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Fios dentais são inúteis?



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        Uma boa higienização na boca é um dos passos fundamentais para melhorar toda a saúde do corpo e evitar diversos problemas na região bucal, incluindo estéticos. Entre as ferramentas de higiene bucal, as mais difundidas são, sem dúvida alguma, as escovas de dente e os fios dentais. Quando bem usadas diariamente, ambas são a melhor combinação para prevenir as cáries e inflamações bacterianas na gengiva. Bem, pelo menos é o que sempre nos foi dito através das recomendações gerais dos cientistas e organizações de saúde ao redor do mundo. Só que, nos últimos anos, diversos estudos de revisão da literatura científica não encontram evidências científicas suficiente para dar aval de efetividade ao uso comum dos fios dentais!

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        Quando nos alimentamos, restos de comida da mastigação acabam ficando impregnados na boca. Caso não sejam retirados, eles acabam se misturando com bactérias em cima dos dentes, língua e outras partes bucais, formando ambientes de intensa fermentação lática e acúmulo bacteriano (nos dentes, são as famosas placas bacterianas). Nesse processo, as bactérias começam a se alimentar desses restos de comida, especialmente dos carboidratos mais simples, e liberam ácidos láticos como produto de metabolização (fermentação). Esses ácidos começam a atacar a estrutura dentária, danificando-a bastante e podendo levar a estágios avançados de deterioração chamados de cáries. Além disso, a proliferação bacteriana no tecido das gengivas deixa estas lesionadas e frágeis, facilitando sangramentos (gengivite) e, caso a proliferação continue, inflamações graves podem tomar espaço. E é aqui que entramos com as ferramentas mecânicas de remoção dos restos de comida e de placas bacterianas já instaladas.

          Com a ajuda de uma pasta de dente, as escovas dentárias são muito eficazes em retirar restos de comida espalhados pela boca e placas acumuladas nos dentes, especialmente se a escovação for feita com dedicação e, pelo menos, duas vezes ao dia. Porém, essas escovas não são capazes de alcançar com significativo grau de eficiência a região entre os dentes, sendo necessário outro tipo de ferramenta para fazer esse serviço e completar bem o serviço de higiene bucal. Com isso, surgiram os fios dentais, os quais se tornaram um procedimento padrão e global de complementação da escovação. Segundo grande parte dos especialistas e agências de saúde, é recomendado usar o fio dental pelo menos uma vez por dia, onde esse irá retirar os restos de comida e placas não alcançados pela escova de dente. Mas aqui também entramos com um grave problema: diversos estudos ao longo dos anos não conseguem achar real ou significativo benefício para a prevenção de cáries e outros problemas bucais com a utilização desse produto!

         Recentemente, uma matéria exclusiva produzida pela Association Press (AP) (Ref.1) reforçou, mais uma vez, que as evidências continuam fracas, cheias de erros estatísticos, com baixa qualidade e, muitas vezes, tendenciosas (financiadas por fabricantes do produto) para dar aval ao uso generalizado do fio dental. Além disso, o Departamento de Saúde, Serviços Humanos e Agricultura dos EUA também admitiu, em carta aberta, que os benefícios do fio dental não possuem uma base científica forte de comprovação. E é fácil confirmar isso fazendo uma pesquisa por artigos científicos publicados em anos recentes, principalmente os de revisão e meta-análises comparando as diferenças de eficiência entre a escovação isolada e a escovação aliada com os fios dentais dentro da população. E grande parte dos estudos não encontra benefícios estatisticamente significativos (Ref.2, 3,4,5,6 e 7).

           Um estudo de junho de 2017, e publicado no Journal of Clinical Periodontology (Ref.16), analisando a associação entre periodontite em adultos e a limpeza dos dentes com fios dentais, encontrou apenas modestos benefícios com a prática. Além disso, mostrou que a eficácia dos fios dentais quando usados diariamente parecia ser a mesma se utilizados de 2 a 4 vezes por semana. Já uma revisão sistemática publicada na Oral Health & Preventive Dentistry (Ref.16), também de 2017, encontrou apenas um estudo que mostrava benefícios no uso do fio dental na dentição primária (os 20 primeiros dentes das crianças; dentes de leite) para a prevenção de cáries. Aliás, nessa revisão, foram encontrados dois estudos mostrando prejuízos do uso de fios dentais em relação ao desenvolvimento de cáries nos dentes primários. Apesar disso, os autores concluíram que o uso dos fios dentais não deveria ser desencorajado na infância, já que hábitos saudáveis nessa fase tendem a continuar ao longo da vida adulta.

          Mesmo com a falta de apoio científico de qualidade, diversas agências de saúde e diretrizes internacionais continuam recomendando veemente a utilização do fio dental concomitante com a escovação tradicional. Por exemplo, a Associação Odontológica Americana (ADA, na sigla em inglês) rebateu, poucos dias depois da sua publicação, a matéria da AP dizendo que grande parte dos estudos nas últimas décadas não utilizam dados muito acurados e testes clínicos eficientes, além deles cobrirem relativos pequenos grupos de controle. Porém, isso continua não justificando as recomendações de saúde dadas à população para que esta use, diariamente, o fio dental. Ora, se os estudos, contrários ou favoráveis, são de baixa qualidade, onde estão as provas científicas de que essa ferramenta de limpeza é realmente eficiente? E outra: as organizações de saúde e qualquer outro conselho de medicina só podem fazer uma recomendação à população caso existam fortes evidências científicas a corroborando.           

         Nesse mesmo caminho, várias pesquisas também comparam a eficiência de outros métodos de limpeza entre os dentes, como os palitos de madeira, as escovas interdentais e os irrigadores orais, quando combinados com a escovação tradicional. De modo resumido, podemos colocar que:

1. Palitos de madeira: Relativamente populares entre as pessoas, são ferramentas bem simples para a retirada, principalmente, de restos de comida entre os dentes. Porém, as evidências de beneficiamento dessa prática para a prevenção de cáries é inexistente, e muito fracas em relação à manutenção de uma gengiva saudável. Mas pode ser que eles ajudem a diminuir um pouco o sangramento causado pela gengivite.

Palitos de dente

2. Irrigação oral: É um dispositivo eletrônico que joga jatos de água em pulsos, através de um tubo bem fino, para dentro do espaço entre os dentes. Assim como os palitos de madeira, eles possuem poucas evidências científicas de efetividade e, apesar de ajudarem a tirar um pouco de alimentos entre os dentes, não parecem contribuir para a prevenção de cáries e remoção das placas bacterianas.

Irrigação oral

3. Escova Interdental: Aqui, um cabo bem fino de uma escova com cerdas é introduzido entre os dentes e ajuda na limpara da área de forma parecida com uma escova tradicional. Apesar de pouco disseminada, essa escova é a que possui a maior quantidade de evidências científicas ressaltando seus benefícios na prevenção de cáries e inflamações na gengiva, ao retirar placas e alimentos entre os dentes com maior sucesso e comodidade. Mas é preciso enfatizar que as evidências ainda continuam sendo relativamente fracas, sendo necessário um maior número de estudos clínicos de eficácia. Além disso, dependendo do espaçamento dentário de cada um, não será possível introduzi-la (dentes muito juntos não aceitarão uma, mesmo as mais finas).

Escova interdental

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         Nesse ponto, uma dúvida já deve ter surgido na sua cabeça: 'Ora, mas os fios dentais e afins retiram alimentos entre os dentes e eu posso vê-los sendo retirados por usá-los todos os dias. Retirar restos de comida entre os dentes não ajuda em nada?'. Sim, retirar restos de alimentos de qualquer lugar da região dentária só vem a ajudar na higienização da boca, prevenção de cáries, amenização na produção de placas e redução no número de inflamações bacterianas na gengiva. Na verdade, esse é até o argumento usado pelos profissionais de saúde que continuam defendendo com vigor o uso do fio dental. O problema é que a eficiência de remoção de placas e restos de comida pelo fio dental parece não ser suficiente para fazer uma real diferença, principalmente porque a população, em geral, não consegue usá-lo de forma profissional.

           Quando você vai ao dentista, o profissional odontológico consegue usar o fio dental com primor, auxiliado tanto por sua experiência quanto pela maior paciência durante o processo. Só que isso acaba não se refletindo no dia-a-dia da população em geral, e tal problema fica muito claro quando crianças e pré-adolescentes usam o fio dental. A grande maioria não executa corretamente o movimento recomendado pelos dentistas e não conseguem dedicar um bom tempo na manipulação do fio. Assim, a retirada das placas, algo mais do que importante para a boa saúde dentária, acaba ocorrendo de forma ineficiente, onde apenas restos de comida superficiais acabam sendo puxados (os quais poderiam, naturalmente, terem saído de lá com a ajuda da saliva). Além disso, as estatísticas não veem muita diferença de efetividade entre as pessoas, independentemente da sua técnica com essa ferramenta de limpeza, indicando que esta pode ser ineficiente para o público.

Em crianças, os benefícios do fio dental provavelmente serão inexistentes

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           Para deixar isso menos confuso, é como pedir para um operário de construção civil puxar uma grande carga de cimento de uma andar para outro através de uma corda sem a presença de um sistema de roldanas. Bem, se o operário for muito forte, ele poderá até realizar esse árduo trabalho, algo impossível de ser feito pelo resto dos trabalhadores na obra. Já se existisse um sistema de roldanas, a força necessária para se puxar o peso diminuiria drasticamente, permitindo que praticamente todo mundo efetuasse bem o serviço. Entendem agora a diferença? O fio dental, segundo o atual consenso científico, não é uma boa ferramenta de limpeza para os dentes, falhando em mostrar mínimos benefícios quando comparado com a escovação dentária tradicional. E não fica só na ineficácia. Caso feito com descuido, o fio dental pode até prejudicar a estrutura do dente e gerar machucados recorrentes na gengiva, algo que pode levar quantidades preocupantes de bactérias da boca (em uma flora com várias centenas de espécies) direto para a circulação sanguínea (1). E estudos mostram que a quantidade de bactérias dentro da corrente sanguínea logo após o uso do fio dental em uma média de bocas saudáveis, ou não, fica bastante elevada (Ref.12,13 e 14).

          Somando-se ao quadro geral, podemos citar ainda 4 importantes pontos que mostram a importância em darmos uma maior atenção à problemática do fio dental (meu ponto de vista):

1. Dependendo de cada pessoa, outros métodos de limpeza entre os dentes pode ser muito mais eficiente do que o fio dental, como a escova interdental, a qual já mostrou, em vários estudos clínicos, melhor eficácia e praticidade de uso entre o público geral;

2. Usar o fio dental pode dar uma falsa sensação de grande higiene bucal, o que pode fazer com que o indivíduo se preocupe menos com outros métodos de limpeza e prevenção de problemas odontológicos, como a própria escovação com pasta de dente tradicional, redução no consumo de alimentos ácidos (como refrigerantes) e ricos em açúcares, e distanciamento do tabagismo. Se a maioria das pessoas, por exemplo, usassem o tempo que gastam com o fio dental em um maior tempo de escovação, é talvez possível que a saúde bucal seria melhor recompensada;

3. Diminui o incentivo aos pesquisadores em trabalharem para a obtenção de outros métodos de melhor higienização bucal entre os dentes, já que o fio dental é tão bem estabelecido e vendido como se fosse um produto ideal de uso e eficácia;

4. Essa questão pode diminuir a confiança das pessoas quanto às informações transmitidas pelas organizações de saúde, já que regras fundamentais de conduta (atenção às evidências científicas, por exemplo) estão sendo ignoradas.

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          Portanto, converse com o seu dentista sobre essa questão e veja se o uso do fio dental realmente estará te beneficiando ou outros métodos de limpeza poderiam ajudar mais. Eu, por exemplo, nem sabia da existência de escovas interdentais, tamanha é a alienação em volta das recomendações de uso do fio dental. E o pior: recomendações suspeitas. No final, podemos dizer que é um exagero dizer que os fios dentais são 'inúteis', sendo melhor defini-los como ferramentas longe do ideal para a limpeza dos dentes pelo público geral. De qualquer forma, as agências de saúde e os profissionais da área odontológica continuam recomendando os fios dentais, e, até melhores esclarecimentos, vale a pena continuar seguindo a recomendação.

(1) Normalmente, nosso sangue é um ambiente estéril. Caso existam bactérias circulando, algum problema no corpo está ocorrendo, como uma infecção bacteriana ou contato de feridas com uma fonte de bactérias, como aquelas presentes na boca. E a presença de bactérias no sangue pode levar ao desenvolvimento de quadros graves de saúde, como alguns problemas cardiovasculares. 

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://bigstory.ap.org/article/f7e66079d9ba4b4985d7af350619a9e3/medical-benefits-dental-floss-unproven
  2. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jcpe.12363/full
  3. http://www.nature.com/ebd/journal/v13/n1/abs/6400835a.html
  4. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19138178
  5. https://healthfinder.gov/News/Article/713514/is-all-that-flossing-really-worth-it 
  6. http://jdr.sagepub.com/content/85/4/298.short
  7. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD008829.pub2/full
  8. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19820738
  9. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1601-5037.2008.00343.x/abstract
  10. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19138177
  11. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmedhealth/PMH0061573/
  12. http://www.trasci.com/article/S1473-0502(08)00094-3/abstract
  13. http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.604.3241&rep=rep1&type=pdf
  14. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1600-051X.2008.01372.x/full
  15. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/jcpe.12765
  16. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/28785751