Qual é a função do disco de pele atrás da cabeça de lagartos-de-gola?
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Figura 1. Lagarto-de-gola (Chlamydosaurus kingii), na Austrália. |
Popularmente conhecido como lagarto-de-gola ou lagarto-dragão-australiano, o escamado da espécie Chlamydosaurus kingii é um icônico animal que habita savanas tropicais no norte da Austrália e no sul da Papua Nova Guiné. Representando a única espécie ainda viva do gênero (Chlamydosaurus, família Agamidae), o lagarto-de-gola possui hábitos diurnos e é relativamente grande: típico comprimento sem a cauda de ~25 cm nos machos e ~21 cm nas fêmeas, e comprimento total podendo alcançar até 90 cm. Arborícola, é um predador de tocaia e se alimenta primariamente de insetos, mas ocasionalmente pode predar pequenos vertebrados (Ref.1). Mas o traço mais notável desse lagarto é um grande disco ou babado de pele atrás da cabeça que, quando ereto ou armado, possui um diâmetro até seis vezes a largura da cabeça (Fig.3).
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Figura 3. Lagarto-de-gola na região de Kimberley, no oeste da Austrália, com o disco de pele ereto e aberto. Manchas vermelhas no disco tornam a estrutura ainda mais conspícua. |
O enorme disco consiste de uma dobra de pele anexada ao pescoço e à cabeça que normalmente permanece deitada contra o pescoço. Essa estrutura cutânea é também conectada à mandíbula através de espinhos cartilaginosos. Nesse sentido, seguindo abertura da boca e movimentos da mandíbula, ossos hioides e cartilagens de Grey, a dobra de pele fica ereta e forma um disco posicionado em um plano transversal em relação ao eixo de comprimento do corpo (Fig.4). Músculos anexados às cartilagens de Grey permitem movimentos da parte superior do disco de pele. As "cartilagens" de Grey - que seguram os lados dorsais do disco - não são feitas de cartilagem em si, sendo constituídas por um tecido conectivo denso composto principalmente de fibras de colágeno (Ref.3).
Historicamente, várias funções têm sido especuladas para o disco de pele, incluindo uma estrutura para planar, armazenamento de alimento, realçador auditivo, crípse, termorregulação, comunicação social e comportamento deimático. Porém, evidências acumuladas dão sólido suporte apenas para duas funções do disco (Ref.4-5): comportamento deimático, ou seja, um mecanismo defensivo secundário para deter o avanço de predadores, e comunicação intraespecífica.
Nos últimos estágios de uma ameaça predatória, alguns animais exibem dramática transição de um estado discreto ou críptico para um estado altamente evidente chamado de exibição ou comportamento deimático. Nesse novo estado, a potencial presa busca assustar o predador através de sinalizações visuais e/ou sonoras, resultando em uma pausa ou recuo do ataque e dando à presa a chance de escapar. Por exemplo, muitos mamíferos arrepiam os pelos do corpo para parecerem maiores do que são quando ameaçados. Muitos insetos exibem manchas oculares visíveis, sugerindo a presença de uma grande animal ameaçador (ex.: cobras). Outros usam gritos e outras vocalizações como elemento de susto.
De fato, quando apresentado a predadores (ex.: aves de rapina), os lagartos-de-gola adultos e juvenis tendem a prontamente levantar o disco e a correr em fuga logo em seguida. Esse padrão segue a teoria do comportamento deimático: a exibição de susto é momentânea, transiente e altamente conspícua. É também sugerido que a coloração vermelha no disco de algumas populações desse lagarto podem realçar a sinalização agressiva, apontando maior pressão de predação em certas regiões da Austrália (Ref.2).
O lagarto-dragão (Phrynocephalus mystaceus) é outro lagarto da família dos lagartos-de-gola (Agamidae) que exibe uma estrutura similar ao disco de pele, porém de tamanho muito menor e localizada nas bochechas (Fig.5). Durante abertura da boca e em presença de ameaça predatória, dois leques de coloração interna vermelha são abertos, aumentando o tamanho percebido desse lagarto e adicionando um elemento de susto. Quando a boca do lagarto-dragão está fechada, os leques ficam dobrados e escondidos (estado críptico). Assim como nos lagartos-de-gola, os "leques bucais" do lagarto-dragão também parecem ter função deimática (Ref.7).
Em termos de comunicação intraespecífica, a ereção do disco é comum durante encontros sociais entre lagartos-de-gola adultos de ambos os sexos. E durante o período de acasalamento, ereção do disco e luta são frequentes entre machos. Nesse sentido, o disco parece ter função importante em disputas territoriais e por fêmeas entre machos, apontando possível seleção sexual. Nesse último ponto, embora o tamanho proporcional do disco não é significativamente diferente entre machos e fêmeas, a área do disco relativa ao tamanho corporal sem a cauda é maior nos machos e esses últimos exibem a ereção dessa estrutura de forma mais vigorosa (Ref.6).
Por fim, é válido citar um estudo de 2022 (Ref.8) que trouxe evidência experimental para uma potencial função acústica secundária para o disco de pele, uma hipótese primeiro proposta na literatura científica em 1883. O estudo mostrou que o disco, quando ereto, funciona de forma similar a um microfone direcional, aumentando o ganho de percepção e resolução sonora para sons direcionados em frente ao animal. Existe relato desse lagarto movendo sua cabeça ao redor do ambiente, com o disco ereto, aparentemente tentando otimizar a captação sonora (talvez na busca de presas ou checando potenciais predadores?). Porém, a evidência para essa potencial função acústica no ambiente natural é ainda muito limitada.
> No filme Jurassic Park (1993), um dinossauro terópode do gênero Dilophosaurus é representando com um disco de pele similar ao lagarto-de-gola. Porém, esse fenótipo foi inventado para o filme, e provavelmente teve inspiração no lagarto. Dinossauros desse gênero até possuíam um par de notáveis cristas ósseas, mas na parte da frente do crânio (Fig.7B). Também não existe evidência científica de que esses dinossauros cuspiam veneno como retratado no filme (isso foi baseado em antigas descrições do táxon sugerindo erroneamente a presença de músculos mandibulares fracos). Além disso, possuíam grande porte, em contraste com o espécime do filme. Ref.8-9
REFERÊNCIAS
- Ujavari et al. (2011). Detecting the impact of invasive species on native fauna: Cane toads (Bufo marinus), frillneck lizards (Chlamydosaurus kingii) and the importance of spatial replication. Austral Ecology, 36(2), 126–130. https://doi.org/10.1111/j.1442-9993.2010.02126.x
- Pepper et al. (2017). Phylogeographic structure across one of the largest intact tropical savannahs: Molecular and morphological analysis of Australia’s iconic frilled lizard Chlamydosaurus kingii. Molecular Phylogenetics and Evolution, 106, 217–227. https://doi.org/10.1016/j.ympev.2016.09.002
- Milinkovitch et al. (2019). Elastic instability during branchial ectoderm development causes folding of the Chlamydosaurus erectile frill. eLife. https://doi.org/10.7554/eLife.44455
- Shine, R. (1990). Function and evolution of the frill of the frillneck lizard, Chlamydosaurus kingii (Sauria: Agamidae). Biological Journal of the Linnean Society, 40(1), 11–20. https://doi.org/10.1111/j.1095-8312.1990.tb00531.x
- Perez-Martinez et al. (2019). Uncovering the function of an enigmatic display: antipredator behaviour in the iconic Australian frillneck lizard. Biological Journal of the Linnean Society. https://doi.org/10.1093/biolinnean/blz176
- Martin et al. (2022). A potential deimatic display revealed in a lizard, Biological Journal of the Linnean Society, Volume 136, Issue 3, July 2022, Pages 455–465. https://doi.org/10.1093/biolinnean/blac044
- Peacock et al. (2022). The acoustical effect of the neck frill of the frill-necked lizard (Chlamydosaurus kingii). The Journal of the Acoustical Society of America, 152, 437–444. https://doi.org/10.1121/10.001222
- https://news.utexas.edu/2020/07/07/famous-jurassic-park-dinosaur-is-less-lizard-more-bird/
- Marsh & Rowe (2022). A comprehensive anatomical and phylogenetic evaluation of Dilophosaurus wetherilli (Dinosauria, Theropoda) with descriptions of new specimens from the Kayenta Formation of northern Arizona. Journal of Paleontology, 94(S78):1-103. https://doi.org/10.1017/jpa.2020.14