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ACHOO: Espirros disparados pela luz



- Atualizado no dia 23 de outubro de 2023 -

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          Imagine que você está descansando em um quarto escuro quando, de repente, alguém abre as cortinas das janelas e a claridade do dia lá fora atinge em cheio o seu rosto. Então, nesse exato momento e inesperadamente, você começa a espirrar sucessivas vezes. Apesar de possível, o que foi testemunhado geralmente não é uma coincidência, mas um anômalo reflexo fisiológico que afeta aproximadamente 1 em cada 4 pessoas, conhecido como ACHOO.

             Não, o termo mencionado não é uma onomatopeia relativa ao efeito sonoro de um espirro, mas, sim, a sigla de uma estranha síndrome. ACHOO é a sigla em inglês para Autosomal Dominant Compulsive Helio-opthalmic Outbusrt, algo que pode ser traduzido para Ataque Oftálmico-Solar Compulsivo Autossômico Dominante. Basicamente, os portadores dessa síndrome sentem uma incontrolável vontade de espirrar quando são expostos, visualmente e repentinamente, a uma fonte de intensa luminosidade. Na prática, o reflexo é frequentemente engatilhado pela súbita exposição de uma pessoa adaptada a um ambiente escuro ou pouco iluminado (pupila dilatada) - por exemplo, o interior de uma casa - a um ambiente ensolarado ou a uma fonte de radiação solar. Depois da exposição luminosa e dos espirros - os quais, geralmente, totalizam de 2 ou 3 sucessivos ataques, mas podendo ultrapassar os 40 ataques -, o indivíduo para de espirrar ou de sentir vontade de espirrar, independentemente se a luz continua incidindo nos seus olhos. 

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          Cientistas estimam que entre 18% e 35% da população possuem a síndrome! Na população Chinesa, a prevalência reportada é de 25,6% da população, nos EUA é de 32,4% (Ref.11). Porém, um estudo conduzido na população Alemã reportou uma prevalência de 57% (Ref.12), enquanto um estudo conduzido na população Japonesa reportou uma prevalência de apenas 3,2% (Ref.13). No geral, prevalência média reportada é de aproximadamente 1 em cada 4 pessoas (Ref.22-24).


   CAUSA E MECANISMO

         Também conhecida como PSR (Photic Sneeze Reflex e, na tradução, Reflexo Fótico do Espirro), essa síndrome é descrita há milênios ao longo da história humana. Escrevendo no século IV a.C., Aristóteles ponderou "Por que o calor do Sol provoca espirro, e não o calor do fogo?" No século XX, em 1954, Dr. Sedan J. descreveu pela primeira vez na literatura acadêmica o fenômeno, reportando que um número dos seus pacientes espirravam em resposta ao feixe brilhante de luz do seu oftalmoscópio. Em 1964, Dr. Everett H.C. nomeou esse fenômeno com o já mencionado termo "reflexo fótico do espirro", encontrando-o de estar presente em 23% dos seus estudantes de medicina. Uma base hereditária foi então sugerida em 1978, sendo confirmada em 1984. Hoje é bem estabelecido o caráter autossômico dominante do ACHOO. Desse modo, se um dos pais é afetado, seus filhos, independentemente do sexo, terão uma chance de 50% de terem a síndrome.           



           Vários polimorfismos de nucleotídeo único em múltiplos locais genômicos (loci) já foram identificados de estarem associados com a síndrome, suportando um fenótipo poligênico. Uma dessas variantes genéticas afeta uma região no genoma associada com o gene CADM2, responsável por codificar uma proteína que atua na adesão e organização de sinapses (Ref.11).

          O ato ou barulho do espirro (esturnatação), é a expulsão de ar a partir dos pulmões através do nariz e da boca, mais comumente causado pela irritação da mucosa nasal. Pode ser engatilhado também por fatores menos usuais, como exposição súbita a uma fonte luminosa, um estômago cheio, orgasmo ou idealização sexual, ou por estimulantes físicos do nervo trigeminal (Ref.9). O reflexo do espirro pode ser dividido em duas fases:

- Fase nasal ou sensitiva, seguindo estimulação da mucosa nasal por um irritante químico ou físico. O sinal é transmitido através de ramificações do nervo trigeminal ao gânglio trigeminal, com o estímulo alcançando o centro de espirro na medula lateral.

- A segunda fase inicia-se uma vez que um número crítico de neurônios inspiratórios e expiratórios foram recrutados, sendo caracterizada por um fechamento dos olhos, inspiração profunda e, então, uma expiração forçada com fechamento inicial da glote, e crescente pressão intrapulmonar. A subsequente dilatação da glote leva à explosiva saída de ar através da boca e do nariz, eliminando irritantes nas mucosas. Em torno de 40 mil partículas são expelidas durante um espirro, variando de 0,5 a 5 mícrons.

          No caso do ACHOO, o mecanismo de espirro foticamente estimulado assim como sua base genética (loci específicos) não são ainda totalmente esclarecidos. É proposto que o reflexo fótico do espirro emerge devido ao cruzamento entre os nervos óptico e trigeminal quando um intenso estímulo visual está presente, com os aferentes visuais estimulando os sistemas trigeminal e parassimpático e produzindo um espirro através dos nervos intermédio e cranial V, VII e IX-XII. Nesse sentido, teríamos um envolvimento importante do tronco cerebral no anômalo reflexo. Aliás, foi recentemente proposto que o reflexo fótico do espirro pode ser um subtipo de Reflexo Trigeminocardíaco, um bem estabelecido reflexo associado ao tronco cerebral e ao nervo craniano V (Ref.17). De fato, tem sido reportado que hipersensibilidade do nervo trigeminal está envolvida na manifestação do ACHOO (Ref.10)

          Em um estudo publicado em 2010 no periódico PLOS ONE (Ref.4), pesquisadores encontraram evidência de que o reflexo pode ser o resultado de uma maior sensibilidade de estímulos no córtex visual dos indivíduos afetados, junto com uma coativação de áreas somatossensoriais. Para essa conclusão, os pesquisadores recrutaram 20 voluntários (50% do sexo masculino), onde 10 deles possuíam a síndrome (50% do sexo masculino), analisando então a atividade neural dos participantes em resposta a uma repentina maior incidência de luz em um ambiente previamente escuro com a ajuda de um instrumento electroencefalográfico (EEG). Além disso, o estudo também mostrou que a ínsula e o córtex somatossensorial próximos à representação somatotópica do nariz também exibiram significativa maior atividade durante o fenômeno, sugerindo que o reflexo fótico do espirro pode ser modulado por circuitos corticais e não do tronco cerebral.

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   IMPLICAÇÕES EVOLUCIONÁRIAS

           A conexão do ACHOO com o Sol não é uma surpresa, considerando que a claridade diurna (céu claro) proporcionada pela nossa estrela é cerca de mil vezes maior do que a maior parte das luzes artificiais internas (ambiente doméstico), um milhão de vezes maior do que aquela proporcionada pelo reflexo solar na Lua durante a noite, e dez milhões de vezes maior do que aquela proporcionada por outras estrelas observáveis no céu noturno. Assim, a luz solar garante uma drástico contraste entre um ambiente pouco iluminado e um ambiente muito iluminado, representando um gatilho perfeito para o reflexo fótico do espirro.

          Se você acha que pode ter ACHOO, é fácil confirmar. Fique dentro de um cômodo escuro por um tempo para seus olhos se adaptarem à escuridão (dilatação das pupilas) e, então, saia para fora do cômodo direto para um ambiente iluminado pela luz solar em um dia de céu limpo (mas NUNCA olhe diretamente para o Sol) (!). Se você possuir a síndrome, seu nariz irá ficar imediatamente irritado e a ponto de espirrar. Cobrir os olhos ou fechá-los irá amenizar a sensação de irritação nasal, onde que removendo o bloqueio ou abrindo os olhos irá disparar os espirros dentro de segundos.

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(!) Aliás, em um relato de caso reportado em 2020 no periódico Journal of Neuro-Ophthalmology (Ref.22), médicos descreveram um paciente que desenvolveu retinopatia solar aguda - com escotoma central (ponto cego na visão devido a danos na retina) - ao olhar diretamente para o sol por cerca de 10 segundos visando justamente engatilhar o reflexo de espirro. O paciente de 21 anos de idade havia desenvolvido uma infecção no trato respiratório superior com incômoda congestão nasal. Para "resolver" a congestão e sabendo que possuía o reflexo de espirro mediado por luz, ele olhou para o sol sem qualquer proteção ocular. Não era a primeira vez que ele havia feito isso e ele achava que isso era um hábito comum entre as pessoas.
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          Como o ACHOO é muito prevalente na população humana, cientistas têm especulado que o reflexo fótico do espirro pode estar associado a algum benefício adaptativo. É proposto, por exemplo, que esse reflexo pode ser uma forma de proteger o indivíduo de potenciais danos oculares causados pelos comprimentos de onda mais energéticos da luz solar (ultra violeta e luz azul) (!). Quando a pessoa sai de um ambiente escuro, suas pupilas estão muito dilatadas, deixando grande quantidade de luz atingir a retina. Se você sai subitamente com as pupilas dilatadas para um ambiente altamente ensolarado, sua retina fica muito suscetível a danos. Com o reflexo de sucessivos espirros, os olhos acabam sendo forçadamente fechados sucessivas vezes, nossa cabeça abaixa sucessivas vezes e a pupila é induzida a contrair. Todos esses movimentos involuntários reduzem drasticamente a forte incidência solar na retina.


           Essa hipótese é reforçada pelo fato do ACHOO ser mais prevalente entre indivíduos com olhos azuis, verdes e cinzentos. Normalmente, um grau de proteção contra comprimentos de onda de alta energia é fornecido pelo pigmento melanina na íris e pela camada coroideia da retina. Melanina absorve radiação de alta energia e emite radiação na faixa do infravermelho, esta a qual é muito menos energética e inofensiva à estrutura ocular. Pessoas que não possuem olhos escuros/castanhos transmitem até centenas de vezes mais luz solar para a retina e são mais suscetíveis a danos de fototoxicidade.

         Essa possível proteção extra conferida pelo reflexo fótico do espirro pode ter fomentado seleção positiva para os alelos (variantes genéticas) associados à síndrome. Porém, é importante reforçar que as evidências para essa hipótese são ainda muito especulativas.

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   TRATAMENTO (RECOMENDAÇÃO)

          Apesar do ACHOO não estar associado com danos diretos ao organismo, a experiência dos sucessivos espirros pode ser extremamente irritante para algumas pessoas, especialmente em casos onde um único episódio podem somar até 50 espirros sucessivos (Ref.15). Além disso, em certas circunstâncias, o reflexo fótico do espirro pode aumentar o risco de acidentes fatais. Por exemplo, um motorista com a síndrome saindo de um longo túnel escuro para a claridade do dia pode perder momentaneamente o controle da direção e sofrer um sério acidente automobilístico durante o disparo dos espirros. Especialistas também alertam que o reflexo pode ter consequências desastrosas durante cirurgias e procedimentos oftalmológicos caso o fenômeno seja ignorado (Ref.24). 

Exposição de súbita e forte luminosidade ao motorista depois de percorrido um longo túnel escuro pode ser bem perigoso para indivíduos com o reflexo de espirro.


           Não existem recomendações específicas e bem estabelecidas para prevenir ou controlar o reflexo fótico do espirro. É possível que anti-histamínicos usados para tratar rinite em alergias sazonais possam reduzir a ocorrência dos ataques do ACHOO, mas não é algo recomendado para tratar a condição. Por vias não-farmacológicas, o uso de bonés, chapéus, óculos escuros e outros meios de bloqueio da radiação solar nos olhos pode ajudar a prevenir que o reflexo seja disparado. Importante lembrar que o reflexo fótico do espirro não é disparado por comprimentos de onda específicos de luz, e, sim, por mudanças bruscas de luminosidade. Portanto, apenas usar filtros específicos nos óculos (ex.: filtro azul)  não previne o reflexo. 

          Existe também uma técnica reportada efetiva para suprimir o reflexo chamada PPT (Philtral Pressure Technique) (Ref.20). Essa técnica envolve pressionar firmemente com o dedo indicador e de forma transversal a pele da região sub-buçal (philtrum), na direção do osso do maxilar. Um possível mecanismo do PPT é a estimulação de mecanorreceptores locais que podem sobrecarregar a irritação do nervo trigeminal. Alternativamente, a técnica pode interferir com a co-ativação de fibras parassimpáticas, prevenindo o reflexo fótico do espirro. É incerto se a técnica funciona para todos os casos.



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   RELATO DE CASO

           Uma mulher de 36 anos de idade apresentou-se em uma clínica de alergia-imunologia para o diagnóstico de uma possível desordem alérgica. A paciente relatou que desde o início da adolescência ela tinha frequentes ataques de espirro geralmente precedidos por uma irritação nasal e frequentemente ocorrendo quando ela primeiro saía para fora da sua casa.

          A paciente negou ter tosse ou espirros crônicos e não tinha sintomas sugestivos de conjuntivite ou sinusite alérgica. Ela também não tinha urticária ou reações anafilactoides. Sua mãe e sua irmã de 29 anos tinham reclamações similares mas nunca procuram investigar uma possível alergia associada. Além disso, o histórico médico da paciente não trazia nada notável.

          No exame físico, seus sinais vitais estavam dentro dos limites normais. Sua conjuntiva não estava inflamada ou edematosa, e ela não tinha edema ou palidez na sua mucosa nasal e nenhuma dor ao toque nos sinos paranasais. Seus pulmões estavam limpos e livres de chiados após respiração mais profunda. O restante do exame também não revelou nada de notável.

          Exames laboratoriais revelaram perfis sanguíneo e metabólico normais. Teste na pele para 66 alérgenos regionais deram negativo, e os níveis de anticorpos IgG, IgA, IgM, IgD, e IgE estavam dentro dos limites normais.

          Nesse sentido, os médicos suspeitaram que a paciente tinha ACHOO. Eles colocaram-na em um ambiente escuro, até a adaptação da pupila, e então a expuseram a uma forte luz, algo que instantaneamente disparou irritação nasal e sucessivos espirros na paciente, confirmando a presença do reflexo fótico do espirro.

           O caso foi reportado em 2020 no periódico Case Report of International Journal of Case Reports (Ref.21).
     
        
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
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  2. http://www.scientificamerican.com/article/why-does-bright-light-cau/
  3. http://www.bbc.com/future/story/20150623-why-looking-at-the-light-makes-us-sneeze
  4. http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0009208
  5. http://www.nature.com/eye/journal/v23/n11/abs/eye2009165a.html
  6. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16525923
  7. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16007510
  8. https://www.omim.org/entry/100820
  9. https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1258/jrsm.2009.090006
  10. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/npr2.12067
  11. https://www.nature.com/articles/s41598-019-41551-0
  12. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27568353/
  13. https://www.nature.com/articles/s10038-018-0441-z
  14. https://full.escipub.org/Articles/IJCR/IJCR-2020-07-2905.pdf
  15. https://proceedings.med.ucla.edu/wp-content/uploads/2020/12/Tsoi-A200619NT-revised-BLM-formatted.pdf
  16. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK109193/
  17. https://www.futuremedicine.com/doi/full/10.2217/fnl-2019-0007
  18. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6444960/
  19. https://journals.lww.com/jneuro-ophthalmology/Citation/2020/06000/Acute_Solar_Retinopathy_and_the_Autosomal_Dominant.17.aspx
  20. https://www.nature.com/articles/s41433-019-0368-4
  21. https://full.escipub.org/ijcr-2020-07-2905/
  22. Öcal et al. (2023). Sneezing. In: Cingi, C., Yorgancıoğlu, A., Bayar Muluk, N., Cruz, A.A. (eds) Airway diseases. Springer, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-031-22483-6_18-1
  23. Scherbakova et al. (2020). Acute Solar Retinopathy and the Autosomal Dominant Compelling Helio-Ophthalmic Outburst Syndrome. Journal of Neuro-Ophthalmology 40(2):p 243-245. https://doi.org/10.1097/WNO.0000000000000851 
  24. Subramanian & Shetty (2023). Stifling the sneeze in ACHOO syndrome—What the anesthesiologist should know. Journal of Anaesthesiology Clinical Pharmacology, 39:499-500.