Existiram mulheres gladiadoras na Roma Antiga?
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| Figura 1. "Mulheres Gladiadoras", parte de uma pintura do século XVII retratando de forma simbólica um combate entre gladiadoras da Roma Antiga. A arte, de autoria do pintor espanhol José de Ribera, está exposta no Museo del Prado, Espanha. |
Gladiadores têm sido amplamente popularizados na cultura pop através de filmes, séries e quadrinhos desde o início do século XX. Dois filmes marcaram a história do cinema nesse sentido: Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, e Gladiador (2000), de Ridley Scott. Séries de televisão nas últimas décadas tiveram também grande influência cult ao retratar gladiadores, em especial Spartacus (2010-2013). E, recentemente, um spin-off da série Spartacus - "House of Aschur" - trouxe um elemento inovador para as telas: uma mulher gladiadora como protagonista, Achillia, interpretada pela atriz e modelo canadense Tenika Davis. Afinal, existiram mulheres gladiadoras em Roma?
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GLADIADORES: Dos Mortos para os Vivos
Apesar de popularmente retratados como um simples esporte na Roma Antiga, os combates entre gladiadores (munera) tiveram origem nos ritos de sacrifício aos espíritos dos mortos e na necessidade de propiciá-los com oferendas de sangue. De fato, esses combates foram introduzidos no funeral de Júlio Brutus, em 264 a.C., no Fórum Boário, como uma honraria dos filhos (Ref.1). Em 65 a.C., Júlio César, para homenagear o pai - morto há 20 anos - juntou 320 pares de lutadores em trajes de prata e só não trouxe mais deles porque o Senado Romano condenou o excesso (Ref.2). Nesse contexto, durante a República, os combates ou jogos entre gladiadores eram financiados por particulares e com fins ritualísticos.
Eventualmente, e especialmente durante o Império Romano, o valor ritualístico das lutas acabou dando espaço para espetáculos com fins de poder, riqueza e capital político. Os imperadores, percebendo o potencial político das lutas, passaram controlar a organização dos eventos de munera. Esses eventos eram uma forma de entretenimento das massas e, ao mesmo tempo, uma representação do poder, cultura e da virtude de Roma. Gladiadores passaram a ser um investimento, e eram patrocinados por políticos em campanhas eleitorais e como um atalho para a popularidade.
O princípio do espetáculo protagonizado pelos gladiadores não era simplesmente violência gratuita, mas a exibição da virtus [do valor], da capacidade de um gladiador vencer um oponente de forma justa (!) e exibir virtudes como masculinidade, bravura e destemor em frente à morte. Ultimamente, o combate entre gladiadores era também um meio de afirmação da "cidadania romana": a luta da civilização contra a barbárie, do humano contra a besta, do justo contra o injusto, da sociedade contra a perversão social (Ref.2).
Os gladiadores profissionais, embora possuíssem como regra geral baixo status na sociedade romana, eram representados por grupos diversos, desde escravos e criminosos até homens nascidos livres e ex-escravos; eram homenageados em túmulos (Fig.2); e representavam uma parte muito importante da cultura romana. Eram amados e odiados pelo público e alguns alcançavam glória e alto privilégio junto à elite. Importante apontar que nobres patrícios, membros do Senado e até imperadores chegaram a participar dos duelos como gladiadores. Mas voluntariado popular para ser um gladiador profissional (auctoratus) não era comum. A maioria dos gladiadores eram prisioneiros de guerra, escravos ou criminosos condenados a duelar nas munera.
Os gladiadores eram treinados em escolas especializadas (ludus, plural: ludi) (Fig.5), sob a administração de um lanista - que podia ou não ser também um treinador. O ludus abrigava uma tropa de gladiadores (familia gladiatoria) e outros membros (ministri ludorum), e as escolas de grande porte incluíam doctores ou magistri que eram especializados em tipos específicos de combate. Nesse último ponto, existiam várias categorias de gladiadores que eram treinados para o uso de armas, equipamentos e técnicas específicas. Existiam também escolas especiais que treinavam lutadores para competir na arena contra animais selvagens (Fig.6-7). Entre os membros dos ludi, haviam médicos que cuidavam dos gladiadores, preparando-os para as lutas ou tratando dos ferimentos. Os lanistas possuíam total poder legal sobre a vida e a morte dos gladiadores - exceto se esses últimos fossem cidadãos romanos.
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> Os gladiadores que lutavam contra animais selvagens, como tigres, girafas, elefantes, ursos e leões, eram conhecidos como venatores ou bestiarii, e essas batalhas ou caças eram chamadas de venationes. Em dias de munera, caças ocorriam na parte da manhã, enquanto os duelos entre gladiadores ocorriam à tarde. Geralmente eram vistos com menos respeito, mas também tinham seus admiradores: porque lutar contra animais era considerado dramático e completamente imprevisível. Os animais selvagens nas arenas eram usados também para mutilar e executar prisioneiros de guerra e "depravados", incluindo Cristãos, em eventos conhecidos como damnatio ad bestias. Ref.8
> Os gladiadores possuíam uma dieta vegetariana rica em carboidratos, com suplementação ocasional de cálcio. Era importante para os gladiadores serem corpulentos e terem ossos fortes. A gordura extra no corpo não apenas fornecida proteção adicional aos nervos e vasos sanguíneos, como também faziam as feridas superficiais parecerem "mais espetaculares" paras os espectadores. Ref.1
> Cômodo (161-192 d.C), um notável imperador Romano, participou de inúmeros duelos como gladiador, "derrotando" vários oponentes - que sempre se rendiam - e dilacerando animais exóticos vindos de várias partes da África e da Eurásia. Planejou inclusive se vestir como um gladiador para assumir o Consulado Romano. Essa ousadia e a crescente megalomania de Cômodo, "o Hércules Romano", custaram sua vida, sendo assassinado por pessoas próximas a ele que temiam a própria vida. Ref.9-10
(!) Os gladiadores eram classificados em diferentes níveis de habilidade, com base no número de lutas que participavam e sobreviviam, e existia grande preocupação em colocar para lutar gladiadores de nível similar. Derrotar oponentes mais fracos era contrário à busca de virtue. Ref.11
> Alguns acadêmicos argumentam que gladiadores profissionais eram vistos como párias na sociedade romana porque, assim como prostitutas e atores, "vendiam a própria carne" para o prazer do público. Uma pessoa não era respeitável aos Romanos caso servissem como entretenimento ou espetáculo para outras pessoas, porque isso a colocava abaixo do espectador. Além disso, restrições legais forçavam os gladiadores a viver em grupos homogêneos, isolados em relação ao resto da sociedade, sendo comumente percebidos apenas como "armas de combate" ou escravos. Ref.12-13
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No primeiro século da Era Comum, os gladiadores tipicamente sobreviviam a menos de 10 combates, embora alguns sobrevivessem a mais de 100 e outros tivessem sucesso suficiente para conquistar a liberdade. Nos séculos seguintes, as perspectivas de vitória caíram ainda mais. Os combates até a morte tornaram-se mais populares à medida que os interesses políticos aumentavam e o público ficava mais exigente com a violência.
Apesar da natureza violenta e frequentemente letal dos duelos, vitórias podiam ser obtidas sem necessariamente envolver a morte de um dos participantes (Ref.15). E, como mencionado, nem todos os gladiadores morriam nas arenas em algum ponto da carreira. Vários deles se aposentavam das lutas e morriam em idades avançadas. Após anos de serviço como gladiador, era possível ganhar a liberdade do controle de um lanista, e tal gladiador era atestado como um rudaris. Gladiadores que ganhavam a liberdade podiam seguir outras ocupações ou retornar a servir como um gladiador independente (auctoratus) ou talvez como doctores (Ref.15).
Em 73 a.C., o famoso gladiador Espártaco (Spartacus) organizou uma revolta histórica e escapou de um ludus com cerca de setenta outros escravos. Espártaco era originalmente um soldado romano, mas acabou sendo sendo preso e escravizado antes de ser treinado como um gladiador. Seus seguidores logo cresceram para cerca de 70 mil pessoas e seu grupo derrotou um grande número de soldados do exército romano que tentaram recapturá-los. A revolta absorveu o sul da Itália e ameaçou o maior poder militar da antiguidade por 2 anos. Eventualmente, Espártaco foi derrotado pelas forças romanas, em 71 a.C.
Após a revolta de escravos ter sido derrubada, o governo Romano assumiu maior controle dos eventos de luta, e um grande número de gladiadores passaram a ser treinados em escolas imperiais.
Os gladiadores continuaram a lutar até o século V d.C., quando preocupações financeiras e pragmáticas trouxeram fim a esse tipo de espetáculo (Ref.15).
MULHERES GLADIADORAS
Como explorado, gladiadores eram representados por grupos diversos presentes na sociedade romana, incluindo ocasionalmente membros da elite política. Nesse contexto, é também bem estabelecido na literatura clássica a existência de gladiadores do sexo feminino. Embora não seja conhecida a prevalência (Ref.16), mulheres também duelavam como gladiadoras ou venatores dentro e fora de Roma (Ref.17). Isso é comprovado por múltiplas evidências literárias, artísticas e epigráficas, além de uma possível evidência osteológica de 1996 (Ref.18).
Em especial, o século I d.C. testemunhou uma crescente competição entre os imperadores e seus antecessores para tornar cada jogo mais emocionante que o anterior (Ref.20). Nesse sentido, imperadores como Nero (54-68 d.C.), Tito (79-81 d.C.) e Domiciano (81-96 d.C.) utilizavam frequentemente mulheres gladiadoras para tornar seus jogos mais surpreendentes, exóticos e luxuosos. De fato, era muito raro ver mulheres em Roma empunhando armas. Às vezes, os imperadores até empregavam gladiadoras para o próprio entretenimento. Segundo o biógrafo Suetônio, o imperador Domiciano colocava mulheres gladiadoras para lutar à luz de tochas à noite. E mulheres gladiadoras lutaram inclusive na inauguração do Coliseu.
Devido à concepção dos Romanos de que os combates deviam ser equilibrados em termos de nível dos oponentes, uma mulher nunca era colocada contra um homem em combate individual. No entanto, em combates em grupo (gregatim), era possível que algumas mulheres aparecessem entre as fileiras dos lados opostos, normalmente lutando em bigas para compensar a desvantagem física em relação aos homens, e provavelmente armadas com arcos e flechas, uma vez que o arco é a arma que exige menos força, sendo assim a arma de mais fácil uso contra os homens - e, por essa razão, eram também as armas das Amazonas, da deusa Diana e de Atalanta).
Dependendo do status social, as mulheres romanas eram tratadas de forma bem distinta. Romanos distinguiam entre femina (mulher de classe alta) e mulier (mulher de classe baixa). Todas as filhas ou esposas dos cidadãos romanos eram feminae – dignas de respeito – enquanto as demais mulheres eram mulieres – não tão dignas de respeito.
Nesse contexto, era dada pouca importância às atividades de escravas e outras mulieres: podiam ser ladras, atrizes, prostitutas ou gladiadoras, ninguém se preocupava com isso ou considerava um escândalo. Por outro lado, se uma femina se envolvesse em alguma dessas atividades, a comoção social era considerável e medidas eram tomadas para que tal coisa não se repetisse.
Embora cidadãs romanas eram esperadas de limitar suas atividades aos afazeres domésticos e cuidado do marido e crianças, sem exibir "virtudes masculinas" e obedecendo ao código de moralidade romano, algumas femina também se aventuraram como gladiadoras e nas arenas, treinando e lutando de forma voluntária com equipamentos e armas.
O notório poeta romano Decimus Junius Juvenalis (Juvenal, 55-128 d.C.) era especialmente crítico de mulheres livres e de famílias ilustres lutando como gladiadoras (Ref.22):
"Que vergonha pode ser encontrada numa mulher usando capacete, que rejeita a feminilidade e ama a força bruta... Se um leilão for realizado com os pertences da sua esposa, quão orgulhoso você ficará do cinto, ombreiras, plumas e caneleira usados por ela?... Ouça-a grunhir enquanto pratica estocadas, sob os comandos de um treinador, sucumbindo ao peso do capacete."
Mulieres livres que decidiam se tornar gladiadoras profissionais (auctorati), de fato, perdiam seus direitos e ganhavam o nome de infames. E, provavelmente, a maioria delas eram submetidas ao mesmo estilo de vida e rotina de treinamento dos homens gladiadores, incluindo assinatura de contrato com um lanista. É incerto, porém, se gladiadores homens e mulheres - escravos ou livres - dividiam o mesmo ludus; é provável que eram separados em ambientes distintos para se evitar conflitos e violência sexuais.
Porém, é improvável que gladiadoras femina eram treinadas em ludi ou recebiam dinheiro de lutas, sendo mais plausível que usavam a atividade como recreação, reafirmação de independência no contexto da sociedade patriarcal ou mesmo um meio para manter a forma física. Tal atividade seria realizada da forma mais honrável possível (ex.: restrita à apresentação de habilidades com armas e de luta). Similar em certa extensão aos políticos e outros homens livres de alta classe que exploravam as arenas e treinos como gladiadores.
Uma provisão legislativa - chamada Senatus Consultum of Larinum - foi emitida em 11 d.C. proibindo mulheres livres com menos de 20 anos de idade de participar dos combates de gladiadores (Ref.23). Outra legislatura, emitida em 19 d.C., o Senatus Consultum de Larinum, proibiu que membros da classe alta (ex.: Senadores) competissem em anfiteatros como gladiadores, incluindo mulheres (Ref.23). Essas e outras leis prévias limitando a participação de cidadãos romanos como gladiadores acabaram perdendo qualquer significância quando Calígula subiu ao poder de Roma em 37 d.C. e convenceu o Senado a remover todas as restrições das munera (Ref.22).
A última referência conhecida de mulheres gladiadoras está contida no Édito de Sétimo Severo de 200 d.C. - associado ao governo do imperador Lúcio Sétimo Severo. O conteúdo desse édito é referenciado pelo historiador romano Dião Cássio (Ref.23):
"Naqueles dias houve uma competição atlética, na qual competiam tantos atletas, embora por necessidade, que nos perguntávamos como a arena poderia acomodá-los todos. Nesse agon, até as mulheres lutavam com grande ferocidade, a ponto de outras mulheres proeminentes serem ridicularizadas por causa da participação delas. E por essa razão, a partir daquele momento, todas as mulheres foram proibidas de lutar como gladiadoras em qualquer tipo de circunstância."
Essa passagem sugere que alguma lei específica proibiu de forma definitiva a participação de mulheres nos eventos de munera.
Importante apontar que os antigos Romanos não possuíam um nome específico para gladiadoras mulheres. Termos como "gladiatrix" são uma invenção moderna.
Leitura recomendada:
REFERÊNCIAS
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