solutions
- http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S027273581200027X
- http://ebmh.bmj.com/content/early/2015/09/16/eb-2015-102203.full#ref-26
- http://schizophreniabulletin.oxfordjournals.org/content/early/2014/03/07/schbul.sbu033
- http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2214782915000135
- http://www.jmir.org/2013/11/e247/
- Anthes, Emily. "Pocket psychiatry: mobile mental-health apps have exploded onto the market, but few have been thoroughly tested." Nature, vol. 532, no. 7597, 2016, p. 20
- http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0180867
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4795320/
- https://www.jmir.org/2017/5/e176/
- http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0165032717300150
- Lui et al. (2017). Evidence-based apps? A review of mental health mobile applications in a psychotherapy context. Professional Psychology: Research and Practice, 48(3), 199–210. https://doi.org/10.1037/pro0000122
- Goldberg et al. (2022). Mobile phone-based interventions for mental health: A systematic meta-review of 14 meta-analyses of randomized controlled trials. PLOS Digit Health 1(1): e0000002. https://doi.org/10.1371/journal.pdig.0000002